(continuação do capitulo anterior)
IMPACTO CULTURAL
A 14 de junho de 1969, em Le Mans, o piloto belga
Jacky Ickx fica imóvel enquanto observa todos os outros pilotos correrem para os seus carros. Deixa-os partir e só então caminha para o seu Ford GT40 inscrito pela JW Automotive, a equipa de
John Wyer. Vinte e quatro horas depois, menos de 200 metros separam ele de
Gerard Larrousse, este guiando num Porsche 908, uma das distâncias mais pequenas de sempre numa prova de 24 Horas. Iria ser a primeira vitória do piloto belga, que nessa prova fazia dupla com o britânico
Jackie Oliver, mas ela tinha ficado marcada pelo acidente mortal, ainda na primeira volta, do britânico
John Woolfe, que a bordo de um Porsche 917, perdera o controlo do seu carro na Maison Blanche. No ano seguinte, a partida em corrida foi abolida e em 1971, a saída dos carros acabou por ser em grelha, numa partida lançada.
Entre os espectadores, estavam alguns VIP's. Um deles era
Steve McQueen, ator de Hollywood, que um ano antes, tinha filmado "Bullit" com a primeira cena de perseguição automóvel da era moderna, entre um Ford Mustang "fastback" e um Dodge Charger. Mas McQueen, um conhecido "petrolhead", não vinha ali só para ver os carros passar: ia fazer um filme sobre a corrida. E estava disposto a pilotar um carro. Em 1970, ao lado de
Peter Revson, fora segundo classificado nas 12 Horas de Sebring, e tinha um 917 para si, correndo ao lado do escocês
Jackie Stewart. Contudo, o estúdio de Hollywood vetou a sua participação, deixando-o fazer o filme.
Contudo, apesar das cenas realistas e da participação de diversos pilotos,
"Le Mans", estreado em 1971, foi um fracasso de bilheteira. Contudo, com o passar dos anos, tornou-se um clássico de culto e ajudou a cimentar a lenda de McQueen, que acabaria por morrer nove anos depois, em 1980. Um ano antes, em 1979, outro ator de Hollywood,
Paul Newman, entrou num Porsche 935 e acabou a prova no segundo posto. A presença de McQueen, Newman, e a entrada de Hollywood em cena mostra até que ponto a corrida tinha ficado na imaginação das pessoas em paragens americanas. Mas durante a década de 70, isso diminuiu um pouco em favor de outros assuntos, outros desportos.
Três anos parecem não ser nada em termos automobilísticos, mas as mentalidades tinham mudando. A segurança começava a ser um tópico fortemente discutido, e todos, desde os pilotos aos organizadores, sentiam que tinham de fazer algumas coisas nesse capítulo. O acidente de Jackie Stewart no GP da Bélgica de 1966, uma semana antes das 24 horas daquele ano, despertou no piloto escocês a ideia de que eles não poderiam mais entrar nos cockpits dos seus carros sem ter garantias de que poderiam voltar a sair inteiros. A tolerância para com circuitos com limites em fardos de palha, por exemplo, tinha chegado ao fim, e mortes inúteis já eram demasiados.
Nesse tempo, alguns dos pilotos presentes em 1966 já tinham sofrido o seu destino.
Lorenzo Bandini, o piloto que liderou a Ferrari depois da saída de
John Surtees, morreu a 10 de maio de 1967, três dias depois de um acidente no GP do Mónaco, onde foi retirado do seu carro em chamas com 90 por cento do seu corpo queimado e seus pulmões irreversivelmente destruídos. Um ano depois, a 8 de junho de 1968, outro dos italianos da Ferrari,
Ludovico Scarfiotti, sobrinho de
Gianni Agnelli, sofria um acidente fatal quando corria num Porsche numa proa de montanha.
Em contraste,
Phil Hill, piloto da Ferrari no inicio da década, sobreviveu para contar a sua história. Parou de correr em 1967, tornou-se comentarista e restaurador de automóveis e morreu aos 81 anos, a 28 de agosto de 2008.
Nesse ano de 1969, a Ferrari continuara em busca da vitoria em Le Mans, mas eles não sabiam que não iriam mais triunfar em La Sarthe. A Ford, após o seu triunfo, transformou-o em domínio: tinha sido o primeiro nas edições de 1967, com
Dan Gurney e
A.J Foyt, e em 1968, com o mexicano
Pedro Rodriguez e o belga
Lucien Bianchi. E mesmo no triunfo, ele iria assistir de forma indireta ao outro lado das corridas: o seu irmão Mauro Bianchi participava na prova ao volante de um Alpine, numa condução partilhada com o francês Patrick Depailler quando se despistou na zona dos Esses a mais de 220 km/hora, e sofreu uma colisão. O veículo explodiu e Bianchi foi retirado com vida, mas queimado em boa parte do corpo. E mesmo o próprio Lucien não ficou vivo muito mais tempo: em abril, nos testes para as 24 Horas, despistou-se ao volante de um Alfa 33 e bateu contra um poste telefónico, matando-o de imediato.
A vitória de Ickx e Oliver foi a última da Ford em Le Mans. Já tinham alcançado o seu objectivo, outros apareciam no seu horizonte. A ameaça dos pequenos carros japoneses, vindos da Honda, Toyota e Nissan nas vendas de carros na América era uma preocupação. Lee Iaccoca tenta contrariar isso com o modelo Pinto, mas torna-se num fracasso de vendas, sobretudo por causa do defeito no depósito de gasolina que o deixava vulnerável a colisões de traseira. As tensões entre Iaccoca e o "Deuce" foram tais que ele foi despedido em 1978. No ano seguinte, Iaccoca tornou-se no CEO da Chrysler com um objetivo em mente: salvá-la da falência. A sua presença entrou na história como um dos maiores casos de sucesso da história dos automóveis na América e colocou-o no panteão dos grandes dirigentes, ao lado... de Henry Ford II.
A segurança, um tema que em 1966 começava a ser referido, tornou-se gradualmente no centro das atenções. Os carros ficaram mais velozes, e ergueram-se barreiras de segurança de metal, como guard-rails. E certas partes foram modificadas para refletir essa preocupação. A Maison Blanche desapareceu para dar lugar às Curvas Porsche, e a longa reta das Hunaufriéres passou a ter, a partir de 1990, duas chicanes para refrear as velocidades: dois anos antes, um WM-Peugeot, automóvel francês, tinha chegado a um máximo de 400 km/hora. Novas boxes foram construídas em 1991. E as duplas de pilotos passaram a ser triplas. A última dupla vencedora em La Sarthe foi em 1984, com o francês
Jean-Pierre Jassaud e o alemão
Klaus Ludwig, ambos num Porsche 956 Turbo.
Mas em 1969, Ford e Ferrari tinham a companhia da Porsche. Participante secundário desde o inicio dos anos 50, nesse ano trouxeram o modelo 917, que iria mudar o automobilismo para sempre. No ano a seguir, venceu com o britânico
Richard Attwood e o alemão
Hans Herrmann. A Ferrari, como sempre, reagiu com o modelo 512, mas não mais foi capaz de vencer em La Sarthe, mesmo com a injeção de dinheiro da Fiat, que nesse ano chegou a acordo com a marca de Maranello para ficar com 50 por cento da marca, e toda a liberdade que Ferrari queria. Contudo, em 1973, com a chegada do jovem
Luca de Montezemolo, vindo da Fiat, a Scuderia optou por ficar na Formula 1 e deixou a Endurance de vez, pelo menos a nível oficial.
Hoje em dia, a Porsche é a maior vencedora, com 19 vitórias, a última das quais em 2017. A Ferrari é a terceira marca mais triunfadora, com nove vitórias, enquanto a Ford ficou-se pelas quatro, as mesmas que a Alfa Romeo.
TODOS TIVERAM O SEU DESTINO
Quanto às personagens, depois de 1966, o destino os colocou em pontos diferentes. Henry Ford II, depois de alcançar o seu objetivo, concentrou-se nas suas atividades até 1979, altura em que se reformou. Morreu aos 70 anos, a 29 de setembro de 1987, com uma pneumonia.
Enzo Ferrari seguiu-lhe pouco menos de um ano depois, a 14 de agosto de 1988, em Maranello, aos 90 anos de idade.
Carrol Shelby, depois de ter construído carros vencedores e colocado o seu nome nos modelos de estrada da Ford, fechou o negócio no final da década para fazer outras atividades. Regressou no inicio da década de 80, a pedido de Lee Iaccoca, para apimentar os modelos da Dodge, com algum sucesso.
Bateu todas as probabilidades de vida: em 1990, recebeu um coração novo, de um jogador de poker de Las Vegas, então com 38 anos de idade. Seis anos depois, levou um rim novo de um dos seus filhos, e viveu a gozar todo o seu prestígio dos carros que construiu e dos feitos que alcançou até à provecta idade de 89 anos, a 20 de maio de 2012. Já Iaccoca, o homem que fez nome não num, mas em duas companhias de automóveis, viveu ainda mais tempo, acabando por morrer aos 94 anos, a 2 de julho de 2019.
Dos pilotos, quatro deles tornaram-se construtores, com sortes diferentes. Em 1966,
Bruce McLaren já tinha construído carros seus e colocado na Formula 1, mas conheceu sucesso na americana Can-Am. Esperava que
Chris Amon o seguisse, mas em 1967, teve a oferta tentadora de pilotar pela Ferrari, que aceitou. No seu lugar veio
Dennis Hulme, e juntos marcaram história quer na Formula 1, quer na Can-Am. A certa altura, essa competição foi batizada de
"Bruce and Denny Show".
McLaren deu à sua equipa a sua primeira vitória na Formula 1, quando venceu o GP da Bélgica de 1968. A 2 de junho de 1970, quando testava o modelo M8D no circuito britânico de Goodwood, sofreu um acidente fatal. Tinha 32 anos. Seis anos antes, numa homenagem ao americano
Timmy Mayer, morto num acidente no circuito australiano de Longford, numa prova da Tasman Series, uma competição dividida entre a Austrália e a Nova Zelândia, escreveu o seguinte:
"
A noticia de que ele [Mayer] t
eve morte imediata foi um terrível choque para nós, mas quem pode dizer que ele não viu mais, fez mais e aprendeu mais nos seus curtos anos do que muitas pessoas na vida? Fazer algo bem vale tanto a pena que morrer tentando fazê-lo melhor não pode ser imprudente. Seria um desperdício de vida não fazer nada com a capacidade de alguém, pois sinto que a vida é medida em realizações, não em anos."
Amon teve uma carreira longa na Formula 1, Can-Am e na Endurance, mas ficou na história como sendo o melhor piloto que nunca venceu uma corrida. O seu epíteto de "rei do azar" foi de tal forma que
Mário Andretti disse o seguinte:
"se ele fosse coveiro, as pessoas parariam de morrer". Em 1976, depois de ver o acidente de
Niki Lauda em Nurburgring, decidiu pendurar o capacete de vez, dois anos depois de ter tentado ser construtor, sem sucesso. Regressou à sua Nova Zelândia natal e viveu até ao dia 3 de agosto de 2016, quando tinha 73 anos de idade.
Dan Gurney, outro dos pilotos da Ford, acabou por ter a sua hora em 1967, ao lado de A.J. Foyt. Quando chegou ao pódio, pegou na garrafa de champanhe, e em vez de o beber, decidiu despejar o conteúdo nas pessoas à sua volta, incluindo Henry Ford II e a sua esposa. Tornou-se no ritual que todos os pilotos fazem sempre que vão a um pódio. Nessa altura, ele já tinha construído a All American Racers, com alguma ajuda de Carrol Shelby, e uma semana antes, no circuito de Spa-Francochamps, tinha vencido a bordo da sua própria máquina, também batizada de Eagle, com um motor Westlake V12 de três litros.
Gurney correu até 1970 e depois dedicou-se à sua Eagle, especialmente nos Estados Unidos, construindo chassis ao longo de duas décadas e meia, até ao final do século, especialmente na CART. Chegou à velhice e praticamente tornou-se dos últimos a passar à história, morrendo a 14 de janeiro de 2018, aos 87 anos.
John Surtees também teve uma longa carreira no automobilismo. Depois de ter sido despedido da Ferrari, voltou a ganhar na Cooper, e no ano seguinte, triunfou no GP de Itália, em Monza, depois de bater ao "sprint" o carro de
Jack Brabham. Os italianos levaram-lhe em ombros, apesar de ter vencido ao serviço da japonesa Honda, o que mostra a popularidade de
"Big John" em terras italianas não tinha sido beliscada. Tinha sido uma separação amigável, e nunca houve ressentimentos. Correu na BRM antes de em 1970, montar a sua própria equipa. Correu até 1972, e a equipa durou até 1978, e albergou pilotos como
Mike Hilawood, outro piloto de motos que se aventurou nas quatro rodas, o brasileiro
José Carlos Pace, o britânico
John Watson, o australiano
Alan Jones e o italiano
Vittorio Brambilla, mas nunca venceu corridas.
Surtees retirou-se, mas reapareceu em 2008 para apoiar o seu filho Henry, que estava a tentar chegar à Formula 1. Contudo, a 19 de julho de 2009, numa prova de Formula 2 em Brands Hatch, ele levou com uma roda no seu capacete, causada por um acidente entre outros dois pilotos que lhe causou a sua morte. O pai decidiu criar uma fundação com o seu nome e lá permaneceu até morrer, a 10 de março de 2017, aos 83 anos.
Dennis Hulme, o parceiro de Miles na edição de 1966, tornou-se no único campeão do mundo do seu país natal e triunfou também na Can-Am. Quando McLaren morreu, tornou-se alma da equipa até 1974, ano em que se retirou. Precisamente o ano em que a marca alcançou o seu primeiro título mundial com o seu companheiro de equipa, o brasileiro
Emerson Fittipaldi, ao volante. Não ficou muito tempo na reforma na sua terra natal, pois em meados da década de 80, saltou para os Turismos, e foi a bordo de um BMW Série 3 que a 6 de outubro de 1992, quando disputava a Bathurst 1000, a prova mais importante do automobilismo australiano, sofreu um ataque cardíaco fatal quando estava ao volante.
O impacto da Ford no automobilismo foi enorme, não só na Endurance. No mesmo ano em que Ford bate a Ferrari em Le Mans, o executivo britânico
Walter Hayes, amigo pessoal de Henry Ford II, pede a dois preparadores compatriotas seus,
Mike Costin e
Keith Duckworth, para fazer um motor V8 de três litros para a Formula 1. Quando se estreou, nos Lotus 49 de
Jim Clark e
Graham Hill, no GP da Holanda de 1967, acabou por triunfar nas mãos do piloto escocês. O que nem Clark, Hayes, Costin, Duckworth e outros não imaginavam nesse dia em Zandvoort era que essa iria ser a primeira de 155 vitórias, até 1983, quando o italiano
Michele Alboreto cortou a meta na primeira posição no GP dos Estados Unidos, a bordo do seu Tyrrell. Simbolicamente, a corrida nesse ano aconteceu nas ruas de Detroit, a capital do automóvel americano. A Ford, em ambas as margens do Atlântico, marcou uma era.
CONCLUSÃO
Como já viram, não é a primeira vez que Hollywood se aventura na clássica de Endurance. Mas aos que já viram
"Ford versus Ferrari" ou
"Le Mans' 66", ou aos que vão ver, não esperem ver isto tudo tudo enfiado em duas horas e meia de filme. O que se trata, acima de tudo, é da relação entre duas pessoas com um objetivo em comum: bater os europeus na sua própria coutada. Antes da Ford chegar, os americanos nunca se tinham verdadeiramente interessado em correr na Europa. Esta é a sua primeira grande ofensiva.
"Ford versus Ferrari" é um filme americano, logo, sabemos que é uma história contada pelo lado vencedor. O americano gosta de uma história destas, onde eles são os inferiores, trabalharam para isso e acabaram por ficar com os louros. O que este filme se trata são das relações humanas. De pilotos com carisma, que não querem ter a ver com corporativismos, de pessoas que sempre fizeram o que gostaram e conseguiram o seu lugar na história. Os "gearheads" mais empedernidos vão se desiludir, mas quando eles escrevem na tela "baseado numa história real" não vão colocar as coisas a cem por cento. Nunca.
O meu conselho que dou aos que vão ver o filme é ter um espírito aberto e aceitar as liberdades que farão e se divirtam nesse tempo que irá durar o filme. E celebrar o facto que estão a fazer uma coisa destas e não ser aquela horribilidade como foi que Silverster Stallone fez há quase vinte anos com o "Driven". Esta história, de tão rica em pormenores, como acabaram de ler ao longo destes dias, não merece um filme, mas sim uma série da Netflix. Isso sim, seria algo do qual valesse a pena.