Quase uma semana depois da sua morte, e depois do fim de semana competitivo, acho que é altura de mostrar a nós, o comum dos mortais, quem foi este senhor que nos mostrou a Formula 1 na sua boa e má faceta. Ir mais para além do simples "nasceu a... e morreu a...". Porque a vida de Bernard Cahier merece ser contada.
A história da Formula 1 é feita de pilotos, carros e marcas míticas. Milhares lá passaram, e muitos deles elevaram-se à categoria de heróis, alguns com carga trágica, mitos que não morrem com o passar dos anos. E muitos desses homens, máquinas e pilotos foram capturados pela máquina de um francês, Bernard Cahier, que andou por lá desde quase o seu inicio, em 1952, até 1984, altura em que decidiu passar o testemunho ao seu filho, Paul-Henri Cahier. Mas ele foi muito mais do que fotógrafo. Aliás, a fotografia e a formula 1 apareceram por acaso…
Nasceu em 1927 na Normandia, e o primeiro Grande Prémio que viu foi aos cinco anos, em Miramas, perto de Marselha. Ficou encantado. Aos 17 anos, em plena Ocupação, começou a participar activamente na Resistência francesa. Em 1944, quando os Aliados chegaram, Cahier esteve integrado na II Divisão do General Leclerc, das Forças Francesas Livres, encarregue da desminagem dos caminhos até à Alemanha. Quando a II Guerra acabou, foi trabalhar numa firma de importação e exportação, e em 1948 foi para os Estados Unidos, estudar na UCLA. Contudo, esteve por lá pouco tempo e começou a trabalhar num concessionário automóveis, representante de várias marcas inglesas e europeias. E foi lá que conheceu dois pilotos: Richie Ginther e Phil Hill.
Em 1951, depois de se casar com a americana Joan e começar a sua carreira de fotógrafo, volta para a Europa. Nessa altura, uma revista americana pede a ele que faça a cobertura dos Grandes Prémios europeus, começando no GP de Itália de 1952, ganho por Alberto Ascari. Os editores gostaram do seu trabalho, e no ano seguinte, foi fazer a cobertura do campeonato do Mundo de formula 1, mais as mais importantes provas de turismo, como as Mille Miglia, a Targa Florio ou as 24 Horas de Le Mans.
“A verdade é que, nesse tempo, a única restrição que existia era a coragem do fotógrafo! Às vezes estávamos tão perto da pista que, se esticávamos o braço, tocávamos nos carros. A esse propósito recordo-me, numa prova de carros de Sport em 1957, em Sebring, dei uma garrafa de Coca-Cola a Stirling Moss, num gancho. O público ficou muito surpreendido, mais ainda mais ficou quando, na volta seguinte, Stirling me devolveu a garrafa vazia! No fim da corrida, veio ter comigo e na brincadeira, pediu o dinheiro do depósito…” contou Cahier em 2003, no livro Grand Prix.
Cahier aproveitou esse tempo para criar amizades com imensos pilotos, mesmo sabendo do lado negativo das corridas, ou seja, as mortes dos pilotos em pista. “Estava em Milão, a caminho de Monza, e ouvi um grande alvoroço, com alguém a dizer que Ascari tinha morrido. Fui para o circuito e encontrei Eugénio Castelloti. Contou-me que estava a fazer os testes do novo Ferrari 750 Sport - um carro muito rápido e igualmente perigoso – quando Ascari, curioso, quis dar uma volta. Nem tinha levado capacete, e acabou por usar o de Castelloti. Era hora do almoço e não se sabe o que aconteceu. Talvez um pneu rebentado ou um diferencial partido, só se sabe é que despistou e morreu”, contou, descrevendo o acidente mortal de Alberto Ascari, em 1955.
Mas não foi só momentos tristes que ele teve. Um dos momentos que mais recordava era o GP da Alemanha de 1957, famosa por ter sido palco da mais épica e última vitória de Juan Manuel Fangio: “ A melhor corrida de Formula 1 que jamais assisti. Todas as pessoas que lá estavam são unânimes, foi mítico.”
Outra das amizades que cultivou ao longo dos tempos foi a Enzo Ferrari.
“Ferrari vivia em Maranello como um Imperador. Quando não tinha muito interesse em receber alguém, fazia o esperar durante duas horas ou mais, sem razão aparente. Até o Rei da Bélgica passou por isso… A sala dele era pontada de branco e não tinha decoração, para além de umas cadeiras e uma mesa. Uma vez disse-me, na brincadeira, que ia fazer uma placa de homenagem ao visitante desconhecido, encontrado morto na sala de espera!...”
“Era um homem extraordinário, um administrador implacável, que gostava de controlar todos os detalhes. Não ia às corridas desde a morte de Guy Moll, em 1933 (…) no final de cada corrida ou teste, os chefes de equipa telefonavam a Enzo Ferrari, com todas as informações. O Commendatore queria saber tudo e todas as decisões – favorecer este e aquele piloto, exercer pressão sobre aquele membro da equipa – eram tomas apenas e só por ele. Quase todos os problemas tiveram problemas com essa situação. Hawthorn, Behra, Surtees. Hill, entre outros, abandonaram a equipa por motivos pessoais. Outros, como De Portago, Collins, Bandini, estavam sob grande pressão quando tiveram os seus acidentes fatais.”
Quanto aos pilotos que viu correr, dizia que o melhor era Juan Manuel Fangio. “Foi penta-campeão do mundo com quatro marcas diferentes.” Mas dos outros que lhe vieram a seguir, teve também elogios: “Jim Clark foi um piloto fabuloso. Com ele, a Lotus era praticamente imbatível. Jackie Stewart era como foi Prost mais tarde: rápido, organizado e muito profissional. Mas Ayrton Senna foi o mais próximo do nível de Fangio (…) a sua performance em qualificação e os resultados com automóveis potencialmente mais fracos, coloca-o numa posição muito especial. Penso que Michael Schumacher, apesar de ser muito cbom, não é comparável a estes dois pilotos.”
E, 1968, Cahier decidiu criar a IRPA (International Racing Press Assotiation), no sentido de defender os interesses dos profissionais da comunicação social, jornalistas e fotógrafos, que se manteve durante mais de vinte anos. Era respeitado por todos, desde os organizadores até aos pilotos, passando pela entidade federativa. Mas quando Jean-Marie Ballestre chegou ao poder da então FISA, em 1979, as coisas mudaram um pouco. “Enquanto durou a Guerra FISA-FOCA, Ballestre rodeou-me de mimos, porque lhe interessava ter o apoio da organização, do qual eu era o presidente. A partir do momento em que Ballestre e Bernie Ecclestone se entenderam, no Pacto da Concórdia, a situação mudou.”
A situação mais caricata aconteceu no GP de França de 1984, quando Ballestre lhe recusou a credencial, devido ao facto da associação ter-se solidarizado com um jornalista barrado no Brasil, devido a um artigo onde se falava mal do então presidente da FISA. Apesar do veto, Cahier cobriu o acontecimento na mesma: “No Grande Premio de França de 1984 (…) ele recusou a minha acreditação, como represália. Eu, que tinha acesso à corrida – não só conhecia os organizadores, como as equipas e os seus responsáveis – decidi que não iria acatar essa decisão. Achei que devia proteger o meu direito a trabalhar e não deveria ceder ou contronar uma atitude tão grave e prepotente. O próprio Ministério do Desporto francês telefonou a Ballestre, exigindo explicações pela atitude dele. E no dia dos treinos fui ao circuito e não tive quaisquer problemas em fazer o meu trabalho.”
Contudo, no final dos anos 80, a IRPA estava extinta, e Cahier afastou-se das corridas, entregando a tarefa para o seu filho Paul-Henri. Foi gozar a reforma para Evian, onde cuidava do imenso arquivo pessoal, que o transformou no Cahier Archives. Era presença esporádica nos circuitos, mas referia que aquilo “era um grande negócio”. Contudo… “tenho muito a agradecer à Formula 1. Tive a sorte de trabalhar num período extraordinário e puro deste desporto, que, receio, não voltará a repetir-se”.
Ars lunga, vita brevis, Bernard.
Nasceu em 1927 na Normandia, e o primeiro Grande Prémio que viu foi aos cinco anos, em Miramas, perto de Marselha. Ficou encantado. Aos 17 anos, em plena Ocupação, começou a participar activamente na Resistência francesa. Em 1944, quando os Aliados chegaram, Cahier esteve integrado na II Divisão do General Leclerc, das Forças Francesas Livres, encarregue da desminagem dos caminhos até à Alemanha. Quando a II Guerra acabou, foi trabalhar numa firma de importação e exportação, e em 1948 foi para os Estados Unidos, estudar na UCLA. Contudo, esteve por lá pouco tempo e começou a trabalhar num concessionário automóveis, representante de várias marcas inglesas e europeias. E foi lá que conheceu dois pilotos: Richie Ginther e Phil Hill.
Em 1951, depois de se casar com a americana Joan e começar a sua carreira de fotógrafo, volta para a Europa. Nessa altura, uma revista americana pede a ele que faça a cobertura dos Grandes Prémios europeus, começando no GP de Itália de 1952, ganho por Alberto Ascari. Os editores gostaram do seu trabalho, e no ano seguinte, foi fazer a cobertura do campeonato do Mundo de formula 1, mais as mais importantes provas de turismo, como as Mille Miglia, a Targa Florio ou as 24 Horas de Le Mans.
“A verdade é que, nesse tempo, a única restrição que existia era a coragem do fotógrafo! Às vezes estávamos tão perto da pista que, se esticávamos o braço, tocávamos nos carros. A esse propósito recordo-me, numa prova de carros de Sport em 1957, em Sebring, dei uma garrafa de Coca-Cola a Stirling Moss, num gancho. O público ficou muito surpreendido, mais ainda mais ficou quando, na volta seguinte, Stirling me devolveu a garrafa vazia! No fim da corrida, veio ter comigo e na brincadeira, pediu o dinheiro do depósito…” contou Cahier em 2003, no livro Grand Prix.
Cahier aproveitou esse tempo para criar amizades com imensos pilotos, mesmo sabendo do lado negativo das corridas, ou seja, as mortes dos pilotos em pista. “Estava em Milão, a caminho de Monza, e ouvi um grande alvoroço, com alguém a dizer que Ascari tinha morrido. Fui para o circuito e encontrei Eugénio Castelloti. Contou-me que estava a fazer os testes do novo Ferrari 750 Sport - um carro muito rápido e igualmente perigoso – quando Ascari, curioso, quis dar uma volta. Nem tinha levado capacete, e acabou por usar o de Castelloti. Era hora do almoço e não se sabe o que aconteceu. Talvez um pneu rebentado ou um diferencial partido, só se sabe é que despistou e morreu”, contou, descrevendo o acidente mortal de Alberto Ascari, em 1955.
Mas não foi só momentos tristes que ele teve. Um dos momentos que mais recordava era o GP da Alemanha de 1957, famosa por ter sido palco da mais épica e última vitória de Juan Manuel Fangio: “ A melhor corrida de Formula 1 que jamais assisti. Todas as pessoas que lá estavam são unânimes, foi mítico.”
Outra das amizades que cultivou ao longo dos tempos foi a Enzo Ferrari.
“Ferrari vivia em Maranello como um Imperador. Quando não tinha muito interesse em receber alguém, fazia o esperar durante duas horas ou mais, sem razão aparente. Até o Rei da Bélgica passou por isso… A sala dele era pontada de branco e não tinha decoração, para além de umas cadeiras e uma mesa. Uma vez disse-me, na brincadeira, que ia fazer uma placa de homenagem ao visitante desconhecido, encontrado morto na sala de espera!...”
“Era um homem extraordinário, um administrador implacável, que gostava de controlar todos os detalhes. Não ia às corridas desde a morte de Guy Moll, em 1933 (…) no final de cada corrida ou teste, os chefes de equipa telefonavam a Enzo Ferrari, com todas as informações. O Commendatore queria saber tudo e todas as decisões – favorecer este e aquele piloto, exercer pressão sobre aquele membro da equipa – eram tomas apenas e só por ele. Quase todos os problemas tiveram problemas com essa situação. Hawthorn, Behra, Surtees. Hill, entre outros, abandonaram a equipa por motivos pessoais. Outros, como De Portago, Collins, Bandini, estavam sob grande pressão quando tiveram os seus acidentes fatais.”
Quanto aos pilotos que viu correr, dizia que o melhor era Juan Manuel Fangio. “Foi penta-campeão do mundo com quatro marcas diferentes.” Mas dos outros que lhe vieram a seguir, teve também elogios: “Jim Clark foi um piloto fabuloso. Com ele, a Lotus era praticamente imbatível. Jackie Stewart era como foi Prost mais tarde: rápido, organizado e muito profissional. Mas Ayrton Senna foi o mais próximo do nível de Fangio (…) a sua performance em qualificação e os resultados com automóveis potencialmente mais fracos, coloca-o numa posição muito especial. Penso que Michael Schumacher, apesar de ser muito cbom, não é comparável a estes dois pilotos.”
E, 1968, Cahier decidiu criar a IRPA (International Racing Press Assotiation), no sentido de defender os interesses dos profissionais da comunicação social, jornalistas e fotógrafos, que se manteve durante mais de vinte anos. Era respeitado por todos, desde os organizadores até aos pilotos, passando pela entidade federativa. Mas quando Jean-Marie Ballestre chegou ao poder da então FISA, em 1979, as coisas mudaram um pouco. “Enquanto durou a Guerra FISA-FOCA, Ballestre rodeou-me de mimos, porque lhe interessava ter o apoio da organização, do qual eu era o presidente. A partir do momento em que Ballestre e Bernie Ecclestone se entenderam, no Pacto da Concórdia, a situação mudou.”
A situação mais caricata aconteceu no GP de França de 1984, quando Ballestre lhe recusou a credencial, devido ao facto da associação ter-se solidarizado com um jornalista barrado no Brasil, devido a um artigo onde se falava mal do então presidente da FISA. Apesar do veto, Cahier cobriu o acontecimento na mesma: “No Grande Premio de França de 1984 (…) ele recusou a minha acreditação, como represália. Eu, que tinha acesso à corrida – não só conhecia os organizadores, como as equipas e os seus responsáveis – decidi que não iria acatar essa decisão. Achei que devia proteger o meu direito a trabalhar e não deveria ceder ou contronar uma atitude tão grave e prepotente. O próprio Ministério do Desporto francês telefonou a Ballestre, exigindo explicações pela atitude dele. E no dia dos treinos fui ao circuito e não tive quaisquer problemas em fazer o meu trabalho.”
Contudo, no final dos anos 80, a IRPA estava extinta, e Cahier afastou-se das corridas, entregando a tarefa para o seu filho Paul-Henri. Foi gozar a reforma para Evian, onde cuidava do imenso arquivo pessoal, que o transformou no Cahier Archives. Era presença esporádica nos circuitos, mas referia que aquilo “era um grande negócio”. Contudo… “tenho muito a agradecer à Formula 1. Tive a sorte de trabalhar num período extraordinário e puro deste desporto, que, receio, não voltará a repetir-se”.
Ars lunga, vita brevis, Bernard.
Eu admirava Bernard Cahier por suas fotos, mas este texto me deu outras inúmeras razões. Que cara fantástico!
ResponderEliminarMeu caro, o melhor de visitar o seu blog é o tanto que aprendo.
ResponderEliminarNão tinha idéia da grandeza de B. Cahiers, só sabia que era um antigo fotógrafo da F1. Parabéns pelo artigo, me deu ganas de pesquisar mais sobre ele.
Daniel, Paulo:
ResponderEliminarObrigado. A piada do blog é esta: pesquisar para apresentar outras facetas do automobilismo. Se conseguir com que outros fiquem interessados sobre determinado assunto, já ganhei o dia!