sábado, 23 de janeiro de 2010

A consciência politica do automobilismo

Ando a ler por estes dias o livro "Invictus", do jornalista inglês John Carlin, que deu origem no filme do mesmo nome, realizado por Clint Eastwood, com Morgan Freeman como Nelson Mandela e Matt Damon como Francois Pienaar, o capitão da selecção sul-africana de rugby, no Mundial de 1995, que foi ganho pela selecção da casa. O filme trata da transição sul-africana do apartheid para a uma democracia pluripartidária e pluriracial e como Mandela usou um desporto de brancos, o rugby, para unir um pais inteiro sob a mesma bandeira, esquecendo não só as raças, como também as tribos.

Conhecendo como conheci esses tempos, não só pelas noticias como também pelos exemplos pessoais na familia, pois na altura tinha parentes relativcamnte distantes a viverem na Africa do Sul, ao ler a história e sabendo todos nós que aquele país irá receber o Mundial de futebol, e sabendo também como toda a gente gosta de dizer que o desporto serve como ponte para desanuviar tensões politicas, dei por mim a pensar qual foi a contribuição do automobilismo para momentos como estes. E confesso que cheguei à conclusão de que... não me ocorre nada.

Aliás, recordo mais de momentos de desafio do que propriamente bons exemplos. A Africa do Sul do tempo do "apartheid" é o mais flagrante. Quando esta já tinha sido expulsa há muito da FIFA e do Comité Olimpico Internacional, a Formula 1 não tinha quaisquer problemas em colocar o país no calendário e usar a pista de Kyalami até meados dos anos 80. Somente em 1985 é que percebeu o embaraço que era usar a corrida sul-africana no calendário, num país onde os negros eram cidadãos de segunda categoria. E esse embaraço veio na forma de pressões governamentais de países como a França e Grã-Bretanha às equipas para não participar nesse Grande Prémio. Ligier e Renault não foram, por "persuasão" do então presidente Francois Mitterand, e alinharam apenas 20 dos 26 carros que costumavam correr. A Formula 1 só voltou a correr em 1992, com a abolição das leis segregacionistas.

O automobilismo ligou muito pouco, ou nada, a questões como os direitos humanos, por exemplo. É certo e sabido que corre nas Arábias, que não são democracias. Corre na China, que é uma ditadura comunista. E correu no passado em países que formalmente ou eram regimes autoritários, ou viviam sob juntas militares, que torturavam e matavam os seus opositores, sob o pretexto de estarem "em guerra". Brasil e Argentina, na segunda metade dos anos 70, são dois excelentes exemplos. E a Hungria, entre 1986 e 1989, era formalmente um regime de partido unico, antes da queda da Cortina de Ferro.

É certo que outras modalidades não andam longe desta. No futebol, o Mundial de 1978 foi disputado numa Argentina que vibrava com a sua selecção de dia, mas à noite o seu regime militar colocava presos politicos em aviões da Força Aérea para o estuário do Rio da Prata, com bilhete só de ida...

Mas por vezes, existiam reacções. Numa era de Guerra Fria, os boicotes dos Jogos Olimpicos de 1980 e 84, de ambas as superpotências militares de então, os Estados Unidos e a União Soviética, causaram impacto politico e social, mas prejudicaram então a carreira de muitos atletas. Logo, a utilização de eventos desportivos como arma politica, no sentido de prejudicar, era tão devastador como por exemplo, o atentato terrorista à delegação israelita nos Jogos Olimpicos de Munique, em 1972.

Mas estou a fugir um bocado do assunto para chegar a um ponto: tirando casos pontuais, a Formula 1 liga pouco à politica, no sentido dos exemplos anteriores. Aliás, há mais casos contrários. Desde os seus primórdios, o automobilismo foi usado pelos regimes de vários países para valorizar a superioridade das tecnologias dos seus paises. O melhor exemplo foi o periodo de entre as duas guerras, quando a Alemanha nazi investiu muito forte nas seus "Flechas de Prata" da Mercedes e da Auto Union, pois Adolf Hitler era um amante do automobilismo. E Benito Mussolini ajudou muito a Fiat e a Alfa Romeo nos anos 20 e 30.

E em termos de solidariedade social, não há exemplos de colectivo, apenas os casos individuais dos pilotos, que claro, pensam pela sua própria cabeça. A Formula 1, digamos assim, tem a mesma mentalidade que o Estado do Nevada: aceita todo o tipo de dinheiro, desde que seja formalmente legal. Os patrocinios das tabaqueiras, do final dos anos 60 aos anos 90, é o exemplo mais flagrante disso. E tirando o exemplo da segurança na estrada, só me recordo do caso do racismo ao Lewis Hamiltion que resultou numa campanha de prevenção, mas cujo impacto não foi assim tão importante.

Em jeito de conclusão, temo que sejamos, para muitos dos que nos vêm de fora, um mau exemplo politico.

5 comentários:

  1. Belo texto. Bela lembrança.
    A F1 dos velhos tempos, com tantas virtudes que gostamos de lembrar, tem essa mancha vergonhosa no seu curriculum: conviveu e legitimou o apartheid, como cúmplice e camarada.
    Parabéns, Speeder.

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  2. é verdade, a presença da categoria na terrível ditadura argentina e na época do apartheid, mais do que uma falta de interés pelo entorno social do espectáculo foi um apoio solapado a estes governos. o governo Argentino promovia o evento como se fosse uma amostra do progresso provido pela ditadura, segundo familiares que alí moraram durante os setenta

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  3. Mais um grande, gigante post! Me lembrei de qdo a F1 foi obrigada a correr em Avus ao inves de nurburgring, por razoes financeiras...vou ateh escrever sobre! Lembrei tbem da recente copa do mundo china-koreia, mas n sei a real mudanca social por la passado o evento.... Abracos!

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  4. Infelizmente a política mancha qualquer coisa que toca. E não há santos na história, em nenhum lugar do mundo. Estão aí Guantanamo e os centros de tortura "terceirizados" pelos U.S.A espalhados pelos quatro cantos do globo. Se a ditadura sul-africana durou tanto tempo é porque de um jeito ou de outro era util para algum regime ou ideologia. Basta ver a história de Biafra, a gerra em Angola e o Congo. Talvez devêssemos enxergar a F-1 como a essência do capitalismo. Dando lucro o sistema de regime é o que menos importa.

    Abraços

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  5. Speeder, e não nos esqueçamos que a F1 correu no Brasil e na Argentina durante as ditaduras civis-militares dos anos 60, 70 e 80.

    Ando sem tempo de ler os blogs e, quando faço, desconto vários dias em uma só tacada...

    Comentário à parte: a entrevista que dei para o Continental Circus no ano passado marcou o início de uma série. Dei uma para o Motorpassion, do Rianov, e outra para o "Jornalistas & Cia - Imprensa Automotiva", uma newsletter sobre movimentação nas redações e assessorias. Se quiser dar uma olhada, acesse www.jornalistasecia.com.br e clique no número 40.

    Abração! (LAP)

    Abração para você, meu caro! (LAP)

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Comentem à vontade, mas gostava que se identificassem, porque apago os anónimos, por bem intencionados que estejam...