Thomas Nel já estava a caminho dos seus sessenta anos, mas toda a gente sabia que era um dos melhores mecânicos do país, afirmando até que nunca tinham encontrado niguém melhor do que ele. Aprendeu o oficio quando foi para a tropa, para reparar camiões nas dificeis condições do Norte de Africa, na II Guerra Mundial. No final de 1946, já desmobilizado do Exército, voltou ao seu país com intenção de abrir a sua própria oficina, mas precisava de dinheiro. A meio do caminho conheceu um jovem da sua idade, chamado Frederik Kruger, que tinha a sua própria oficina, num sitio não muito longe de Joanesburgo chamado Krugersdorp, e empregava todos os que tinham talento para tal.
Parente distante do famoso Paul Kruger, Frederik tinha um irmão mais novo, Henrik, que tinha talento para ser piloto, mas nunca tinha tido oportunidade para tal. Os dois tinham prosperado ao expandir a oficina deles para uma rede de concessionários de algumas marcas de automóveis de origem alemã em Joanesburgo e arredores, para a classe média branca. Frederik tinha até ido a Estugarda para convencer a Porsche para que importasse os seus modelos para o seu país. O resultado é que ficou com o exclusivo para a Africa do Sul, o que fez com que tivesse concessionários na Cidade do Cabo e em Durban.
A prosperidade fez com que Henrik almejasse o sonho antigo de ser piloto. No inicio da década, foi ver uma corrida em Kilarney, nos arredores da Cidade do Cabo, e serviu de assitência ao Porsche 718 conduzido pelo sueco Peter Holmgren, e para isso trouxe Nel consigo. O trabalho ficou tão bem feito, pois Holmgren, mesmo contra BRM's e Jordans superiores a ele, conseguiu vencer a corrida.
No final, Henrik comprou o Porsche e pediu ao seu mecânico que o acompanhasse em algumas corridas no activo campeonato sul-africano de Formula 1. Estavamos em 1962, e aos 34 anos, iria começar a sua carreira... com o tempo, tornou-se num dos melhores no seu país, primeiro nesse Porsche e depois noutros modelos como Jordan e Eagle, e feito amizade com outros pilotos como Dan Gurney e Bruce McLaren. Ia regularmente à Europa, especialmente para conduzir provas de Endurance, como os 1000 km de Monza ou as 24 Horas de Le Mans. E em 1966, ao lado de Pete Aaron, tornou-se no primeiro sul-africano a conseguir vencer essa corrida, num Ford GT40.
Henrik ficou tão marcado pelo carro que resolvou comprá-lo e levá-lo para o seu país. Corria regularmente quer nas 9 Horas de Kyalami, com outros locais, ou com convidados como os seus amigos americanos Aaron ou Gurney. Também corria em provas fora do seu pais, nomeadamente na Rodésia, e também em Angola e Moçambique, possesões portuguesas onde a fome pelas corridas era tão grande como aqui.
Como toda a gente, ele era casado com uma bela mulher chamada Jane, e tiveram somente uma filha, Jacqueline, nascida em 1952. De quando em vez, ela ia às corridas para tirar fotografias dos eventos, e normalmente elas serviam para ilustrar as capas das revistas especializadas, dado que era filha de um dono de uma loja de fotografias, logo, já sabia do oficio desde criança...
Contudo, num dia de Junho de 1969, as coisas iriam acabar mal. No inicio do ano, Henrik tinha combinado ir a Angola para participar numa corrida, e ele era o cabeça de cartaz. Já nos seus quarentas, pensava em sucessores, e descobrira um rapaz talentoso, de seu nome Philip De Villiers. Chamavam-lhe "cão raivoso" devido ao seu jeito selvagem de condução, dando o seu melhor até rebentar com qualquer coisa: o motor, os chassis, senão ele próprio... Henrik convidara-o para conduzir o carro em Luanda, mas a poucos dias da corrida, tem um acidente forte em Sailsbury, na Rodésia, onde somente torce o pulso esquerdo, impossibilitando-o de correr. Relativamente contrariado, foi correr no seu Ford GT40, aquele que lhe deu a sua maior alegria desportiva. A sua mulher foi com ele, para tirar fotos da corrida, e Thomas veio para afinar o carro.
No final dos anos 60, as corridas naquele país aconteciam no centro das cidades, com enchentes garantidas, dado que a população adorava ver corridas. Contudo, a organização decidiu tomar uma posição controversa, invertendo a grelha de partida, colocando carros como BMW 2002, Porsche 911 ou Lotus 47 na frente da grelha, relegando os GT40 e um Porsche 908, bastante mais potentes, para o final da grelha, muito mais velozes do que, por exemplo, um Mini Cooper.
Todos no meio receavam que esta decisão, ainda mais num circuito urbano em pleno centro de Luanda, desse para o torto. E o pior momento para isso acontecer seria na partida, onde obviamente todos se queriam livrar dos mais lentos, dessem onde dessem. A mulher de Henrik, que tinha uma credencial de fotografo, foi para uma curva onde costumavam estar os profissionais da comunicação, e torcia para que tudo corresse sem incidentes.
Mas nada disso aconteceu. Sob um céu limpo de um final de Maio, os vinte e dois carros alinhavam na grelha de uma corrida... que acabou na primeira curva. Kruger estava ao lado de outro GT40 de um local chamado João Gomes e de um Porsche 908 do rodesiano Patrick Youngblood, um dos seus rivais no país, e ambos largaram, tentando fintar os carros mais lentos. Só que os dois GT40 lembraram-se de seguir no mesmo lado e bateram fortemente, envolvendo um BMW 2002 de outro piloto local, Armando Sá. Os três carros, descontrolados, embateram na primeira curva, provocando uma carambola, e no caos, um dos GT40 bateu na multidão presente, matando nove pessoas, quase todos fotógrafos.
Mais três pessoas tinham morrido alguns metros atrás, quando o outro GT40 de Kruger bateu num poste de iluminação, tendo projectado as pessoas que lá estavam. Este caiu com o violento embate em cima da cabeça de Henrik, matando-o instantaneamente. Assim não soube que a sua mulher tinha sido uma das atingidas pelo outro GT40, tendo morrido no dia seguinte no hospital...
Assim, Thomas Nel voltava para a Africa do Sul com os restos mortais do seu amigo e da sua mulher, bem com aquilo que restava do carro. E mais do que ter sido ele a recolher os restos mortais, era dar a noticia ao irmão e à jovem Jackie, filha de Henrik... foram dias sombrios para ele, pois desconhecia se a estrutura que tinha ajudado a montar teria futuro.
Foram de facto dias sombrios para todos, mas à medida que o ano de 1969 chegava ao fim, Frederik Kruger refletiu sobre os acontecimentos de Luanda e sobre as grandes responsabilidades que tinha em cima de si. Os negócios, a estrutura de corridas, a sobrinha orfã e o jovem novato que o seu irmão tinha arranjado antes de morrer. Primeiro confiou a Thomas para que a estrutura continuasse com os compromissos assumidos até Dezembro, e depois pensaria no que fazer. A ideia de desfazer o negócio passou-lhe pela cabeça, mas à medida que via como o seu amigo mecânico se safava, pensou duas vezes e decidiu confiar-lhe o negócio. Ainda por cima, a sobrinha parecia entender-se bem por ali, e julgou que seria uma boa terapia para amenizar o vazio que tinha dentro dela.
O que ele não sabia era que ela decidira ficar ligado ao automobilismo, da forma menos ortodoxa possivel. E a década que aí viria a seguir, uma década que queria ser nova em tudo, mostraria isso.
(continua)
Parente distante do famoso Paul Kruger, Frederik tinha um irmão mais novo, Henrik, que tinha talento para ser piloto, mas nunca tinha tido oportunidade para tal. Os dois tinham prosperado ao expandir a oficina deles para uma rede de concessionários de algumas marcas de automóveis de origem alemã em Joanesburgo e arredores, para a classe média branca. Frederik tinha até ido a Estugarda para convencer a Porsche para que importasse os seus modelos para o seu país. O resultado é que ficou com o exclusivo para a Africa do Sul, o que fez com que tivesse concessionários na Cidade do Cabo e em Durban.
A prosperidade fez com que Henrik almejasse o sonho antigo de ser piloto. No inicio da década, foi ver uma corrida em Kilarney, nos arredores da Cidade do Cabo, e serviu de assitência ao Porsche 718 conduzido pelo sueco Peter Holmgren, e para isso trouxe Nel consigo. O trabalho ficou tão bem feito, pois Holmgren, mesmo contra BRM's e Jordans superiores a ele, conseguiu vencer a corrida.
No final, Henrik comprou o Porsche e pediu ao seu mecânico que o acompanhasse em algumas corridas no activo campeonato sul-africano de Formula 1. Estavamos em 1962, e aos 34 anos, iria começar a sua carreira... com o tempo, tornou-se num dos melhores no seu país, primeiro nesse Porsche e depois noutros modelos como Jordan e Eagle, e feito amizade com outros pilotos como Dan Gurney e Bruce McLaren. Ia regularmente à Europa, especialmente para conduzir provas de Endurance, como os 1000 km de Monza ou as 24 Horas de Le Mans. E em 1966, ao lado de Pete Aaron, tornou-se no primeiro sul-africano a conseguir vencer essa corrida, num Ford GT40.
Henrik ficou tão marcado pelo carro que resolvou comprá-lo e levá-lo para o seu país. Corria regularmente quer nas 9 Horas de Kyalami, com outros locais, ou com convidados como os seus amigos americanos Aaron ou Gurney. Também corria em provas fora do seu pais, nomeadamente na Rodésia, e também em Angola e Moçambique, possesões portuguesas onde a fome pelas corridas era tão grande como aqui.
Como toda a gente, ele era casado com uma bela mulher chamada Jane, e tiveram somente uma filha, Jacqueline, nascida em 1952. De quando em vez, ela ia às corridas para tirar fotografias dos eventos, e normalmente elas serviam para ilustrar as capas das revistas especializadas, dado que era filha de um dono de uma loja de fotografias, logo, já sabia do oficio desde criança...
Contudo, num dia de Junho de 1969, as coisas iriam acabar mal. No inicio do ano, Henrik tinha combinado ir a Angola para participar numa corrida, e ele era o cabeça de cartaz. Já nos seus quarentas, pensava em sucessores, e descobrira um rapaz talentoso, de seu nome Philip De Villiers. Chamavam-lhe "cão raivoso" devido ao seu jeito selvagem de condução, dando o seu melhor até rebentar com qualquer coisa: o motor, os chassis, senão ele próprio... Henrik convidara-o para conduzir o carro em Luanda, mas a poucos dias da corrida, tem um acidente forte em Sailsbury, na Rodésia, onde somente torce o pulso esquerdo, impossibilitando-o de correr. Relativamente contrariado, foi correr no seu Ford GT40, aquele que lhe deu a sua maior alegria desportiva. A sua mulher foi com ele, para tirar fotos da corrida, e Thomas veio para afinar o carro.
No final dos anos 60, as corridas naquele país aconteciam no centro das cidades, com enchentes garantidas, dado que a população adorava ver corridas. Contudo, a organização decidiu tomar uma posição controversa, invertendo a grelha de partida, colocando carros como BMW 2002, Porsche 911 ou Lotus 47 na frente da grelha, relegando os GT40 e um Porsche 908, bastante mais potentes, para o final da grelha, muito mais velozes do que, por exemplo, um Mini Cooper.
Todos no meio receavam que esta decisão, ainda mais num circuito urbano em pleno centro de Luanda, desse para o torto. E o pior momento para isso acontecer seria na partida, onde obviamente todos se queriam livrar dos mais lentos, dessem onde dessem. A mulher de Henrik, que tinha uma credencial de fotografo, foi para uma curva onde costumavam estar os profissionais da comunicação, e torcia para que tudo corresse sem incidentes.
Mas nada disso aconteceu. Sob um céu limpo de um final de Maio, os vinte e dois carros alinhavam na grelha de uma corrida... que acabou na primeira curva. Kruger estava ao lado de outro GT40 de um local chamado João Gomes e de um Porsche 908 do rodesiano Patrick Youngblood, um dos seus rivais no país, e ambos largaram, tentando fintar os carros mais lentos. Só que os dois GT40 lembraram-se de seguir no mesmo lado e bateram fortemente, envolvendo um BMW 2002 de outro piloto local, Armando Sá. Os três carros, descontrolados, embateram na primeira curva, provocando uma carambola, e no caos, um dos GT40 bateu na multidão presente, matando nove pessoas, quase todos fotógrafos.
Mais três pessoas tinham morrido alguns metros atrás, quando o outro GT40 de Kruger bateu num poste de iluminação, tendo projectado as pessoas que lá estavam. Este caiu com o violento embate em cima da cabeça de Henrik, matando-o instantaneamente. Assim não soube que a sua mulher tinha sido uma das atingidas pelo outro GT40, tendo morrido no dia seguinte no hospital...
Assim, Thomas Nel voltava para a Africa do Sul com os restos mortais do seu amigo e da sua mulher, bem com aquilo que restava do carro. E mais do que ter sido ele a recolher os restos mortais, era dar a noticia ao irmão e à jovem Jackie, filha de Henrik... foram dias sombrios para ele, pois desconhecia se a estrutura que tinha ajudado a montar teria futuro.
Foram de facto dias sombrios para todos, mas à medida que o ano de 1969 chegava ao fim, Frederik Kruger refletiu sobre os acontecimentos de Luanda e sobre as grandes responsabilidades que tinha em cima de si. Os negócios, a estrutura de corridas, a sobrinha orfã e o jovem novato que o seu irmão tinha arranjado antes de morrer. Primeiro confiou a Thomas para que a estrutura continuasse com os compromissos assumidos até Dezembro, e depois pensaria no que fazer. A ideia de desfazer o negócio passou-lhe pela cabeça, mas à medida que via como o seu amigo mecânico se safava, pensou duas vezes e decidiu confiar-lhe o negócio. Ainda por cima, a sobrinha parecia entender-se bem por ali, e julgou que seria uma boa terapia para amenizar o vazio que tinha dentro dela.
O que ele não sabia era que ela decidira ficar ligado ao automobilismo, da forma menos ortodoxa possivel. E a década que aí viria a seguir, uma década que queria ser nova em tudo, mostraria isso.
(continua)
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