Algures na Califórnia, final de Outubro.
"Hollywood era de facto outro mundo", tinha pensado Alexandre. O mundo que Michael Delaney tinha mostrado de passagem, pois ele não era grande fã, apesar de pagarem a peso de ouro para ser o protagonista dos filmes que os estudios o propunham, tinha passado para as paisagens do Pacífico, com as belas casas e o enorme mar azul que tinham no horizonte, absolutamente unico e fascinente. Tinham vindo da Cidade do México, onde a Apollo queria fechar a temporada com chave de ouro, mas Patrick Van Diemen não o deixou, conseguindo bater Alexandre ao "sprint", na altitude mexicana. Aliás, o piloto sildavo teve de se contentar com um terceiro posto, pois Teddy Solana foi o unico que foi atrás dele e conseguiu o segundo posto. E ainda teve de conter Anders Gustafsson, que queria de uma certa forma alcançar aquilo que não conseguira em Watkins Glen. Mas ficou-se pelo quarto posto, tendo atrás de si o Matra de Pierre Brasseur e o Ferrari de Michele Guarini.
Depois de fechar o ano, voltaram à Califórnia para gozar os dias de Outono à beira-mar, antes do regresso à Sildávia. Já não ia a tempo das vindimas, mas ainda esperava ver, quando chegasse, os montes cobertos de neve. Entretanto, a vitória da Apollo em Watkins Glen ainda resoava na sua cabeça, pois esta tinha enchido jornais e revistas e fora tema de noticiários. Alexandre tinha até ficado espantado por ver Walter Cronkite, ou o "tio Walter", como lhe chamavam, tentar pronunciar o seu nome quando o anunciava como o vencedor do "Grande Prémio dos Estados Unidos, a corrida de Watkins Glen que dava 65 mil dólares ao vencedor". Quando viu tudo aquilo, virou-se para Pete e disse:
- Da próxima, convido este senhor para visitar a minha vinha. Depois de provar o nosso Moscatel, garanto que ele dirá o meu nome sem falhas!
Pete riu-se às gargalhadas. Na casa de Pete, mostrou a todos como e quando se bebia o "Moscatel Adega de Monforte", e os fez provar o seu sabor. Todos o gostaram, e Michael Delaney disse até que "caso eu fique arruinado, sempre me podes acolher na tua adega", ao que Alexandre respondeu que "gostarias de ser o importador para os Estados Unidos? Dava-me jeito..." No final daqueles dias, Michael lhe tinha prometido arranjar alguém especializado no comércio para importar e comercializar o seu vinho, pelo menos na Califórnia. Depois mostrou-lhe algumas vinhas da região do Napa Valley, e após a visita disse-lhe que "vocês daqui a dez, quinze anos, serão os nossos rivais, garantido. Aqui, na Austrália, Africa do Sul... até parece que a Argentina e o Chile têm vinhas, vejam lá." O seu conhecimento de vinhos era bom, e toda a gente passou dias bem agradáveis.
Na véspera da sua partida para casa, Pete e Alexandre foram a Riverside para falar com Dan Gurney, que estava lá a testar os seus carros Eagle para a USAC e conversar um bocado. Alexandre pegou num Porsche 911 que pertencia a Michael Delaney e foi ele a conduzir. No regresso, Alexandre apeteceu passear na praia, e perguntou a Pete se não queria acompanhar. Ele aceitou.
Ao passear pelo areal, os dois começaram a conversar sobre a temporada que tinha ficado para trás. Tinha sido muito dura, muito forte, mas as bases eram sólidas para temporadas futuras. Mas não era isso que o perturbava. Era outra coisa.
- Bela paisagem, não é? disse Pete. Aposto que não tens nada disto no teu país.
- Mais ou menos. Tenho baías a perder de vista, águas frias, mar tempestuoso, um ou ou outro naufrágio... para apanhar sol, uma maravilha. Mas para nadar, não.
- Que ano que tivemos, não?
- Sim... foi um ano no mínimo louco, a todos os sentidos – retorquiu Pete. Ganhamos, perdemos, e no final, demos um título a um morto – concluiu.
- - Então, vou ser o teu piloto na temporada de 1971?
- Claro que sim. Que tens em mente?
- Quero ser campeão do mundo, ora.
- Mas és muito jovem. Só tens uma temporada completa.
- Eu faço 25 anos em Julho, e então? Só tens de confiar em mim. Aliás, é a altura ideal de ganhar.
- O Fângio ganhou com 46 anos. Eu corri até aos 40. Para quê tanta pressa?
- Não me vejo a correr... ora vejamos... em 1992? Acho que seria demasiado sonhador ou demasiado velho, e vamos ser honestos: com aquilo que passou este ano, a sorte não me vai proteger para sempre. Prefiro que seja agora do que nunca. Então, sempre ficas com o herdeiro?
- O "herdeiro"?
- De Villiers.
- Ah... claro. Eu sabia que era um grande talento. E claro, ele tem o Tom atrás de si, vai nos dar muito jeito na equipa.
- Deu conta do recado nas paragens americanas.
- No terceiro carro da equipa...
- ...mas continua a ser bom. Tivemos sorte, não é Alex?
- No meio do azar, sim.
- Claro, claro... onde tinha eu a cabeça? Ainda sofremos com a perda do John O'Hara, afirmou, abanando a cabeça com incredulidade.
Depois ficaram em silêncio. Ambos voltaram a olhar para o mar que estava defronte deles, indiferentes ao frio cortante e de um tempo que ameaçava chover. Os sorrisos já tinham desaparecido e entraram em reflexão por tudo que tinham passado durante aqueles meses. Pete disse logo depois:
- Anda, vamos embora. Acho que vai chover e os meus ossos martirizados já não são o que eram.
- Ou nevar, gracejou Alex.
Ambos caminharam para o Porsche 911 azul marinho que estava atrás deles. Entraram, com Pete no lado do condutor e Alex no do passageiro. Este pega no cinto para depois dizer:
- Sabes, Pete, daqui a dez anos farei 34.
- E então?
- Infelizmente, daqui a dez anos estarei morto. É por isso que tenho de ganhar tudo até lá. Estás a olhar para um homem que tem o tempo todo contado, Pete.
Pete ficou parado por instantes. Não sabendo como reagir a tal declaração, afirmou:
- Isso é treta, Alex. Vais viver por muitos anos.
- Quem me dera, Pete. Já me "disseram" tudo. Até sabia que ia ganhar no "the Glen".
- Como assim - perguntou Pete - tens um dedo que adivinha?
- Não, tenho uma senhora que me diz tudo. Ela não me disse onde, mas disse que não viveria para ver os meus 34º aniversário. Na pior das hipóteses, estarei vivo até Junho de 1980. Dá-me mais nove anos de vida.
- Oh Alex... disse, abanando a cabeça, como é que podes acreditar numa... bruxa?
- Bom, não é bruxa, mas por acaso já é idosa.
- Como é que podes dizer que ela tem razão?
- Eu fiz uma experiência, Pete. Um dia, depois da corrida inglesa, pedi a ela que fosse ver um dos nossos. Sabes quem foi?
- Não.
- Philippe de Beaufort. Levei uma foto dele, um recorte de jornal, para ver o que ela dizia. Conheço a filha dela, fomos colegas de escola, e queria ver o que dizia. Ela retirou-se para um quarto e quando saiu de lá, disse-me uma frase algo enigmática: "cobrir-se-à de glórias, mas não os viverá para os saborear". Quando ele partiu o pescoço em Monza, eu soube que ela falava a sério.
- Pode ter adivinhado, só.
- Sei lá, Pete. Começo a acreditar nela, sabes...
Ambos calaram-se, para depois Pete perguntar:
- Ela sabe?
- Não, não sabe. Deixa isso comigo. E para te ser franco, não sei como é que vou lidar com isto. Nâo quero focar angustiado, mas ao ver todos os nossos camaradas mortos... credo, isto é um campo de batalha.
- Eu que o diga. Tenho parafusos a comprová-lo.
- Sabes, invejo-te. A ti e ao Bob. Salvaram-se, conseguiram sair deste circo vivos. O Pierre queria sair, mas o Destino não o deixou.
- E como é que sentes?
- Já tive medo, já senti revolta, mas acho que é inutil verbalizar estes sentimentos. Sinto-me confuso, sabes? Não sei se vou sofrer, não quero sofrer, não quero acabar queimado como o Barlini ou o Ortega, não quero acabar paralitico, não quero acabar com pernas e pescoço partidos, não quero que os meus pais sofram, não quero que a Teresa sofra... não sei o que pensar - disse, quase de lágrimas nos olhos - só sei que adoro correr e saber que posso morrer cedo revolta-me. Revolta-me não ver crescer os meus filhos, se os tiver, não ver mais vezes as vinhas que foram cultivadas pelos meus pais, avós, bisavós, ver a paisagem do meu quarto, revolta-me saber que todas as vezes que direi "amo-te" à Teresa já estejam contados, de abraçar os meus pais sejam ainda mais preciosos e pior! poder morrer antes deles. Assombra-me a ideia de me verem ao lado do meu caixão... disse, não sem antes chorar.
Pete ficou mudo. Ao ouvir o desabafo do seu melhor piloto, não deixou de pensar em todos os que tinham morrido ao fazer aquilo que mais gostavam, e recordando com pungência os adeversários que tinha visto morrer ao longo da sua carreira. Passou pelos carros em chamas de Jean-Pierre Sarti, Nino Barlini e Scott Stoddard, sujeitou-se às piores feridas que um homem pode suportar e este ano sofreu os golpes das noticias dos acidentes fatais de Bruce McLaren e Alvaro Ortega. E viu nas boxes os acidentes fatais de Pierre de Beaufort, e pior, sofreu imenso ao ver um dos seus pilotos morrer num dos seus chassis, tanto que o fez pensar duas vezes se queria continuar com a sua aventura. Mas a familia O'Hara pediu-lhe para continuar, em honra do seu filho.
- Sabes... aprendi ao longo dos tempos que a melhor coisa que podemos fazer é gozar. Gozar a vida, perante a morte. E de uma certa maneira, estamos agarrados a isto. Vivemos muito mais do que o "average Joe", na sua vida comum. Eles vão ter vidas normais, repetitivas, sem emoção, num escritório ou numa fábrica. Nós nunca seremos assim. O meu local de trabalho não é um escritório ou fábrica, são as duas coisas. Não corremos pelos resultados, corremos por prazer. Somos uns privilegiados, sabes? Iremos ter uma boa vida. E o prémio final é uma longa vida. Eu ganhei esse prémio, vou viver dele. E vou fazer tudo para que tu também ganhes esse prémio. Tenho esse direito.
- Obrigado, Pete, disse aliviado.
- Acho que vais enganar todas as probabilidades, aposto nisso. Vamos para casa?
- Vamos, vamos... afirmou.
Pete ligou a ignição e o motor traseiro do 911 azul marinho começou a funcionar. Fez marcha-atrás e o carro arrancou dali rumo a Norte. Entretanto, os primeiros pingos de chuva batiam no tejadilho e nos vidros, obrigando os limpa-para brisas a funcionarem. Alex ligou o rádio, e este tinha no ar uma musica cantada por uma mulher que para Alex, mais parecia ser um guincho.
- Que é isso?
- Ah... agora não passam outra coisa. É a Janis Joplin.
- O quê... morreu?
- Parece que sim.
- De facto, ouvi um zum-zum, mas liguei pouco... que idade tinha?
- 27 anos, acho eu.
- Hmmm... suspirou. A mesma idade o Pierre e o John.
- É verdade. É verdade...
À medida que aceleravam para fora dali, e o ponto se tornava mais pequeno, o aguaceiro que caia nesse momento fazia abrigar as pessoas num local seguro. Era mais um sinal do Outono que se fazia ali, sinal de que dali a pouco tempo, este ano iria terminar para dar lugar a outro. Ambos ouviram a musica até ao fim, para depois Pete desligar o rádio. Alex suspirou:
- E ela ficará eternamente com 27 anos. Para sempre, sempre, sempre...
FIM
"Hollywood era de facto outro mundo", tinha pensado Alexandre. O mundo que Michael Delaney tinha mostrado de passagem, pois ele não era grande fã, apesar de pagarem a peso de ouro para ser o protagonista dos filmes que os estudios o propunham, tinha passado para as paisagens do Pacífico, com as belas casas e o enorme mar azul que tinham no horizonte, absolutamente unico e fascinente. Tinham vindo da Cidade do México, onde a Apollo queria fechar a temporada com chave de ouro, mas Patrick Van Diemen não o deixou, conseguindo bater Alexandre ao "sprint", na altitude mexicana. Aliás, o piloto sildavo teve de se contentar com um terceiro posto, pois Teddy Solana foi o unico que foi atrás dele e conseguiu o segundo posto. E ainda teve de conter Anders Gustafsson, que queria de uma certa forma alcançar aquilo que não conseguira em Watkins Glen. Mas ficou-se pelo quarto posto, tendo atrás de si o Matra de Pierre Brasseur e o Ferrari de Michele Guarini.
Depois de fechar o ano, voltaram à Califórnia para gozar os dias de Outono à beira-mar, antes do regresso à Sildávia. Já não ia a tempo das vindimas, mas ainda esperava ver, quando chegasse, os montes cobertos de neve. Entretanto, a vitória da Apollo em Watkins Glen ainda resoava na sua cabeça, pois esta tinha enchido jornais e revistas e fora tema de noticiários. Alexandre tinha até ficado espantado por ver Walter Cronkite, ou o "tio Walter", como lhe chamavam, tentar pronunciar o seu nome quando o anunciava como o vencedor do "Grande Prémio dos Estados Unidos, a corrida de Watkins Glen que dava 65 mil dólares ao vencedor". Quando viu tudo aquilo, virou-se para Pete e disse:
- Da próxima, convido este senhor para visitar a minha vinha. Depois de provar o nosso Moscatel, garanto que ele dirá o meu nome sem falhas!
Pete riu-se às gargalhadas. Na casa de Pete, mostrou a todos como e quando se bebia o "Moscatel Adega de Monforte", e os fez provar o seu sabor. Todos o gostaram, e Michael Delaney disse até que "caso eu fique arruinado, sempre me podes acolher na tua adega", ao que Alexandre respondeu que "gostarias de ser o importador para os Estados Unidos? Dava-me jeito..." No final daqueles dias, Michael lhe tinha prometido arranjar alguém especializado no comércio para importar e comercializar o seu vinho, pelo menos na Califórnia. Depois mostrou-lhe algumas vinhas da região do Napa Valley, e após a visita disse-lhe que "vocês daqui a dez, quinze anos, serão os nossos rivais, garantido. Aqui, na Austrália, Africa do Sul... até parece que a Argentina e o Chile têm vinhas, vejam lá." O seu conhecimento de vinhos era bom, e toda a gente passou dias bem agradáveis.
Na véspera da sua partida para casa, Pete e Alexandre foram a Riverside para falar com Dan Gurney, que estava lá a testar os seus carros Eagle para a USAC e conversar um bocado. Alexandre pegou num Porsche 911 que pertencia a Michael Delaney e foi ele a conduzir. No regresso, Alexandre apeteceu passear na praia, e perguntou a Pete se não queria acompanhar. Ele aceitou.
Ao passear pelo areal, os dois começaram a conversar sobre a temporada que tinha ficado para trás. Tinha sido muito dura, muito forte, mas as bases eram sólidas para temporadas futuras. Mas não era isso que o perturbava. Era outra coisa.
- Bela paisagem, não é? disse Pete. Aposto que não tens nada disto no teu país.
- Mais ou menos. Tenho baías a perder de vista, águas frias, mar tempestuoso, um ou ou outro naufrágio... para apanhar sol, uma maravilha. Mas para nadar, não.
- Que ano que tivemos, não?
- Sim... foi um ano no mínimo louco, a todos os sentidos – retorquiu Pete. Ganhamos, perdemos, e no final, demos um título a um morto – concluiu.
- - Então, vou ser o teu piloto na temporada de 1971?
- Claro que sim. Que tens em mente?
- Quero ser campeão do mundo, ora.
- Mas és muito jovem. Só tens uma temporada completa.
- Eu faço 25 anos em Julho, e então? Só tens de confiar em mim. Aliás, é a altura ideal de ganhar.
- O Fângio ganhou com 46 anos. Eu corri até aos 40. Para quê tanta pressa?
- Não me vejo a correr... ora vejamos... em 1992? Acho que seria demasiado sonhador ou demasiado velho, e vamos ser honestos: com aquilo que passou este ano, a sorte não me vai proteger para sempre. Prefiro que seja agora do que nunca. Então, sempre ficas com o herdeiro?
- O "herdeiro"?
- De Villiers.
- Ah... claro. Eu sabia que era um grande talento. E claro, ele tem o Tom atrás de si, vai nos dar muito jeito na equipa.
- Deu conta do recado nas paragens americanas.
- No terceiro carro da equipa...
- ...mas continua a ser bom. Tivemos sorte, não é Alex?
- No meio do azar, sim.
- Claro, claro... onde tinha eu a cabeça? Ainda sofremos com a perda do John O'Hara, afirmou, abanando a cabeça com incredulidade.
Depois ficaram em silêncio. Ambos voltaram a olhar para o mar que estava defronte deles, indiferentes ao frio cortante e de um tempo que ameaçava chover. Os sorrisos já tinham desaparecido e entraram em reflexão por tudo que tinham passado durante aqueles meses. Pete disse logo depois:
- Anda, vamos embora. Acho que vai chover e os meus ossos martirizados já não são o que eram.
- Ou nevar, gracejou Alex.
Ambos caminharam para o Porsche 911 azul marinho que estava atrás deles. Entraram, com Pete no lado do condutor e Alex no do passageiro. Este pega no cinto para depois dizer:
- Sabes, Pete, daqui a dez anos farei 34.
- E então?
- Infelizmente, daqui a dez anos estarei morto. É por isso que tenho de ganhar tudo até lá. Estás a olhar para um homem que tem o tempo todo contado, Pete.
Pete ficou parado por instantes. Não sabendo como reagir a tal declaração, afirmou:
- Isso é treta, Alex. Vais viver por muitos anos.
- Quem me dera, Pete. Já me "disseram" tudo. Até sabia que ia ganhar no "the Glen".
- Como assim - perguntou Pete - tens um dedo que adivinha?
- Não, tenho uma senhora que me diz tudo. Ela não me disse onde, mas disse que não viveria para ver os meus 34º aniversário. Na pior das hipóteses, estarei vivo até Junho de 1980. Dá-me mais nove anos de vida.
- Oh Alex... disse, abanando a cabeça, como é que podes acreditar numa... bruxa?
- Bom, não é bruxa, mas por acaso já é idosa.
- Como é que podes dizer que ela tem razão?
- Eu fiz uma experiência, Pete. Um dia, depois da corrida inglesa, pedi a ela que fosse ver um dos nossos. Sabes quem foi?
- Não.
- Philippe de Beaufort. Levei uma foto dele, um recorte de jornal, para ver o que ela dizia. Conheço a filha dela, fomos colegas de escola, e queria ver o que dizia. Ela retirou-se para um quarto e quando saiu de lá, disse-me uma frase algo enigmática: "cobrir-se-à de glórias, mas não os viverá para os saborear". Quando ele partiu o pescoço em Monza, eu soube que ela falava a sério.
- Pode ter adivinhado, só.
- Sei lá, Pete. Começo a acreditar nela, sabes...
Ambos calaram-se, para depois Pete perguntar:
- Ela sabe?
- Não, não sabe. Deixa isso comigo. E para te ser franco, não sei como é que vou lidar com isto. Nâo quero focar angustiado, mas ao ver todos os nossos camaradas mortos... credo, isto é um campo de batalha.
- Eu que o diga. Tenho parafusos a comprová-lo.
- Sabes, invejo-te. A ti e ao Bob. Salvaram-se, conseguiram sair deste circo vivos. O Pierre queria sair, mas o Destino não o deixou.
- E como é que sentes?
- Já tive medo, já senti revolta, mas acho que é inutil verbalizar estes sentimentos. Sinto-me confuso, sabes? Não sei se vou sofrer, não quero sofrer, não quero acabar queimado como o Barlini ou o Ortega, não quero acabar paralitico, não quero acabar com pernas e pescoço partidos, não quero que os meus pais sofram, não quero que a Teresa sofra... não sei o que pensar - disse, quase de lágrimas nos olhos - só sei que adoro correr e saber que posso morrer cedo revolta-me. Revolta-me não ver crescer os meus filhos, se os tiver, não ver mais vezes as vinhas que foram cultivadas pelos meus pais, avós, bisavós, ver a paisagem do meu quarto, revolta-me saber que todas as vezes que direi "amo-te" à Teresa já estejam contados, de abraçar os meus pais sejam ainda mais preciosos e pior! poder morrer antes deles. Assombra-me a ideia de me verem ao lado do meu caixão... disse, não sem antes chorar.
Pete ficou mudo. Ao ouvir o desabafo do seu melhor piloto, não deixou de pensar em todos os que tinham morrido ao fazer aquilo que mais gostavam, e recordando com pungência os adeversários que tinha visto morrer ao longo da sua carreira. Passou pelos carros em chamas de Jean-Pierre Sarti, Nino Barlini e Scott Stoddard, sujeitou-se às piores feridas que um homem pode suportar e este ano sofreu os golpes das noticias dos acidentes fatais de Bruce McLaren e Alvaro Ortega. E viu nas boxes os acidentes fatais de Pierre de Beaufort, e pior, sofreu imenso ao ver um dos seus pilotos morrer num dos seus chassis, tanto que o fez pensar duas vezes se queria continuar com a sua aventura. Mas a familia O'Hara pediu-lhe para continuar, em honra do seu filho.
- Sabes... aprendi ao longo dos tempos que a melhor coisa que podemos fazer é gozar. Gozar a vida, perante a morte. E de uma certa maneira, estamos agarrados a isto. Vivemos muito mais do que o "average Joe", na sua vida comum. Eles vão ter vidas normais, repetitivas, sem emoção, num escritório ou numa fábrica. Nós nunca seremos assim. O meu local de trabalho não é um escritório ou fábrica, são as duas coisas. Não corremos pelos resultados, corremos por prazer. Somos uns privilegiados, sabes? Iremos ter uma boa vida. E o prémio final é uma longa vida. Eu ganhei esse prémio, vou viver dele. E vou fazer tudo para que tu também ganhes esse prémio. Tenho esse direito.
- Obrigado, Pete, disse aliviado.
- Acho que vais enganar todas as probabilidades, aposto nisso. Vamos para casa?
- Vamos, vamos... afirmou.
Pete ligou a ignição e o motor traseiro do 911 azul marinho começou a funcionar. Fez marcha-atrás e o carro arrancou dali rumo a Norte. Entretanto, os primeiros pingos de chuva batiam no tejadilho e nos vidros, obrigando os limpa-para brisas a funcionarem. Alex ligou o rádio, e este tinha no ar uma musica cantada por uma mulher que para Alex, mais parecia ser um guincho.
- Que é isso?
- Ah... agora não passam outra coisa. É a Janis Joplin.
- O quê... morreu?
- Parece que sim.
- De facto, ouvi um zum-zum, mas liguei pouco... que idade tinha?
- 27 anos, acho eu.
- Hmmm... suspirou. A mesma idade o Pierre e o John.
- É verdade. É verdade...
À medida que aceleravam para fora dali, e o ponto se tornava mais pequeno, o aguaceiro que caia nesse momento fazia abrigar as pessoas num local seguro. Era mais um sinal do Outono que se fazia ali, sinal de que dali a pouco tempo, este ano iria terminar para dar lugar a outro. Ambos ouviram a musica até ao fim, para depois Pete desligar o rádio. Alex suspirou:
- E ela ficará eternamente com 27 anos. Para sempre, sempre, sempre...
FIM
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