Sempre que posso, costumo ir trabalhar para a biblioteca da minha cidade, por duas coisas: tem internet "wireless" de graça e claro, sempre que posso, pego num livro que me saiba interessar para o automobilismo. Não há muitos, mas existem. Há um interessante, do Michel Vaillant, cujo nome é "Caos na Formula 1", que merece ser falada, por muitos motivos. E alguns deles, tem uma pertinente actualidade.
A história é simples: Jean Graton decidiu fazer o seguinte excercício, que era "o que acontecia se a briga FOCA-FISA resultasse numa cisão irreparável do campeonato do mundo de Formula 1?". E como sabem, a briga tinha duas figuras históricas: Bernie Ecclestone, então o patrão da Brabham e o representante das equipas nos direitos comerciais provenientes da televisão e da publicidade, cada vez mais crescente, e Jean-Marie Balestre, o presidente da FISA, cuja irredutibilidade era lendária, e como simbólio máximo é a frase que vem no documentário "Senna" após o fatídico GP do Japão de 1989: "A melhor decisão é a minha decisão!"
Quem já leu o livro conhece a história: FISA E FOCA fazem cada um o seu calendário, as equipas inglesas correm no campeonato FOCA, a Ferrari, Renault e Alfa Romeo, Ligier e mais equipas não-britânicas correm no campeonato FISA, com um calendário separado. A FISA começa na Argentina, a FOCA na Africa do Sul. Entretanto, o nosso herói, Michel Vaillant, vê a sua equipa abandonar a Formula 1, sem tomar partido, e ele correria na Renault, ao lado de Alain Prost e René Arnoux.
As peripécias foram muitas e quem pagaria era a Formula 1, e no final as coisas se resolveriam com um "GP reconciliatório" no novo circuito de Spa-Francochamps, com Jacky Ickx à frente do circuito. A corrida acaba em bem e os dois, Ecclestone e Balestre, fizeram as pazes, caminhando abraçados até ao pôr do sol... Ora, quando o seu autor Jean Graton, desenhava e escrevia o argumento deste livro (apesar de ter sido publicado no primeiro semestre de 1982), toda a gente estava convencida de que a cisão seria bem real. Sim, o Inverno de 1980-81 foi muito quente!
Ecclestone e Balestre andavam de "candeias às avessas" e no final do ano Ecclestone chegou a anunciar uma "Federação Mundial de Automobilismo", com um calendário feito por Ecclestone, que desde 1978 tinha o aval das restantes equipas para negociar os dinheiros das transmissões televisivas, a troco de 23 por cento das suas receitas, longe ainda daquilo que ganha hoje em dia...
Esse calendário começaria em Kyalami, continuaria com quatro provas nos Estados Unidos (Long Beach, Nova Iorque, Watkins Glen e Las Vegas) e provas em Anderstorp, na Suécia, Cidade do México. Imola, Monte Carlo e Zandvoort também estavam incluidas, mas aparentemente, os organizadores iriam ficar ao lado da FISA. AS equipas, principalmente as maiores, chegaram a planear alinhar com quatro carros, dois para cada um dos campeonatos. Os fornecedores e patrocinadores ficaram mais do que chateados, e começaram a repensar o seu cometimento. A Goodyear, por exemplo, chegou a anunciar a sua retirada, como forma de pessão para que ambas as partes chegassem a um acordo.
Tudo isto atingiu um ponto baixo em Fevereiro de 1981, quando aconteceu o GP da Africa do Sul, em Kyalami. Dezanove pilotos alinharam nessa corrida, representando Williams, Lotus, Tyrrell (Desireé Wilson alinhou como piloto), Fittipaldi, McLaren, Brabham, Ensign, Arrows, March, ATS e Theodore estiveram presentes na pista sul-africana, uma corrida debaixo de alguma chuva e que ganha por Carlos Reutemann, com vinte segundos de vantagem sobre Nelson Piquet, no seu Brabham, e o Lotus de Elio de Angelis. Todos tinham as saias laterais, que tinham sido abolidos pela FISA e que a FOCA contestava a sua proibição, e com a ausência da Ferrari, Alfa Romeo e Renault, todos os carros tinham motores Cosworth V8.
No final, a FISA declarou a corrida como ilegal e os resultados não contaram para o campeonato. O mais engraçado foi que se tivessem, o campeão do mundo desse ano teria sido Reutemann...
Mas a corrida sul-africana deixou outras marcas: os espectadores não foram muitos, os patrocinadores torceram o nariz e começaram a dizer cada vez mais que estariam dispostos a abandonar a competição do que a escolher lados. Pouco depois, antes da corrida de Long Beach, FISA e FOCA chegaram a aquilo que se chama agora de "Pacto de Concórdia", onde se separariam as águas: a FISA elaboraria o regulamento e a FOCA garantia os acordos comerciais, um acordo que tinha a duração de quatro temporadas. O factor determinante deste acordo foi a intervenção do "Commendatore" Enzo Ferrari, então com 83 anos, que chamou as duas partes e "deu um murro na mesa".
Quanto às saias, tinham sido banidas. Mas desde logo se tentou contornar aqueles seis centímetros que separavam o chassis do solo. O Lotus 88 de chassis duplo, tentou contornar essa parte, mas foi desde logo declarado ilegal, e algum tempo depois, Gordon Murray colocou no seu Brabham BT49 um sistema hidro-pneumático que colocava o carro na distância legal... enquanto estava parado. Uma maneira esperta, mas ilegal, de contornar a lei.
Mas a briga não acabou ali. Os incidentes do inicio de 1982, no Brasil, com os lastros no Williams de Keke Rosberg e no Brabham de Nelson Piquet, a asa dupla do Ferrari de Gilles Villeneuve, em Long Beach, levaram ao boicote das equipas FOCA ao GP de San Marino, que foi disputado por 14 carros, mostraram que o acordo era frágil. Tudo acabou no final dessa época quando o efeito solo foi banido.
Hoje em dia, trinta anos mais tarde, podemos dizer que Bernie Ecclestone conseguiu o que queria. Na altura pode ter sido derrotado, mas não deixou de trabalhar pelos seus objectivos, desta vez por dentro. Um dos que ajudaram na equipa legal da FOCA foi Max Mosley, que depois da aventura da March, decidiu ajudar Ecclestone, aconselhando-o legalmente e ajudando também na elaboração do Pacto de Concórdia. Quando onze anos mais tarde conseguiu derrubar Jean-Marie Balestre na eleição para a presidência da FIA, de uma certa forma, a segunda parte do plano de Ecclestone entrou em marcha.
Foi aí que aos poucos, desde 1992, a Formula 1 se tornou num desporto cada vez mais unico, verdadeiramente global. Atraiu os construtores, mesmo à custa da extinção e modificação de outras categorias, abriram novos mercados, com a Ásia á cabeça, e no final, Bernie Ecclestone ficou com cada vez mais poder, pelo menos em termos de dinheiro. Tem uma parte "leonina" nas receitas, através da FOM (Formula One Management) à volta dos 50 por cento, e tem mão no calendário e nas negociações para a entrada de novos circuitos, tal como tinha antes. E é sabido que todos os novos circuitos são desenhados por Hermann Tilke, num monopólio com as consequências que sabemos, e que em média, Ecclestone pede entre 20 e 30 milhões de euros por ano para que cada organizador possa receber um Grande Prémio. E pelo menos na Europa, as organizações dos Grandes Prémios normalmente sofrem prejuizos...
Claro, a cereja no topo do bolo é o tal "contrato centenário" entre a FIA e FOM, feito em 2002 no tempo de Max Mosley, e que a troco de uma soma relativamente baixa, ficou com "mão" nos 99 anos seguintes. Agora, Jean Todt - que em 2009 sucedeu a Max Mosley - começa a querer modificar esta "Formula Ecclestone" querendo modificar e renegociar as clausulas abusivas, como por exemplo, pedir mais dinheiro à GP2 e GP3, que acompanham o circo da Formula 1 e tem o inegavel dedo de Ecclestone, e claro, tentando renegociar ou até, em última medida, denunciar o acordo centenário. Com o Pacto da Concórdia a terminar em 2012, mas cuja negociação irá começar no ano que vêm, não ficaria admirado se a FOTA, a associação das construtoras, não volte à carga para reclamar um pouco mais... Se assim for, Ecclestone terá ainda forças para mais uma batalha?
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