terça-feira, 3 de abril de 2012

Quando os franceses dominaram a Formula 1

A GQ francesa é diferente das outras. Se a versão americana, brasileira ou portuguesa coloca sempre uma mulher sensual na capa, em poses mais ou menos sugestivas, em França, as coisas piam mais fino. É uma publicação de homens... sem as senhoras, que é para parecer ser menos misógino. Neste mês de março tinha o lendário Keith Richards na capa, e tem mais matérias e entrevistas do que moda, apesar de aparecer por lá, claro. Mas não foi por isso que gastei os meus ricos cinco euros. Gastei-os porque tem uma matéria interessante sobre os pilotos franceses na Formula 1, que povoaram as grelhas de partida nos anos 70 e 80. 

Numa altura em que os italianos andam a queixar-se de que já não tem ninguém por lá, depois dos 14 pilotos que chegaram a ter há pouco mais de 20 anos - ajudados por equipas como Fondmetal, Dallara e Minardi - a França está agora numa fase revivalista, depois de terem ficado reduzidos a zero na parte final da década passada, sem pilotos e sem Grande Prémio. Ainda não tem a corrida de volta - fala-se que isso pode acontecer em 2013 - mas nesta temporada irão alinhar com três pilotos: Charles Pic (Marussia) Romain Grosjean (Lotus) e Jean-Eric Vergne (Toro Rosso). Mas em 1980, eram oito os pilotos presentes, ajudados por equipas como Ligier e Renault, que contrariavam o dominio britânico até então. E é sobre isso que vou falar nas linhas seguintes.

"A FORMULA 1 NO TEMPO DOS CAPACETES AZUIS"

"Entre 1975 e 1985, uma dezena de pilotos franceses participavam nos circuitos. Um bando de companheiros que correram em equipas como Ligier, Renault, Tyrrell e Ferrari. Conquistaram imensas corridas, impuseram o nome da França da Formula 1 e prepararam o terreno para Alain Prost, primeiro e unico campeão do mundo tricolor. Artigo de Jeremy Patrelle e Jacques Braunstein."

 Dijon, Grande Prémio de França. 1º de julho de 1979. O canadiano Gilles Villeneuve e o francês René Arnoux são protagonistas de uma batalha épica nas últimas voltas. 'Nós nos devemos ter tocado umas seis ou sete vezes. A Ferrari de Gilles não tinha travões a funcionar e os pneus já estavam degradados. A minha Renault tinha um problema de alimentação do combustível, o motor cortava depois da curva. As nossas rodas se tocaram por diversas vezes. Deveriamos ter uma confiança absolutamente mútua para que aquele duelo fosse possível. A minha viatura poderia estar rebentada à chegada, mas nós nos tinhamos divertido. A 250km/hora!E não era importante de saber se Villeneuve tinha sido o vencedor 'do mais belo duelo da história da Formula 1. 'Toda a gente estava convencida que nós iriamos continuar o duelo no pódio, mas lá nós apertamos a mão, em sinal de amizade. E tudo isto por causa do duelo por um segundo lugar...'

Uma quinzena de segundos mais à frente, o francês Jean-Pierre Jabouille conseguia a sua primeira vitória da sua carreira. A primeira, também da equipa Renault. Contudo, o vencedor apresentava um sorriso amarelo: 'No calor do momento, não me ocorreu que tinhamos eclipsado o seu sucesso. No dia seguinte, ele estava na primeira página do L'Equipe, mas a última tinha sido consagrada a um puzzle de fotos no meu duelo com o Gilles. E toda a gente só falava disso! 32 anos depois, não passa uma semana sem que eu não seja abordado sobre isso'. A Renault, por seu lado, esfregava as mãos de contente. Dois anos e meio após a sua estreia, o construtor francês estava no degrau mais alto do pódio. 'A partir daquele momento, todas as rádios e televisões francesas deslocaram-se aos circuitos. Antes disso, não', referiu René Arnoux.

A CONTESTAÇÃO DO DOMINIO ANGLO-SAXÓNICO

Pela primeira vez, a França contestava a hegemonia anglo-saxónica na Formula 1. Porque 'à excepção da Ferrari, a Formula 1 era um desporto britânico', começa por explicar Alain Prost. 'Era uma outra filosofia, uma outra maneira de trabalhar. Era preciso estares bem integrado no mundo anglo-saxão e nas suas equipas para teres uma hipótese de lutares pelo título mundial'. Até 1975, se os franceses Maurice Trintignant e Jean-Pierre Beltoise foram exemplos ao mais alto nível, nunca estiveram em posição de alcançar o título. Somente Francois Cevért andou lá perto, antes de se matar numa sessão de treinos em 1974 [na realidade, morreu na qualificação do GP dos Estados Unidos, em outubro de 1973]. 

No campo das equipas, face à Ferrari, o dominio eram das equipas britânicas, como a Lotus, McLaren, Tyrrell, e a partir de 1977, a Williams. E se a Matra de Jean-Luc Lagardére consegue um título em 1969, o piloto era Jackie Stewart, um escocês, o motor era Cosworth, e o "team manager" era inglês e se chamava Ken Tyrrell.


A meio dos anos 70, os franceses começavam a reagir. Três, cinco e depois sete pilotos do hexágono desembarcam na categoria raínha. Não são mais "gentleman drivers" ou "filhos de", como certos pilotos britânicos, ou os filhos de algum milionário sul-americano, que já começam a aparecer, mas sim pilotos de uma classe média-alta. Os pais de Patrick Depailler e Jean-Pierre Jabouille são arquitectos. Alguns até são de meios mais modestos, como René Arnoux. Mas a França possui uma boa escola de formação. 'Na altura, havias boas escolas de pilotos: Magny-Cours, Nogaro, Paul Ricard, Le Mans', afirma Arnoux. 'A propina anual era o equivalente a dois mil euros aos níveis de hoje. Existiam 300 alunos e a cada ano, destacava-se alguém. Ganhavam um carro, um orçamento, um mecânico para fazer a Formula Renault, a base da pirâmide. Sem isso, nenhum de nós teria feito a Formula 1, porque era muito caro'.


Jacques Laffite chega à competição automóvel por acaso, quando começou a acompanhar o seu amigo Jean-Pierre Jabouille: ' Eu o acompanhava em todas as corridas, era o seu mecânico pessoal. Depois surgiu a oportunidade de fazer um curso de pilotagem e ganhei. O prémio era uma viatura, e foi assim que aos 25 anos comecei a competir'. Estes talentos provenientes das escolas francesas começam a triunfar nas categorias inferiores, como a Formula 2. Jean-Pierre Jarier é campeão da Europa em 1973. Patrick Depailler, Jacques Laffite, Jean-Pierre Jabouille e René Arnoux o imitam entre 1974 e 1977. Na Formula Renault, Formula 3 e Formula 2, enfrentam os ingleses e os italianos, e conseguem os bater regularmente.


OS FRANCESES FICAM COM A POLE-POSITION


Mas é na Formula 1 que se concentram as suas ambições. "Entre nós, aprendiamos o melhor da pista - recorda Jean-Pierre Jabouille -  mas depois iamos todos juntos fazer disparates, como se fossemos irmãos". Algo que Patrick Tambay confirma: "Nós eramos simultaneamente amigos, colegas e rivais". Uma tríade nem sempre fácil de gerir: "Coisas de homens", conta Jabouille. "Nós éramos realmente um gurpo de amigos. Excepto entre companheiros de equipa", nota Laffite. "Tive mais contacto com Patrick Depailler e o Didier Pironi antes de chegarem à Ligier do que quando foram meus companheiros de equipa. Quando és piloto, não gostas muito que o teu companheiro de equipa ganhe com o mesmo equipamento que tu tens. Tens que ser tu o vencedor, e se não tens esse tipo de carácter, melhor dedicares-te à pesca".


Alain Prost, que se juntou a eles em 1980, fala sobre isso: "Estavamos todos no mesmo hotel, especialmente quando corriamos fora da Europa. Estive sempre à parte em termos de trabalho, mas não em termos de convivência. Não havia animosidade ou ciúmes. Isso veio mais tarde..."


O ano de 1977 faz parte da lenda. Jacques Laffite vence surpreendentemente o GP da Suécia ao volante do seu Ligier. "Nós tinhamos recuperado o motor Matra V12 em 1976 e Gut Ligier, que tinha sido um ex-piloto de Formula 1 e fundador de uma construtora, recuperou a chama que tinha sido passada".  Em Anderstorp, eles triunfam, mas A Marselhesa não é tocada, sinal da surpresa que todos tinham sido apanhados. 


No mesmo ano de 1977, um peso-pesado tinha chegado à Formula 1: a Renault Sport com o seu motor Turbo. Jean-Pierre Jabouille, o melhor amigo de Laffite, está ao volante do primeiro Formula 1 da Regie: "Tinha seguido o seu programa desde o seu começo, e isso me fascinou ainda mais do que conduzir as máquinas" René Arnoux, que se junta à equipa em 1979, jubila-se: "Os ingleses riam-se. Se dependessmos deles, o Turbo nunca funcionaria. Mas na fábrica de Vitry-Chantillon, os engenheiros me diziam: 'vais ver, René, chegará o dia em que eles nos implorarão para ter os nossos motores.'" Trinta anos e dez títulos depois, provou-se que tinham razão.


A COROA MUNDIAL FOGE AOS AZUIS


Apesar da potencia crescente dos motores Renault, é a Ligier que está no coração dos franceses. "Era o carro azul, nascido da associação entre a Ligier, os cigarros Gitanes e os pneus Michelin" afirmou Laffite. Em 1979, ele e Patrick Depailler estão aos comandos de um Ligier com um admirável motor Ford. Laffite vence as duas primeiras corridas do campeonato, o seu companheiro de equipa a quinta prova do mundial. Contudo, "ao fim de três corridas, começa a deteriorar-se. E Patrick tem um acidente de asa-delta que o afasta da equipa no resto da temporada", lamenta Laffite. 


Um resumo dos franceses na Formula 1? Vitórias, má sorte e erros de gestão. Em 1980, o piloto da Ligier, Didier Pironi, que se tinha estreado na Tyrrell e vencido as 24 horas de Le Mans em 1978, vê o campeonato a escapar-se entre as suas mãos. Em 1981, Laffite tinha hipóteses de ser campeão em Las Vegas, mas falha completamente na corrida decisiva. Terminará na quarta posição, como tinha acontecido em 1979 e 1980. 


Apesar destes fracassos, os franceses são o maior contingente da disciplina: "Quando somos sete à partida, os ingleses começam a ver-nos com uma má cara. Contudo, o pior inimigo dos franceses eram nós mesmos", afirma Arnoux. "Em 1980, ganho dois dos três primeiros Grandes Prémios da temporada. A partir da quarta prova do ano, parte-se uma pequena peça do injetor do combustível. Uma vez, duas vezes, três vezes... perdemos o campeonato por causa disso. Nas reuniões, os engenheiros diziam-me 'não temos qualquer chance' e eu lhes respondia: 'parem com essa coisa da chance, é perfeitamente idiota'", explica Arnoux.


A ambição da Renault em ganhar com uma viatura cem por cento francesa é tão obstinada que ia até aos detalhes mais pequenos. Alain Prost recorda desse pequeno detalhe: "Em 1982, tínhamos um problema com um pequeno motor elétrico que fazia funcionar a injeção eletrónica. Abandonei nove vezes nessa temporada devido à mesma razão. Se tivesse abandonado menos uma vez, teria provavelmente sido campeão do mundo. Ninguém queria comprar essa peça ao estrangeiro, e custava apenas um franco..." Rebelou-se em 1983, desta vez por causa do Turbo. Trinta anos depois, tudo isto parece surrealista, mas no espírito dos anos 80, era um pequeno país que resistia à globalização. Para má sorte dos fãs franceses da Formula 1, era o nosso.


A FUGA DOS TALENTOS


Outros pilotos decidem tentar a sua morte mais além, com a mesma sorte. Em 1982, Didier Pironi, no seu Ferrari, está no bom caminho para o título. Contudo, nos ensaios em Hockenheim (Alemanha), o seu carro bate no Renault de Alain Prost. Não correria mais, mas tinha um avanço tal na classificação que iria acabar como vice-campeão. Naquela época, os pilotos tinham a sua vida em jogo todos os finais de semana de corridas. Ainda não é a Formula 1 'zero mortes' que conhecemos desde o acidente de Ayrton Senna, em 1994. "Vi morrer tantos pilotos: Francois Cevért, Patrick Depailler, Didier Pironi", afirma Laffite. 


No total, entre 1973 e 1987, doze pilotos morrerão em pista. E será um outro piloto francês, Patrick Tambay (ex-McLaren) que permite à Ferrari vencer o título de construtores de 1982. Mas não o de pilotos, que é conquistado pelo finlandês Keke Rosberg, que beneficia de um duelo franco-francês. Que opunha René Arnoux e um jovem Alain Prost, dentro da Renault. "Quando Alain chega, em 1981, ele quis tudo imediatamente." - lamenta Arnoux -  "Normalmente, cada piloto tem as suas próprias configurações, e ele quis ter acesso às minhas. De inicio, tudo bem, mas depois houve o Grande Prémio de França de 1982".


A 4 de julho desse ano, Arnoux termina em primeiro lugar, à frente de um furioso Alain Prost. "Eu estava à frente do campeonato do mundo" - explica Prost - "O presidente da Renault instruiu a equipa para que me deixasse vencer, tudo foi pensado nessa estratégia, com o carro do Arnoux a ter uma pressão mais elevada do seu Turbo para que ele pudesse fazer de 'lebre' para os Brabham de Nelson Piquet e René Arnoux. Depois, ele tinha de me deixar passar, o que não me fez". O carro de Arnoux, apesar de uma pressão mais alta do seu Turbo, decide aproveitar a chance.  "Estavamos a meio da temporada, nenhum de nós tinha conseguido uma clara vantagem sobre o outro (Prost tinha na realidade 19 pontos em dez corridas contra 4 de Arnoux, n.d.r) e era o Grande Prémio de França, não o podia deixar de o ganhar" respondeu Arnoux.


PROST, O HERDEIRO CONSAGRADO


Esta disputa ensombra "Prost de la France": "Que injustiça! Estou extremamente decepcionado à direção da Renault. Ainda mais do que René. Toda a gente tomou partido dele. Acho incrivel que, para defender uma certa imagem da marca, quer-se passar a imagem de que eu era o mau jogador. A mentalidade francesa não está adaptada à vontade de ser performante a longo prazo". Prost sabe que tem de sair da Renault, se quer alcançar o título. "Ele era meticuloso, trabalhava muito, nós um pouco menos", condece Laffite.


Prost vai para a McLaren em 1984. "Alain modifica a sua forma de trabalhar" - constata Patrick Tambay - "Graças ao seu contacto com Niki Lauda, ele se torna 'O Professor'". No primeiro ano, aprende a sua lição, ao perder o título por meio ponto sobre o austríaco: "Luto demasiado com Nelson Piquet, que não era afinal o meu adversário mais perigoso, e deixo que Lauda fique com os pontos. Essa lição irá contribuir para que melhorasse a minha visão sobre a maneira global de ver as coisas, de gerir uma temporada", admite Prost. Tornando-se um bom gestor, o francês saberá jogar com os pontos em vez de arriscar vencer. E em 1985, consegue vencer o primeiro dos seus quatro títulos mundiais.

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