Durante o seu breve tempo na Formula 1, o desporto estava a passar por tempos conturbados, e existia uma tensão como nunca se tinha visto. Era o tempo que veio a ser conhecido como a 'Guerra FISA-FOCA', com as equipas a entrarem em conflito aberto com a entidade governadora.
Gilles tinha uma forte opinião nessas matérias, e expressava-se de forma amarga, sem medo das consequências: 'Filho da p*** do Ecclestone faz isto, depois o filho da p*** do Ecclestone faz aquilo, e no meio disto tudo, essa gente está a matar o nosso desporto'... Sempre considerou a Formula 1 como 'um desporto' da maneira mais verdadeira possivel, e ficava ofendido que outros olhavam para aquilo como um mero negócio, uma luta de poder que tinha de ser vencida a todo o custo.
Mais do que tudo, Gilles detestava a maneira como estavam a evoluir os bólidos de Formula 1. Era o tempo do efeito-solo, com os carros a terem chassis esculpidos, e 'saias', que efectivamente selavam o ar e prendiam o carro ao chão. A aderência ganhava um novo significado.
'Sabes', ele disse, 'temos de guiar estes carros numa trajetória definida, e eu não gosto disso - gosto quando guino com o carro, e este faz o trabalho para ti. Os dias de guiar com os teus dedos estão a desaparecer - e quase toda a arte subjacente a ela. A relação entre o potência e a aderência está totalmente errada - temos demasiada aderência para a potência que temos. Gostava que o equilibrio fosse a favor da potência porque isso permite que a habilidade do piloto influencia a velocidade que ele faz as curvas'.
'As pessoas não vão à pista para ver se o aerodinamicista é bom, pois não? Não, vão ver uma batalha, um espectáculo, para serem impressionados - e acho que estão a ser enganados. Quer dizer, não há ninguém que gosta de ver um carro a ser controlado pelo pedal do acelerador?'
Só por uma vez Gilles usou a palavra 'off the record' e foi pela melhor das intenções. E isso afirmou-me, sendo ele mesmo, que o mencionou após ter dito o que tinha a dizer...
Aconteceu no Rio de Janeiro, em 1982, depois de se ter qualificado na segunda posição, atrás do Renault de Alain Prost, enquanto que o segundo Ferrari, de Didier Pironi, tinha ficado na oitava posição, segundo e meio mais lento. Após a sessão de testes, Gilles pediu-me se pudessemos ter uma conversa.
Durante os testes, em Paul Ricard, pouco antes do Grande Prémio, Pironi tinha tido um grande acidente quando o acelerador ficou preso e o Ferrari catapultou o guard-rail e saltou para cima, acabando de cabeça para o ar numa área para espectadores, que felizmente naquele dia, não estava ocupado.
'Ouve', disse Gilles, 'aquilo do Didier foi uma enorme batida, e ele ainda estava abalado. Ele não está ainda em forma esta semana, mas vai recuperar. Por favor, vai com calma quando escreveres a tua crónica da corrida, e não seria mau de todo se perguntares aos teus colegas se não poderiam fazer a mesma coisa...'
Até hoje, nunca vi nenhum piloto a pedir que fossem simpáticos para o seu companheiro de equipa, e isso se tornou ainda mais pungente quando, um mês depois, Pironi sacaneou Villeneuve na sua vitória na última volta em Imola, colocando em marcha a cadeia de eventos que iria levar à morte de Gilles, treze dias depois.
Pessoalmente, nunca dive quaisquer dúvidas sobre isso. Imediatamente após a corrida de Imola, muita gente pensou que os Ferraris estavam envolvidos numa batalha genuína, com Pironi a levar a melhor sobre Villeneuve, mas isso dissipou-se quando Gilles guiou até ao paddock, acelerando fortemente o seu motor antes de o parar. Olhei para ele à medida que tirava o capacete, e quando captei-lhe o olhar, disse aquela palavra de quatro letras, e marcou para a boxe da Ferrari. Apareceu brevemente naquela comédia de pódio, nem sequer olhou para Pironi, e abandnou o circuito de helicóptero.
Jackie Stewart, que tinha voado com ele de helicóptero nessa tarde, estava perturbado com o seu estado de espírito. 'Nunca o vi tão zangado como naquele dia', afirmou. 'Ele estava chocado. Sabes, para ele, o título de campeão era mais uma coisa. Ele disse-me naquele dia que o seu objetivo era o de bater o meu recorde de Grandes Prémios - e esta vitória fora-lhe roubada. Sempre houve esta inocência por parte de Gilles - não tinha qualquer traço de malícia - e ele não queria acreditar no que tinha acontecido. Foi horrivel vê-lo nos seus últimos dias de vida, tão desiludido e atormentado...'
'Acho que provei, nos 60 e muitos Grandes Prémios que já fiz até agora que em carros iguais - ou às vezes com um carro inferior - quando quero que alguém fique atrás de mim... creio que fica atrás de mim. De forma alguma ele me teria passado, nem ele, nem ninguém! Muito menos na última volta...'
'Porque o nível de combustivel já era marginal, eu já tinha levantado o pé, mas para ele era apenas corrida, e fui demasiado estúpido por acrdeditar nisso, pensava que era um tipo honesto'. Mas falou com Pironi? 'Não, nem vou fazer isso. Nunca mais. Declarei guerra contra ele. Quando formos para a Belgica, na próxima semana, vai ser como se estivesse a guiar num Williams ou Brabham...'
Outro que falou com Villeneuve nessa semana foi Alain Prost. 'Entendi porque é que ele estava perturbado', disse Alain, 'e não mais vou esquecer isso. Quando mais tarde tive as zangas com Senna, lembrei-me da conversa com Gilles - e o que aconteceu a ele depois...'
Um mês depois de Zolder, estavamos em Montreal, onde o Circuit Gilles Villeneuve estava mais calmo do que o habitual, pois o herói tinha partido. Ironia das ironias, Pironi era o poleman no Ferrari C2, e depois delcarou que 'Se Gilles estivesse aqui, saberiamos quem pertencia a pole-position...'. Estava com Keke Rosberg quando a declaração dele saiu nos altifalantes, e ele disse o que muitos pensavam. 'Se não fosse por ele', disse em tom de desprezo, 'Gilles estaria aqui...'
Vai haver sempre quem dirá qual foi o seu maior feito na sua carreira de piloto. Irão admitir que o seu ritmo louco e o seu magistral controlo, mas também sugestionarão que era um piloto unidimensional, apenas capaz de guiar de pedal a fundo, independentemente das circunstâncias.
A esses direi apenas isso: não se lembram de Watkins Glen 1979? Nas condições de chuva torrêncial nos treinos de sexta-feira, Gilles tinha sido onze segundos mais rápido do que o segundo classificado, o seu companheiro Jody Scheckter. E isso era a sua face de génio. Outro lado dessa face foi o duelo com Alan Jones e de ter encostado logo depois da meta, praticamente sem a pressão de óleo no seu carro.
E Jarama 1981? Naquele Ferrari 126CK de motor turbo - uma bala em reta, uma carroça nas curvas - Villeneuve tinha vencido no mais improvável dos lugares, o Mónaco, e agora, naquela estreita pista de Madrid, tinha conseguido de novo, aguentando quatro rivais durante 65 voltas. Gordon Murray, que tinha passeado antes pelo circuito, disse-me depois que a corrida de Gilles tinha sido a melhor que jamais tinha assistido. 'Aquele carro era horrivel, mas conseguiu controlar a corrida sem cometer qualquer erro...'
Durante muitos anos, tive um longo debate com Dennis Jenkinson sobre os pilotos que viamos correr, e se ele disse que eu sobreestimei Jochen Rindt, e eu pensava o mesmo sobre Nelson Piquet, geralmente as nossas opiniões eram coincidentes. Algures em 1979, num paddock qualquer, Jenks mostrou-me umas notas no seu caderno acerca dos pilotos do momento. Em alguns nomes, ele colocava sentenças duras como 'desperdiçando o seu tempo', contra outros, que afirmava 'esforça-se muito' ou então 'um bom rapaz' e assim por diante. No topo da lista, tinha escrito de Alan Jones algo como 'alcançando o topo' e depois de Gilles Villeneuve: 'ele é o topo'. Como podem ver, não discordavamos muito.
O que diria então se visse os carros de hoje?
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