Todos nós temos um lado negro, do qual depende de nós controlá-lo. Nem todos conseguem, e espera-se que esse demónio não cause muito mal a nós mesmos e aos outros que estão à nossa volta. Só que nem isso é conseguido, e muitas das vezes, quando se atravessa uma linha vermelha, os estragos podem ser irreversíveis, sem hipótese de redenção. Os desportistas são provavelmente das pessoas mais pressionadas - ou estão mais sujeitas a extremos - quer físicos, quer psicológicos. A obsessão de ganhar, por vezes, leva a extremos, do qual nem todos aguentam. E também fazem despertar o seu pior de si.
Em pouco mais de um mês vimos a queda de dois ídolos: Lance Armstrong e Oscar Pistorius. O ciclista americano, que superou um cancro nos testículos para vencer sete Voltas a França seguidas, afinal, construiu toda a sua carreira à volta de um esquema ambicioso de "doping" sanguíneo, do qual confessou a Oprah Winfrey, num programa de televisão de grande audiência. E esta quarta-feira, Dia de São Valentim, a África do Sul acordou chocada com a noticia de que o atleta de 26 anos, duplo amputado das pernas, tinha matado a sua namorada, Reeva Stenkamp, de 29 anos.
E nos dias que se seguiram, descobriu-se um lado desconhecido de um atleta que lutou arduamente para que fosse aceite para correr nos Jogos Olímpicos, mesmo sendo duplo amputado: obcecado com armas e com um historial de violência doméstica. E as circunstâncias da morte da sua namorada demonstram essa violência: primeiro, espancada com um bastão de cricket, depois atingida com quatro tiros de uma pistola de 9 milimetros, quando esta se trancou na casa de banho da sua casa.
Muito provavelmente, tudo isto aconteceu num momento de fúria incontrolável do atleta, demonstrando o lado escuro deste ser humano que, indelevelmente, surgiu como um choque para todos nós. Mas os sinais estavam lá há muito tempo: numa das suas entrevistas, Pistorius - que a imprensa o alcunhou de "Blade Runner", devido às suas próteses - tinha dito que praticava tiro quando "ficava sem sono" e dormia com uma pistola de nove milímetros ao seu lado. Havia também uma pistola-metralhadora debaixo da janela da sua casa e bastões, um deles o tal de cricket, que haveria de a matar. E a sua aparente paranóia foi manifestada noutra entrevista, quando - alegadamente por ter ouvido um ruido estranho - saltou da cadeira e pegou numa pistola, agachado, procurando por um eventual intruso.
Que a Africa do Sul é um país violento, isso já se sabe. Mas Pistorius vivia num condomínio fechado de Joanesburgo, cercado por muros altos e cerca electrificada e vigiado por guardas, o que daria uma segurança grande. Logo, a ideia de que ele confundiu a sua namorada por um ladrão, como disse inicialmente, está cada vez mais a cair por terra. Esta terça-feira, o dia em que a sua namorada irá ser cremada, em Port Elizabeth, ele tentará convencer o juiz de que quer aguardar o julgamento em liberdade, sob uma elevada fiança.
A história - chocante - de Pistorius faz-me pensar sobre a razão pelo qual termos ídolos no desporto. Na minha opinião, irá sempre depender de como os olhamos para eles. Muitos fazem porque é algo que representa aquilo que queríamos ser e não fomos. Porque olhamos para eles para nos superarmos quando estamos em baixo de forma e queremos dar a volta por cima. Porque eles representam o nosso país, região, clube numa manifestação nacionalista, por vezes, quase irracional. E acima de tudo, porque representa o melhor de nós, seres humanos.
Só que há um problema: eles não são deuses ou ídolos sem falhas. São tipos muito bons na sua área, do qual ganham milhões com isso. E eu fico com a ideia de que são tratados como tal. O melhor exemplo são os que morreram cedo demais, como Ayrton Senna ou Gilles Villeneuve. Muitos os tratam hoje em dia como se fossem semi-deuses, muitas das vezes apagando das suas mentes as falhas e os seus erros, que cometeram. Ou então, sabem transformar as derrotas em vitórias. Acho que em muitos aspectos, a idolatria existente aos desportistas não vêm deles, mas parte de nós, pelas razões que expliquei acima.
E quando se descobre que os seus ídolos têm pés de barro, o choque e a tristeza são grandes. Exemplos não faltam: na minha adolescência, lembro da novela que foi a decadência de Diego Maradona, com a sua dependência de cocaína e as suas suspensões do futebol, antes de conseguir reabilitar-se. Mas houve outros que não conseguiram ou não estão a conseguir, como Garrincha e George Best, destruídos pelo álcool, ou Paul Gascoigne, que aos 45 anos, passa por mais uma crise devido à sua dependência à bebida. Provavelmente, se chegar vivo aos 50 anos, será um milagre.
No final, toda esta gente não passa de seres humanos com talento. E que são capazes de terem falhas, algo que muitas das vezes não queremos aceitar. Mas uma coisa é ser segundo classificado numa corrida, outra coisa é espancar a tua cara metade e depois abatê-la a tiro, num acesso de fúria. E sobre isso, terá o resto da vida para pensar sobre a atitude irreflectida que tomou. E muito provavelmente, atrás das grades.
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