1903: DE PARIS A MADRID, UM ÉPICO DE ESTRADA...
Apesar do governo francês manifestar sérias dúvidas sobre as corridas de estrada, devido à sua crescente periculosidade, e o facto de surgirem alternativas a este tipo de corridas de cidade para cidade, o ACF continuou a persistir na formula devido ao sucesso popular, e no inicio de 1903 decidiu organizar uma corrida de Paris até Madrid, dividido em três etapas: a primeira, indo até Bordéus, a segunda, indo pela costa até Biarritz, e a terceira, partindo de Vitória, já em terras espanholas, até à capital, Madrid. Se a primeira etapa avizinhava-se fácil, devido à retas, as outras duas eram mais sinuosas, com a agravante de as estradas espanholas não serem tão largas como as francesas - bem pelo contrário - e sinuosas.
A organização pediu - e conseguiu - a autorização do Rei Alfonso XIII de Espanha e munidos dela, o ACF tentou convencer o governo francês, liderado pelo primeiro-ministro Émile Combes, afirmando que se as estradas eram públicas, o público queria as corridas. Depois de uma aturada pressão, a 17 de fevereiro, Combes cedeu e a prova foi marcada para começar a 24 de maio de 1903.
As inscrições, abertas bem antes da aprovação do governo, a 15 de janeiro, foram um sucesso: 316 concorrentes inscreveram-se, um recorde absoluto. Destes, acabariam por partir 275: 112 carros pesados, 64 leves, 40 pequenas viaturas (voiturettes) e 59 motociclos.
No campo dos carros pesados, todos os grandes pilotos lá estavam: na Panhard, Henri Farman e o seu irmão Maurice Farman lá estavam, seguidos por René de Knyff, o barão Pierre de Crawhez, Georges Teste e o holandês Carl Van der Hayden, enquanto que do lado da Mors, estavam Henri Fournier, Fernand Gabriel, Jacques Salleron, Victor Rigal, o britânico Barão de Forest, o americano William K. Vanderbilt, entre outros.
A De Dietrich tinha pilotos como René de Brou, Madame Camille du Gast, e os britânicos Charles Jarrot, Phil Stead e Claude Lorraine Barrow, enquanto que a Mercedes tinha onze carros, para pilotos como os alemães Christian Werner, o francês Pierre de Caters, o austriaco Otto Hyeronimus, o americano Foxhall Keane, o britânico John Warden, o belga Camille Jenatzy, entre outros. Fernand Charron, Carl Voight e Ettienne Giraud alinhavam em CGV, os britânicos Herbert Austin, Leslie Porter e Sidney Girling em Woesleys e Mark Mayhew num Napier.
À medida que os dias passavam e o entusiasmo crescia, graças à divulgação nos jornais, os pilotos e mecânicos preparavam os seus carros. Todos faziam o possivel para aliviar os carros: os pilotos iam sentados numa prancha de madeira, e faziam buracos nos chassis no sentido de os tornar tão leves quanto possivel. Na busca pela velocidade, chegavam-se a extremos, e isso iria ter o seu preço na corrida.
Nas horas que antecederam a manhã de 23 de maio, já havia mais de cem mil espectadores na zona de Versailles, onde se iria dar a largada da prova. Chegou a haver comboios especiais no sentido de irem para o local da partida, e pelas quatro da manhã, quando Charles Jarrot foi o primeiro a partir, havia uma verdadeira mole humana, que abria e fechava com o passar dos carros. Com intervalos de um minuto, os carros largavam, mas com tantos concorrentes, quando o último saiu para a estrada, perto das sete da manhã, Jarrot já levava um avanço de... 230 quilómetros!
Entre Versailles e Bordéus, havia uma multidão calculada em três milhões (!) de pessoas a assistir á passagem dos carros pela estrada, alcançando velocidades na ordem dos 140 quilómetros por hora. Jarrot cedo foi ultrapassado pelo carro leve de Louis Renault que, apesar de ter "apenas" 30 cavalos, conseguia, graças à sua leveza, a estonteante velocidade de ponta de 146 quilómetros por hora (!) fazendo com que os carros pesados se esforçassem por o apanhar. O seu irmão, Marcel Renault, beneficiava dessa leveza para apanhar os da frente, depois de ter largado da... 60ª posição. Mas o que ele não sabia era que esta sua velocidade e esta vontade de o apanhar estava a resultar em diversos acidentes fatais, incluindo um que iria vitimar o seu irmão Marcel.
Estes começaram quando o De Dietrich de Lorraine Barrow perdeu o controlo do seu carro depois de ter evitado atropelar um cão e embateu contra uma árvore. O piloto ficou gravemente ferido e o seu mecânico, Pierre Rodez, teve morte imediata. Graças aos socorros da Madame Du Gast, Barrow foi levado para o hospital, mas acabaria por morrer dos ferimentos cerca de dois meses depois, em julho.
Leslie Porter, outro britânico, perdeu o controle do seu Woseley quando chegou depressa demais numa passagem de nível e capotou por várias vezes num descampado antes de embater numa casa. O seu mecânico Nixon acabou por morrer. Mark Mayhew, no único Napier presente, perdeu o controlo do seu carro quando a direção se quebrou, batendo numa árvore. Cuspido do carro, Mayhew ficou bastante ferido.
Em Couche Verác, Marcel Renault ia em duelo com o Decauville de Léon Théry quando devido ao pó levantado pelos carros que iam lançados, saiu de estrada e embateu com força contra uma árvore, a mais de 130 quilómetros por hora. Ambos ficaram gravemente feridos e Théry, ao ver um médico, o levou para o local para poder prestar os primeiros socorros. Poucos depois, foram levados ao hospital, mas acabaram por não resistir aos ferimentos. Marcel Renault morreria dois dias depois, sem recuperar a consciência.
Mas não eram só os pilotos que sofriam acidentes. Perto de Angoulême, um rapaz correu para o meio da estrada, no sentido de ver os carros. O piloto Tournand, a bordo de um Brouhot, se aproximava a alta velocidade quando um soldado o puxou, tentando tirá-lo da zona de perigo. Não conseguiu e ambos morreram, bem como o mecânico de Tourand, que não sobreviveu ao consequente despiste.
Quando os carros chegaram a Bordéus, ao principio, saudavam Louis Renault e o seu mecânico, Ferenc Szisz, com Charles Jarrot no segundo posto e Fernand Gabriel, num Mors, com este a receber os maiores aplausos, pois tinha partido... da 168ª posição, fazendo uma mítica corrida de recuperação. Mas com o passar dos minutos, e a chegada das más noticias e da carnificina que tinha acontecido ao longo da estrada para Bordéus, o ambiente mudou drasticamente. Ao todo, metade dos concorrentes tinham abandonado, vitimas de acidentes ou problemas mecânicos, mas corriam rumores de que doze pessoas tinham morrido, com mais de cem feridos, entre pilotos, mecãnicos e espectadores. Na realidade, tinham morrido oito pessoas, cinco pilotos (e mecânicos) e mais três espectadores. De qualquer forma, era provavelmente a prova mais trágica até então.
Louis Renault, sabendo logo do acidente do seu irmão, retirou-se de imediato da corrida e foi ter com ele antes que exalasse o último suspiro, e mais alguns pilotos também tiveram o mesmo gesto, mas mais rapidamente, os governos francês e espanhol ouvindo os relatos dos acidentes, decidiram ser mais radicais: cancelaram a corrida e proibiram sequer os pilotos de voltar a andar nos seus carros. Estes regressaram a Paris de comboio, com os carros a serem levados à estação... atrelados a cavalos.
A imprensa e a opinião publica pediam medidas enérgicas em relação aos automóveis. Enquanto que uns pediam que as corridas fossem pura e simplesmente banidas, outros pediam maior regulação nos carros, em relação não só ao peso, mas também à potência e à velocidade. Uma coisa era certa: as corridas em estrada aberta, ligando cidade a cidade, tinham terminado, passando a haver um novo tipo de competição.
Quando souberam do que se tinha passado em Bordéus, a organização do Circuito das Ardenas pensou por duas vezes sobre se iria ou não realizar a prova pelo segundo ano consecutivo. Depois de consultas com o governo local e com o Automóvel Clube Belga, decidiu-se que o modelo dos circuitos fechados seria bem mais seguro e a prova decorreu sem problemas no dia 22 de junho. Contudo, a organização decidiu fazer corridas em separado, um para os Carros Pesados e para os Carros Leves, e outro para as Voiturettes, com estes a correrem noutro circuito, em Arlon, a pedido do comércio local.
Na primeira corrida, havia Panhards (Pierre de Crawhez, George Heath), CGV (Leonge Girardot, Francois Giraud, Carl Voight), De Dietrich (Charles Jarrot, Julius Beutler, René de Brou), Serpollet (Hubert le Blon, Henri Callois), Darracq (Henri Beconnais), Mors (William K. Vanderbilt), Wolesley (Sidney Girling), entre outros.
Nos carros leves, estavam Fiat (Alessandro Cagno) Darracq (Paul Baras) Gobron-Brillée (Philippe Tavernaux) Clément (Xavier Civelli de Bosch, René Hanriot) e De Dion (Pierre Bardin)
A corrida começou com o Barão Pierre de Crawhez na frente, mas teve dificuldades quando viu centenas de pregos atirados para a estrada atirados por vândalos. De Crawhez escapa, mas Charles Jarrot não consegue evitar os pregos e fura, acabando por desistir. Sem problemas de maior, ele leva o carro até ao fim como vencedor, seguido por Giardot, no CGV, e De Brou, no De Dietrich. Pouco depois, largavam os carros leves, onde Paul Baras liderou do principio até ao fim, e o seu tempo foi o suficiente para ficar no quarto posto da geral, a 38 minutos do vencedor. Tavernaux foi o segundo e Cagno o terceiro.
Contudo, todos olharam para ambos os tipos de carros e viram até que ponto as diferenças se tinham esbatido: De Crawhez, num Panhard de 70 cavalos, tinha conseguido uma média de 96 quilómetros por hora num carro pesado, enquanto que Baras tinha tido uma média de 91 km/hora num carro leve, o Darracq. E quando no dia seguinte, as Voiturettes (corrida vencida por Louis Wagner, num Darracq, a uma média de 75,452 km/hora) tinham conseguido mais 20 km/hora de média do que no ano anterior, mostrava um nítido sinal de progresso na industria automobilística.
(continua no próximo episódio)
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