sábado, 4 de outubro de 2014

O péssimo nacionalismo é uma bela bosta

É bom termos orgulho do lugar onde nascemos e vivemos e não ficaremos contentes se alguém falar mal do nosso lugar. Mas há coisas dos quais acho que responder à ofensa com ofensa, é demais. Quem sabe ler história, sabe que foram os nacionalismos exacerbados de meados e finais do século XIX que levaram o mundo a duas Guerras Mundiais em menos de trinta anos no século XX, causando a morte de mais de cem milhões de pessoas, e muitas mais guerras que se sucederam depois de 1945, umas justas, outras nem tanto.

A história do conflito entre a Argentina e a Grã-Bretanha por causa das Ilhas Falkland (ou Malvinas, do lado argentino) têm a ver com duas coisas: os recursos naturais lá existentes e um certo nacionalismo exacerbado, que aproveitando a má situação económica do país, decide distrair as pessoas com uma guerrinha para "recuperar" um conjunto de rochas batidas pelo vento no extremo sul da América do Sul.

Em abril de 1982, o governo militar da altura, para esquecer o facto que tinha matado 30 mil opositores e que a sua situação económica era insustentável, decidiu invadir as Falkland (ou Malvinas), julgando que os britânicos não iriam reagir a um facto consumado. Ledo engano: a reação foi muito forte, e em dois meses, as ilhas foram recuperadas e o regime militar caiu com algum estrondo.

Nos anos seguintes, a Argentina tentou normalizar as suas relações com a Grã-Bretanha, e não se esforçou muito em reavivar as suas reivindicações. Contudo, nos últimos anos, um regime populista de esquerda, governado pelo casal Kirchner (primeiro Nestor, depois Cristina) decidiram reavivar a ideia de que "Las Malvinas son Argentinas", sobretudo a nível interno, até para desviar a atenção de que o seu pais está a caminhar lentamente para a recessão e a inflação (creio que anda pelos 30 por cento), para não falar do que aconteceu este verão, no caso da exigência de pagamento de dívidas antigas, de 2001, quando o pais entrou em "default". E com tudo isto, as Falkland (ou Malvinas) são um belo escape.

A noticia do apedrejamento dos membros do Top Gear na zona de Tolhun, perto de Usuhaia, na noite de quinta-feira, é devastadora, mas de uma certa forma, esperada. Já esperava isto desde que soube da chegada deles a Buenos Aires. Já sabia que o Jeremy Clarkson, conhecido por ser politicamente incorreto, iria provocá-los de uma maneira ou de outra, mesmo que neste verão, ele ter sido solenemente avisado pela direção da BBC que, caso cometesse mais uma asneira, seria despedido.

É claro que a história do Porsche com aquela matricula poderia ser evitada. É claro que a matricula era original, mas creio que aquele não foi o único Porsche 928 fabricado naquele ano (é de 1991), mas parece que quer Clarkson, quer o seu produtor, Andy Wilman, poderiam ter reduzido as tensões para um nível minimo. E tentaram: mudaram a matricula quando souberam disso, mas o estrago estava feito.

Mas as circunstâncias do apedrejamento dos membros da equipa de filmagens quase poderiam ter acabado mal. Todos abandonaram os carros com pressa e foram a correr (ou foram corridos) para a fronteira chilena, depois de terem sido avisados para abandonar a cidade de Usuhaia à pressa por "veteranos das Malvinas", mas que pelo que ando a ouvir, um grupo organizado pura e simplesmente para os agredir e expulsar. Nem quando eles tiverem problemas no "sul profundo" dos Estados Unidos, há uns anos atrás, causou toda esta confusão. Aqui foi bem grave.

Não nego que sou seguidor do Top Gear e admiro o "politicamente incorreto" do Clarkson, num mundo tão cinzento como é o nosso, mas sei que ele adora provocar, falando o que muitos não afirmam: que é um velho, branco, britânico, misógono, racista e com saudades do Império. Ele não nega que é Conservador - e suspeito (a suspeição é minha) que têm tendência de simpatizar o UKIP, um partido populista de extrema-direita que esta a subir nas sondagens à custa dos Conservadores.

Mas tudo o que se passou nestes quinze dias... sabia-se que estavam a caminhar num vespeiro. A imprensa também ajudou - o Top Gear é um sucesso mundial e eles são tremendamente conhecidos - mas três britânicos na Argentina, num país onde certas fações politicas levam a peito duas rochas no extremo sul do continente, pareciam que procuravam uma briga. Se esse era o objetivo, conseguiram. E quando colocarem o especial de Natal no ar - se o colocarem, claro - vai ter decerto uma enorme audiência. E vamos a ver se não será mais um capitulo tenso nas relações diplomáticas entre os dois países.

Agora perguntam: depois desta cagada toda, será que é desta que a BBC vai despedir o Clarkson? Talvez. Ele poderá ter todas as razões para usar o programa e o "especial de Natal" como uma forma de achincalhar os argentinos. Podem até voar para Port Stanley e reafirmar o seu "britishness" na cara dos portenhos. E os ingleses até podem perdoar, desculpar e colocar-se do lado dele, porque o orgulho nacional foi afetado.

Mas também há um problema: o económico. O Top Gear é um programa bem popular, e despedi-lo significaria colocar um fim ao programa, porque é ele a sua "alma". Sem ele, provavelmente as audiências cairiam e o programa seria logo cancelado. E há outra coisa: o Top Gear é mais do que um programa de televisão, é o mershandising, são outras coisas como uma revista e um espectáculo que viaja a vários cantos do planeta, como a Austrália ou a África do Sul. Para não falar que há programas semelhantes nos Estados Unidos e na Coreia do Sul. Em suma, despedir Jeremy Clarkson significaria que a BBC estaria a deitar fora um produto que rende 150 milhões de libras anuais.

Em suma: neste caso em particular, todas as partes são culpadas. Não há santos, não há inocentes. E isto demonstra mais uma vez que o nacionalismo é uma bosta.

1 comentário:

  1. Há ainda mais uma questão, Paulo: o Richard Hammond e o James May estarão dispostos a continuar sem o Clarkson?

    É que apesar daquilo que eles dizem de se "detestar" uns aos outros, tenho a impressão de que assim que ouvissem que o Clarkson fosse despedido, eram bem capazes de bater o pé e ameaçar ir também...

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Comentem à vontade, mas gostava que se identificassem, porque apago os anónimos, por bem intencionados que estejam...