UM ENSAIO SANGRENTO
Poucos dias depois, os carros da Ford faziam a travessia do Atlântico, rumo a Le Mans para os habituais ensaios pré-corrida. Aqui, os GT40 voavam, com Ken Miles ao volante. Ele andava a velocidades de 320km/hora na reta das Hunaudriéres, sem que fosse incomodado pelos Ferrari. Aliás, o único que incomodava naquele 3 de abril em La Sarthe era outro veterano, noutro Ford: Walt Hansgen.
Nascido a 28 de outubro de 1919, como Miles, era já veterano. E tinha chegado tarde ao automobilismo, em 1956, quando andou nas corridas da Sports Car Club of America, a SCCA. Um ano antes, em Watkins Glen, tinha sido quinto classificado a bordo de um Lotus 33 oficial de Formula 1, a uma idade que mais velho que ele, só Juan Manuel Fangio e Luigi Fagioli, uma década e meia antes. Tinha sido um dos pilotos que a Holman-Moody tinha contratado para ajudar a bater os Ferrari e ficar com a glória em Le Mans.
Nascido a 28 de outubro de 1919, como Miles, era já veterano. E tinha chegado tarde ao automobilismo, em 1956, quando andou nas corridas da Sports Car Club of America, a SCCA. Um ano antes, em Watkins Glen, tinha sido quinto classificado a bordo de um Lotus 33 oficial de Formula 1, a uma idade que mais velho que ele, só Juan Manuel Fangio e Luigi Fagioli, uma década e meia antes. Tinha sido um dos pilotos que a Holman-Moody tinha contratado para ajudar a bater os Ferrari e ficar com a glória em Le Mans.
Ao longo da manhã, Hansgen voava no seu carro, e fazia tempos semelhantes aos de Miles, apesar da chuva que caía e causava incómodo nos pilotos. Tinham pedido para que fosse mais comedido, mas havia ali uma luta para ver quem fazia o melhor tempo entre eles.
"Na boxe, Carrol Smith apontava as velocidades de ponta para o relatório oficial da Shelby American. Viu um Ford MKII passar a todo o gás, conduzido pelo veterano Walt Hansgen. Smith olhou para o cronómetro e abanou a cabeça. Registava 3:46,8. A manhã inteira, Hansgen fora mandado abrandar, mas o piloto não parava da dar voltas mais rápidas. Parecia decidido a provar ser capaz de igualar a velocidade de Ken Miles. Smith observou-o descer a reta a todo o vapor e viu a cauda do veículo contorcer-se de súbito. Hansgen tinha passado por alguma poça de água e estava a fazer acquaplanagem. Pneus chiavam à medida que a traseira da viatura se descontrolava, com o piloto obivamente a trabalhar freneticamente, fazendo correções de fracções de segundo a uma velocidade bem superior a 150 km/hora.
'Cristo', gemeu Smith, de dentes cerrados, 'espero que consiga resolver esta'.
O Ford atingiu um banco de areia e capotou várias vezes, caindo à terra numa nuvem de fumo. As boxes esvaziaram-se. Espectadores e repórteres acorriam à cena.
O carro destroçado não mais se assemelhava a um automóvel com a excepção das rodas a saírem dos eixos torcidos. No interior, Hansgen estava encurralado e possivelmente vivo. Não respondia. A multidão começou a aumentar, centenas tinham-se reunido no local. Dedos apontavam e obturadores de máquinas fotográficas clicavam. Era aquilo que tinham ido ver?"
A.J. Baime, "Como Uma Bala", pag. 237
Hansgen foi levado para o hospital mais próximo, onde os médicos tentaram salvar-lhe a vida. Acabaria por morrer cinco dias depois, em Orleans, no Hospital Americano. Tinha 47 anos.
No final, nenhum dos dois tinha sido o melhor nos ensaios. John Surtees tinha levado o 330 P3 ao too da tabela de tempos, mostrando que não tinha perdido nada da sua velocidade com o seu acidente, sete meses antes.
A PANELA EXPLODE
Se Surtees estava de volta à sua forma, as tensões no seio da Ferrari aumentavam. Não só tinha a ver com as preferências de Eugenio Dragoni, mas também com a própria personalidade do piloto britânico. Não era uma pessoa de fácil trato, e isso via-se quando ele começou a criticar fortemente o 330 P3, que tinha sido desenvolvido durante a sua ausência forçada. Achava que em termos aerodinâmicos, o carro não estava bem, e dizia isso, para irritação dos seus engenheiros e aerodinamistas. "A ideia de John de uma equipa perfeita é aquela em que o Surtees é o dono, o Surtees é o designer, o Surtees é o engenheiro, o Surtees é o diretor de equipa, o Surtees é o piloto. Desta forma, poderia ter a certeza de ter cem por cento de dedicação por parte do pessoal!", disse um critico acerca dele.
Dragoni achou que isso seria uma boa maneira de agarrar por ali, e as tensões explodiram durante o fim de semana do GP do Mónaco, primeira prova do Mundial de Formula 1 de 1966, e a primeira da nova era dos 3 litros. A Scuderia tinha pronto dois motores, um de seis cilindros, o 246, e o 218, de 12 cilindros, que mais tarde iria caber no primeiro da série 312, que iria existir até 1980. Surtees não queria guiar o 12 cilindros, por achar que não estava suficientemente potente e capaz de vencer à concorrência, e queria o seis cilindros, mais fiável, usado por Bandini. Dragoni não o autorizou, e as discussões passaram a ser à vista de toda a gente.
"- Nós fazemos carros de estrada de 12 cilindros - cuspiu Dragoni - por isso terás de correr com o V12.
- Já te disse, não posso vencer com ele. Pensei que tinhamos vindo ao Mónaco para vencer a corrida!
Dragoni encolheu os ombros.
- Oh, podes crer que vais vencer a corrida."
A.J. Baime, "Como uma Bala", pgs. 242-243
Não venceu. Apesar de largar da segunda posição da grelha, a transmissão do seu Ferrari cedeu na volta 18. Bandini, quinto na grelha, acabou em segundo lugar, apenas atrás do vencedor, o escocês Jackie Stewart, no seu BRM.
Mas Surtees acabou por vencer na corrida seguinte, um chuvoso GP da Bélgica, em Spa-Francochamps, onde seis pilotos foram eliminados logo na primeira volta. entre eles os BRM de Graham Hill e Jackie Stewart, e o Cooper-Maserati de Jo Bonnier, cujo carro ficou pendurado na berma da estrada, de modo dramático, apenas com o peso do seu motor de 12 cilindros a impedir que o piloto sueco caísse no precipício.
Apesar da vitória, mítica, o que não se sabia é que Enzo Ferrari tinha decidido despedir Surtees no final do Grande Prémio. Franco Gozzi tinha ido a Spa com dois jornalistas da Autosprint, para ficar com a noticia em primeira mão. Dragoni tinha dito que Surtees tinha visto o 330 P3 e tinha pedido a Eric Broadley, da Lola, para construir um carro semelhante - o que era mentira - e Ferrari começava a ouvi-lo. Espionagem industrial era um crime grave, e razão suficiente para despedimento. Contudo, depois da pilotagem espectacular do britânico à chuva - e logo na sua segunda corrida na Formula 1 após o seu acidente grave - Gozzi telefonou para Maranello a pedir instruções. O Commendatore disse que a decisão estava suspensa.
Contudo, apesar do bom arranque na Formula 1, e de nova vitória nos 1000 km de Monza, no 330 P3, com o seu compatriota Mike Parkes a vez no seu turno de condução, Ferrari sabia que as coisas boas estavam a chegar ao fim. Ele entendia que o peso da Ford era tal que a vitória seria uma inevitabilidade. E pior: as tensões não diminuíram no seio da Ferrari. Pouco depois de ter-se reunido com Surtees e Dragoni, onde ambos colocaram de modo agressivo os seus pontos de vista, falou com o seu lugar-tenente, Franco Gozzi, e disse que precisava de um "plano B" caso as coisas com Surtees corressem mal. Decidiu que iria falar com Luigi Chinetti, que tinha descoberto na América um rapaz que sabia guiar e também sabia falar italiano: Mário Andretti.
Nascido a 28 de fevereiro de 1940 em Montona, então na Istria italiana - atualmente na Croácia - Andretti tinha um irmão gémeo, Aldo. Depois da guerra, refugiaram-se em Lucca e começou a ver corridas em 1954, em Monza. O seu ídolo tinha sido Alberto Ascari, e pouco tempo depois, a familia emigrou para os Estados Unidos, mais concretamente para Nazareth. Os irmãos começaram a correr num Hudson e quando Aldo se magoou num acidente, ele usou o seu capacete cinzento em sua honra. Em 1965, tinha dado nas vistas ao fazer a pole-position nas 500 Milhas de Indianápolis, e cedo caía no radar de Luigi Chinetti, que por sua vez, caía também no radar de Enzo Ferrari.
Quando Gozzi telefonou para ele, perguntou se poderia guiar para eles de imediato. Andretti, que já era cidadão americano, desejava triunfar nos dois continentes, na América e na Europa. Queria vencer as 500 Milhas, mas também guiar um Formula 1 e ser campeão do mundo, de preferência num Ferrari. E também subir ao lugar mais algo do pódio em La Sarthe. Contudo, ele achava que era cedo demais para ir à Europa e guiar pela Scuderia. Agradeceu a Gozzi a oportunidade que estava a conceder, mas pediu para que voltasse a telefonar dentro de um ano, que estaria mais maduro para uma coisa dessas.
Ironia das ironias: Andretti estaria em Le Mans, mas a guiar... pela concorrência, pois a Ford, com falta de pilotos inicialmente escolhidos como Jackie Stewart e Lloyd Ruby, lhe deu uma quantia de dinheiro suficiente para ele não recusar.
Faltava menos de uma semana para as 24 Horas de Le Mans. Novo confronto estava em perspectiva, e ninguém iria sair defraudado.
(continua)
"Na boxe, Carrol Smith apontava as velocidades de ponta para o relatório oficial da Shelby American. Viu um Ford MKII passar a todo o gás, conduzido pelo veterano Walt Hansgen. Smith olhou para o cronómetro e abanou a cabeça. Registava 3:46,8. A manhã inteira, Hansgen fora mandado abrandar, mas o piloto não parava da dar voltas mais rápidas. Parecia decidido a provar ser capaz de igualar a velocidade de Ken Miles. Smith observou-o descer a reta a todo o vapor e viu a cauda do veículo contorcer-se de súbito. Hansgen tinha passado por alguma poça de água e estava a fazer acquaplanagem. Pneus chiavam à medida que a traseira da viatura se descontrolava, com o piloto obivamente a trabalhar freneticamente, fazendo correções de fracções de segundo a uma velocidade bem superior a 150 km/hora.
'Cristo', gemeu Smith, de dentes cerrados, 'espero que consiga resolver esta'.
O Ford atingiu um banco de areia e capotou várias vezes, caindo à terra numa nuvem de fumo. As boxes esvaziaram-se. Espectadores e repórteres acorriam à cena.
O carro destroçado não mais se assemelhava a um automóvel com a excepção das rodas a saírem dos eixos torcidos. No interior, Hansgen estava encurralado e possivelmente vivo. Não respondia. A multidão começou a aumentar, centenas tinham-se reunido no local. Dedos apontavam e obturadores de máquinas fotográficas clicavam. Era aquilo que tinham ido ver?"
A.J. Baime, "Como Uma Bala", pag. 237
Hansgen foi levado para o hospital mais próximo, onde os médicos tentaram salvar-lhe a vida. Acabaria por morrer cinco dias depois, em Orleans, no Hospital Americano. Tinha 47 anos.
No final, nenhum dos dois tinha sido o melhor nos ensaios. John Surtees tinha levado o 330 P3 ao too da tabela de tempos, mostrando que não tinha perdido nada da sua velocidade com o seu acidente, sete meses antes.
A PANELA EXPLODE
Se Surtees estava de volta à sua forma, as tensões no seio da Ferrari aumentavam. Não só tinha a ver com as preferências de Eugenio Dragoni, mas também com a própria personalidade do piloto britânico. Não era uma pessoa de fácil trato, e isso via-se quando ele começou a criticar fortemente o 330 P3, que tinha sido desenvolvido durante a sua ausência forçada. Achava que em termos aerodinâmicos, o carro não estava bem, e dizia isso, para irritação dos seus engenheiros e aerodinamistas. "A ideia de John de uma equipa perfeita é aquela em que o Surtees é o dono, o Surtees é o designer, o Surtees é o engenheiro, o Surtees é o diretor de equipa, o Surtees é o piloto. Desta forma, poderia ter a certeza de ter cem por cento de dedicação por parte do pessoal!", disse um critico acerca dele.
Dragoni achou que isso seria uma boa maneira de agarrar por ali, e as tensões explodiram durante o fim de semana do GP do Mónaco, primeira prova do Mundial de Formula 1 de 1966, e a primeira da nova era dos 3 litros. A Scuderia tinha pronto dois motores, um de seis cilindros, o 246, e o 218, de 12 cilindros, que mais tarde iria caber no primeiro da série 312, que iria existir até 1980. Surtees não queria guiar o 12 cilindros, por achar que não estava suficientemente potente e capaz de vencer à concorrência, e queria o seis cilindros, mais fiável, usado por Bandini. Dragoni não o autorizou, e as discussões passaram a ser à vista de toda a gente.
"- Nós fazemos carros de estrada de 12 cilindros - cuspiu Dragoni - por isso terás de correr com o V12.
- Já te disse, não posso vencer com ele. Pensei que tinhamos vindo ao Mónaco para vencer a corrida!
Dragoni encolheu os ombros.
- Oh, podes crer que vais vencer a corrida."
A.J. Baime, "Como uma Bala", pgs. 242-243
Não venceu. Apesar de largar da segunda posição da grelha, a transmissão do seu Ferrari cedeu na volta 18. Bandini, quinto na grelha, acabou em segundo lugar, apenas atrás do vencedor, o escocês Jackie Stewart, no seu BRM.
Mas Surtees acabou por vencer na corrida seguinte, um chuvoso GP da Bélgica, em Spa-Francochamps, onde seis pilotos foram eliminados logo na primeira volta. entre eles os BRM de Graham Hill e Jackie Stewart, e o Cooper-Maserati de Jo Bonnier, cujo carro ficou pendurado na berma da estrada, de modo dramático, apenas com o peso do seu motor de 12 cilindros a impedir que o piloto sueco caísse no precipício.
Apesar da vitória, mítica, o que não se sabia é que Enzo Ferrari tinha decidido despedir Surtees no final do Grande Prémio. Franco Gozzi tinha ido a Spa com dois jornalistas da Autosprint, para ficar com a noticia em primeira mão. Dragoni tinha dito que Surtees tinha visto o 330 P3 e tinha pedido a Eric Broadley, da Lola, para construir um carro semelhante - o que era mentira - e Ferrari começava a ouvi-lo. Espionagem industrial era um crime grave, e razão suficiente para despedimento. Contudo, depois da pilotagem espectacular do britânico à chuva - e logo na sua segunda corrida na Formula 1 após o seu acidente grave - Gozzi telefonou para Maranello a pedir instruções. O Commendatore disse que a decisão estava suspensa.
Contudo, apesar do bom arranque na Formula 1, e de nova vitória nos 1000 km de Monza, no 330 P3, com o seu compatriota Mike Parkes a vez no seu turno de condução, Ferrari sabia que as coisas boas estavam a chegar ao fim. Ele entendia que o peso da Ford era tal que a vitória seria uma inevitabilidade. E pior: as tensões não diminuíram no seio da Ferrari. Pouco depois de ter-se reunido com Surtees e Dragoni, onde ambos colocaram de modo agressivo os seus pontos de vista, falou com o seu lugar-tenente, Franco Gozzi, e disse que precisava de um "plano B" caso as coisas com Surtees corressem mal. Decidiu que iria falar com Luigi Chinetti, que tinha descoberto na América um rapaz que sabia guiar e também sabia falar italiano: Mário Andretti.
Nascido a 28 de fevereiro de 1940 em Montona, então na Istria italiana - atualmente na Croácia - Andretti tinha um irmão gémeo, Aldo. Depois da guerra, refugiaram-se em Lucca e começou a ver corridas em 1954, em Monza. O seu ídolo tinha sido Alberto Ascari, e pouco tempo depois, a familia emigrou para os Estados Unidos, mais concretamente para Nazareth. Os irmãos começaram a correr num Hudson e quando Aldo se magoou num acidente, ele usou o seu capacete cinzento em sua honra. Em 1965, tinha dado nas vistas ao fazer a pole-position nas 500 Milhas de Indianápolis, e cedo caía no radar de Luigi Chinetti, que por sua vez, caía também no radar de Enzo Ferrari.
Quando Gozzi telefonou para ele, perguntou se poderia guiar para eles de imediato. Andretti, que já era cidadão americano, desejava triunfar nos dois continentes, na América e na Europa. Queria vencer as 500 Milhas, mas também guiar um Formula 1 e ser campeão do mundo, de preferência num Ferrari. E também subir ao lugar mais algo do pódio em La Sarthe. Contudo, ele achava que era cedo demais para ir à Europa e guiar pela Scuderia. Agradeceu a Gozzi a oportunidade que estava a conceder, mas pediu para que voltasse a telefonar dentro de um ano, que estaria mais maduro para uma coisa dessas.
Ironia das ironias: Andretti estaria em Le Mans, mas a guiar... pela concorrência, pois a Ford, com falta de pilotos inicialmente escolhidos como Jackie Stewart e Lloyd Ruby, lhe deu uma quantia de dinheiro suficiente para ele não recusar.
Faltava menos de uma semana para as 24 Horas de Le Mans. Novo confronto estava em perspectiva, e ninguém iria sair defraudado.
(continua)
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