terça-feira, 12 de novembro de 2019

Ford versus Ferrari - A verdade por trás do filme (parte 3)

(continuação do capitulo anterior)



O PRIMEIRO GRANDE TESTE


1964 avançava e ao chegar Junho, chegava também mais uma edição das 24 horas de Le Mans. Era a primeira vez que os americanos iriam tentar a sério desafiar a Ferrari e decidiram colocar três carros para esta edição. Richie Ginther e Masten Gregory iam num carro, o segundo era ocupado por Bruce McLaren e Phil Hill, e o terceiro tinha Jo Schlesser e o britânico Richard Attwood no seu lugar.

Shelby também estava presente, mas com os seus Cobras construídos especialmente para a competição. Debaixo da inscrição de "Shelby-American", com um motor de 4,7 litros capazes de fazer 400 cavalos e uma velocidade se ponta de 275 km/hora, eles eram capazes de colocar um desafio para a Ferrari. Dois carros estavam inscritos, um para Dan Gurney e Bob Bondurant, outro para Ken Miles e Bob Hollbert. Mas este último acabou por não chegar a tempo e apenas o primeiro participou. Mas havia mais dois Shelbys, um para Briggs Cunningham, com o neozelandês Chris Amon e o alemão Jochen Neerspach ao volante, e o outro para Ed Hugus, mas ele também acabou por não participar.

A Ford estava numa pilha de nervos. Era o seu primeiro grande teste, e os ensaios, como já viram. não correu nada bem. John Wyer tentava controlar as coisas como um general no campo de batalha, mas a interferência de Dearborn estava já presente. E para piorar as coisas, três semanas antes, Lee Iaccoca tinha assistido na tribuna principal da oval de Indianápolis à bola de fogo do carro de Dave McDonald na primeira volta das 500 Milhas desse ano. E entre os mortos estava Eddie Sachs, que Iaccoca conhecia bem: ambos eram da mesma cidade, Allentown, Pennsilvânia. A pressão para que tudo corresse bem era enorme.

Na Ferrari, era outro exército. Sete carros tinham sido inscritos, quatro deles de forma oficial. Um para John Surtees e Lorenzo Bandini, os pilotos da equipa de Formula 1, outro para Nino Vacarella e o francês Jean Guichet, um o terceiro para Mike Parkes e Ludovico Scarfiotti e o quarto para Giancarlo Baghetti e Umberto Maggioli.


À ameaça da Ford, Ferrari respirava confiança. A consideração aos carros americanos era baixa, de tal forma que Luigi Chinetti, o conhecedor da realidade americana, chegou a brincar sobre a realidade automobilistica.

"- Afinal de contas, o melhor automóvel desportivo americano é o jipe, não é?"

Nos treinos, os Ferrari dominavam, com Surtees a conseguir uma volta na casa do 3.42 minutos, mas logo a seguir ficava o Ford de Bruce McLaren. Mas a sua participação era isolada, porque logo a seguir estava um mar de Ferraris. 

E a partida foi sintomática da situação de ambas as marcas. Se Pedro Rodriguez fez uma largada espectacular, conseguindo ficar na liderança no final da primeira volta, já Phil Hill teve problemas no motor de arranque, que o fez perder mais de um minuto e largar de último. Mas na segunda volta, enquanto os Ferraris eram avisados da mancha de óleo deixada pelo carro de David Piper - um Ferari 250TR verde - Richie Ginther aproveitou o abrandamento para passar os carros vermelhos e ficar na frente da corrida. Nas 15 voltas seguintes, o americano tinha alargado a sua liderança para 15 segundos, mas colocando o motor a 7200 rotações por minuto (RPM), bem mais que os 6500 RPM recomendados pelos mecânicos.

Mas no final da tarde, quando Ginther cedeu o carro a Gregory, a troca foi mal sucedida e perdeu a liderança para Surtees. Atrás, Phil Hill descobriu que tinha um carburador Weber bloqueado com sujidade depois o terem esquecido de o limpar na noite anterior, quando tinham trocado de motor. E com isso, estava muito, mas muito atrasado na classificação.

"Phil Hill estava de volta à boxe e os mecânicos vasculhavam pelo compartimento do motor. Os minutos passavam velozmente e Hill ia perdendo cada vez mais terreno. A equipa encontrou o problema: um pulverizador bloqueado num dos carburadores Weber que não o deixava respirar. Aqueles carburadores de produção italiana eram tão complexos que os mecânicos ficavam confusos com eles. Onde diabo andava o representante da Weber? Com o ruído dos motores por fundo, John Wyer ouviu um homem gritar-lhe lá de cima da multidão. Ergueu o olhar. Era o representante da Weber.

- O que é que estás a fazer aí em cima? - gritou Wyer.
- Eles não me quiserem dar um passe para as boxes - veio a resposta.

Finalmente o carburador lá foi arranjado e Hill partiu num GT40 saudável. Comprimindo naquele cockpit pequeno, o campeão começou a ziguezaguear pelo meio do tráfego. Por essa altura, Hill encontrava-se no 44º lugar. Tinha perdido 22 minutos. Para alcançar os Ferrari à aquela distância eram necessários os poderes de um super-herói. Hill conhecia o circuito melhor que ninguém.
"

A.J. Baime, "Como Uma Bala", pg. 129. 

 E o terceiro carro, o de Schlesser e Attwood, acabou com um fogo na quinta hora da corrida.

Na frente, Gregory fazia o melhor para acompanhar os Ferrari, mas pelas 21:30 a sua corrida tinha acabado: a caixa de velocidades tinha cedido, com o carro apenas a andar em segunda velocidade. Pela meia-noite, os Ferrari ocupavam os três primeiros lugares, com Surtees a ser o primeiro, seguido por Vacarella e o terceiro a ser o 330P privado - da britânica Maranello Concessionaires - guiado pelo britânico Graham Hill e o sueco Jo Bonnier.

Mas depois, o carro de Surtees desenvolveu uma fuga de óleo e perdeu tempo cedendo o comando para Vacarella. Atrás, Hill fazia uma corrida de recuperação e estava nos primeiros lugares quando, pelas 4:30 da manhã, a sua caixa de velocidades cedeu. Era quarto classificado quando isso aconteceu, uma subida de... 40 posições em pouco mais de nove horas.

No final, os Ferrari monopolizavam o pódio, com Vacarella e Guichet a serem os vencedores, Hill e Bonnier no segundo posto, com Surtees e Bandini a ficar com o lugar mais baixo do pódio, sobrevivendo a problemas de óleo e combustível. Gurney e Bondurant foram quartos, a quinze voltas do vencedor, mas a levar o seu Shelby sobrevivente ao fim.

Como primeiro ensaio, a Ford tinha mostrado potencial, mas perderam em toda a linha. Dos seis primeiros, apenas o Shelby era um intruso num mar de Ferraris. Alguma coisa tinha de ser feita.


O MELHOR DO MUNDOS... COM UMA SOMBRA


Para John Wyer, o potencial do carro estava lá, e como primeiro ano e com os ensaios complicados, a sua performance foi um milagre. O problema tinha sido nos carburadores e nas caixas de velocidades, irónicamente compostos italianos (Weber e Colotti). Motor e chassis tinham aguentado bem, a sua participação tinha sido digna. Mas sem que ninguém soubesse, a assistir em silêncio estava Leo Beebe. Era o numero dois da Ford, o principal conselheiro e braço-direito de "Deuce" e tinham conhecido na guerra.

Quando todos viram Beebe por ali, no final da corrida, ele disse que isso não chegava. Tinha instruções precisas para que aqueles carros vencessem algo a qualquer custo, e queria-os nas 12 Horas de Reims, no fim de semana de 4 de julho. Wyer objetou, afirmando que não dava tempo de testar o carro com novos componentes, que era o que precisava. Contrariados, eles alinharam os mesmos carros, e muito antes de acabar a corrida, eles já se tinham retirado, com a Ferrari a monopolizar o pódio no final dessas doze horas de corrida.

Em Maranello, vivia-se o melhor dos mundos. Enzo Ferrari tinha tudo na mão, os seus carros venciam nos GT's, na Endurance e na Formula 1. Aí contava com uma excelente dupla, constituida por John Surtees e Lorenzo Bandini.

As origens de ambos os pilotos não poderiam ser distintas. Surtees nascera a 11 de fevereiro de 1934 e antes de entrar num carro com quatro rodas e um volante, era um campeão. Começou a andar em motos, graças ao seu pai, um corredor motociclistico, e entre 1956 e 1960 tinha vencido os títulos de 500cc por quatro vezes e de 350cc por três, quase sempre guiando motos MV Agusta. Era o melhor piloto de motos do mundo.

Nesse ano de 1960 decidiu trocar pelas quatro rodas, e a sua entrada foi de rompante. Com um lugar na Lotus, então a começar as suas atividades, fora segundo classificado em Silverstone, e fizera a primeira pole-position da marca no circuito da Boavista, nos treinos para o GP de Portugal. No final do ano, porém, decidiu ficar com Reg Parnell, que com os seus carros da privada Yeoman Racing Credit, conseguiu alguns pódios, especialmente em 1962, com os Lola. Foi por isso que Enzo Ferrari o contratou para a temporada de 1963.

Foi ali que ganhou a sua primeira corrida, o GP da Alemanha, no difícil circuito de Nurburgring, o Nordschleife, com 23 quilómetros e mais de cem curvas. Em 1964, Surtees tinha vencido outra corrida no Nordschleife, enquanto Bandini tinha triunfado na prova seguinte, na Austria, numa pista construída na base aérea de Zeltweg.

Nascido a 21 de dezembro de 1935 na cidade de Marj, na então colónia italiana da Líbia, a familia de Lorenzo Bandini emigrara para Itália quando ele tinha quatro anos de idade. Aos 15 perdeu o pai, e decidiu aprender mecânica numa oficina de Goliardo Freddi, em Milão. Ele viu o potencial de corrida quando participou em provas num Fiat 1100, e também acabou por se casar com a sua filha, Margherita. A sua carreira avançou até chegar a 1961, onde Ferrari o observou. Havia um lugar disponível e o concurso era entre ele e Baghetti. Acabaram por escolher este último e Bandini foi para a Scuderia Centro-Sud, dirigida por Mimmo Dei, participando em quatro corridas em 1961.

Contudo, Ferrari contratou-o em 1962, tendo conseguido um terceiro lugar nas ruas do Mónaco, mas no final do ano, acabou por ser dispensado, pelo menos na sua equipa de Formula 1. Voltou à Scuderia Centro Sud em 1963 e depois de três corridas e um quinto posto em Silverstone, Ferrari voltou a chamá-lo para fazer o resto do campeonato. Ali conseguiu mais dois quintos lugares, e em 1964, conseguira novo pódio na Alemanha e a vitória na Áustria.

A Scuderia parecia ir alegremente para o título na Formula 1, depois das vitórias em Le Mans. Contra Lotus e BRM, os garagistas britânicos que Ferrari tanto desprezava, tinha levado a melhor. Ferrari gostava de Surtees, sabia que era bom, mas para uma pessoa, as prioridades estavam trocadas.

Eugenio Dragoni era de Milão e tinha ascendido ao lugar de diretor desportivo da Scuderia com a partida dos dissidentes, em 1961, pois era um subordinado do seu antecessor, Romolo Tavoni. Tinha visto a carreira de Bandini e ele achava que era o digno sucessor do caminho traçado antes por Tazio Nuvolari e Alberto Ascari, e considerava Surtees como um intruso. Verdade, "il Grande John" falava italiano fluentemente e era conhecido do grande público, graças aos seus anos na MV Agusta, mas a politica e o nacionalismo falavam alto, e se os carros estavam bem, teriam de ser os italianos a guiá-la. E não escondia a sua hostilidade para Surtees.

Em Monza, Bandini esforçou-se para ser o melhor, mas Surtees superara-o. Fizera a pole-position e liderou a corrida do principio ao fim, com Bandini a ficar com o lugar mais baixo do pódio. Mas no final, com o britânico a caminho de receber a taça do vencedor, uma multidão elevava Bandini do seu carro e o levava em braços para a tribuna, perante uma multidão em delírio. No meio do triunfo, as sementes da discórdia estavam bem plantadas...

Mas isso não impediu Surtees de triunfar no campeonato, e Bandini até deu uma "ajuda". Na prova final da temporada, no circuito da Cidade do México, Surtees e Bandini foram segundo e terceiro, numa prova vencida pelo Brabham de Dan Gurney, dando o campeonato ao britânico, que entrava na história por um feito único: campeão nas duas e quatro rodas. E Bandini tinha ajudado a colocar fora, numa manobra "involutária" o BRM de Graham Hill, o principal rival de Surtees para o campeonato.

(continua)   

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