terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A imagem do dia


Que vivemos numa sociedade desigual, isso sabemos. Desigualdades sociais, sexuais, de raça ou de religião são algumas das questões no qual somos bombardeados todos os dias, de tal forma que alguns limitam-se a virar de canal sempre que vê refugiados a caminho da Europa, porque já não querem saber. E estes são os indiferentes, porque há os hostis, bem piores. E claro, há a maré de gente que tenta, com gestos e ações, minorar todos estes problemas. Passar dias ao frio e relento com eles, distribuindo comida e aquecimento, combater as burocracias que colocam obstáculos, um a um, para impedir, por exemplo, juntar famílias na Europa, porque um dos familiares está a num determinado país, com os papéis em dia, até com a nacionalidade dessa nação, e pagando impostos como um cidadão qualquer.

Este século XXI, com as redes sociais, não resolveu os problemas, exacerbou-os. O racismo, a xenofobia, a discriminação sexual, mesmo que a lei os proteja, mesmo que, aos poucos, um pouco por todo o mundo, por exemplo, as pessoas com o mesmo sexo possam casar e qualquer discriminação é punido pela lei. E a cada dia que passa, um pouco por todo o mundo, acontecem crimes de ódio racial, violência doméstica contra mulheres e homossexuais, que muitas das vezes acabam em morte. A lei existe, a punição também, mas ela é aplicada quando o facto é consumado e sentença é aplicada. Infelizmente, não salva a vítima.

Porque falo disto tudo? Porque são exemplos, e nestes tempos que correm queremos exemplos, não símbolos. E no automobilismo, desporto onde muitas das vezes parece o último refúgio do homem branco, gosta mais de símbolos do que ações práticas. E ao longo destes mais de 70 anos de história da Formula 1, por exemplo, só tivemos três negros, cinco mulheres, três LGBT's (que se tem conhecimento) e dúzia e meia de asiáticos, três deles no atual pelotão. E o facto do piloto mais famoso e mais vitorioso do atual pelotão ser negro é provavelmente algo que veremos uma vez na vida, se não aparecer outro. 

Mas também falo disto tudo porque a Formula 1 anunciou esta terça-feira que irá acabar o "We Race As One", ou seja o gesto de ajoelhamento que os pilotos faziam antes das corridas. Era simbólico, afirmando que eram contra o racismo e os gestos anti-racistas, de que as vidas negras importavam, como todas as outras. A ideia era boa, o gesto significativo, mas como se costuma dizer, o caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções. E sempre que os via ajoelhar em todos os Grandes Prémios, ouvia na minha mente a musica dos AC/DC cantada pelo Bon Scott, no final dos anos 70. Sempre pareceu um gesto de "sportwashing", para aplacar os mais políticos.

Olhem o que a Formula 1 faz neste momento: corre em quatro nações da Península Arábica, está "afogada" em dinheiro árabe, e esses países - e o causo saudita é o mais flagrante - cujo registo histórico de direitos humanos é baixo - para não falar nulo - e a Formula 1 age como se fosse uma prostituta de luxo, que se vende por uma oferta muito alta. E do atual pelotão, quem está mais aplicado em tudo isto, da diversidade: somente Hamilton e Sebastian Vettel. Há outros que, sequer, se ajoelhavam antes das corridas, uns porque sabiam que o gesto era pouco mais que simbólico. Outros, porque nunca gostavam das causas que a Formula 1 defendia e eram a favor de remar contra a corrente. 

Sim, sejamos honestos: a Formula 1 é uma elite. Que corre por dinheiro, e não quer saber muito sobre Direitos Humanos. E isso já vem de longe. E usa a diferença como "poster boys" para mostrar que é tolerante. E os que detestam a diferença e aplaudem a decisão tomada hoje, ainda pedirão à Formula 1 para que regressem as "grid girls", apenas vestidas de bikini, e os motores muito barulhentos, V10 ou V12, sem "traquitanas" para poderem dizer que "tudo regressou a normalidade". São esses os que vêm este desporto, como se podemos congelar algum ano da infância deles (de preferência, algures nos anos 70 ou 80) para sempre. 

Mas a grande ironia é que isto seja feito numa altura em que temos o pelotão mais diversificado de sempre. Temos um mestiço britânico, um japonês, um chinês, e um anglo-tailandês a correrem. E se quisermos ir mais além, dos dois canadianos que lá estão presentes, um é neto de judeus - Stroll é a anglicanização do original Strulovich - e o outro, Nicholas Latifi, é descendente de iranianos. E se for um pouco mais atrás, poderemos falar de Pascal Wehrlein, que correu na Sauber e Manor entre 2016 e 2018, e agora está na Formula E, é filho de alemão e de uma habitante da ilha Maurícia, situada no sul de África.

Mas sejamos honestos: hoje, a máscara caiu para aqueles lados. A Formula 1 tão cedo não largará certos vícios, e sem isso, estes gestos não terão propósito real. A Formula 1, se algum dia quiser entrar de cabeça no século XXI, tem de fazer uma volta de 180 graus. Teria de fazer uma revolução tão radical e tão irreversível que teria de ser irreconhecível para os que viveram antes. É duro e parece ser quase impossível, mas lembro-vos que já foi mais machista, mais "branca" e europeia. 

E tenho de ser honesto: já vi muitos "impossíveis" acontecerem. 

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