quinta-feira, 2 de maio de 2024

A imagem do dia




Ao longo destes dias, andei a ler muita coisa quer de Ayrton Senna, quer de Roland Ratzenberger. Os seres humanos, que tinham mais coincidências que julgamos. Não só no ano do seu nascimento, como o facto de terem morrido com 24 horas de diferença. Ao olhar para ambos, tinham imensas coisas em comum. Eram idolatrados no Japão, sentiam-se felizes e acarinhados por lá. Tinham o automobilismo nas suas veias, não seriam felizes noutras profissões, para eles, a Formula 1 era o pináculo. O seu motivo de existência.

Não é por acaso que o epitáfio do piloto austríaco, enterrado em Salzburgo, na Áustria, consiste na seguinte frase: "viveu para o seu sonho". Mas também descobri mais umas coisa em comum dos dois: eles salvaram outros seus colegas. E ambos eram mulherengos. 

Um jornalista italiano, Giorgio Terruzzi, escreveu um livro, "L’Ultima Notte di Ayrton Senna", onde fala, entre outras coisas, que Senna era um homem de contrastes. Lia passagens da Bíblia para encontrar conforto, era tímido e se isolava para se refletir, mas poderá ter dormido com 300 mulheres e era ultracompetitivo, implacável com os seus adversários na pista - Alain Prost, Nigel Mansell e Martin Brundle que o digam.

E se acham que era único, desenganem-se: Ratzenberger tinha uma agenda de contactos no Japão... e não eram de patrocinadores! Deitou-a fora quando se casou no final de 1992, num relacionamento que durou... menos de três meses. Quando voltou a estar solteiro, afirmou ter pena de ter perdido essa agenda. Contudo, regressou logo aos velhos hábitos. Humphrey Corbett, um dos engenheiros da Simtek, contou num dos documentários feitos sobre o austríaco que ele aproveitou bem as benesses da MTV, a patrocinadora principal: dormiu com um dos seus membros. Há quem jure até aos dias de hoje que foi a apresentadora, Davina McCall, que hoje em dia é apresentadora do Big Brother britânico, e afirmou o dia seguinte que "a pista estava num pouco húmida", numa espécie de relatório codificado...   

Contudo, ambos poderão ter salvo um piloto, pelo menos. Se o caso de Senna é bem conhecido, com ele a sair do carro e salwar Eric Comas nos treinos para o GP de Bélgica de 1992, quando o piloto francês, na altura na Ligier, bateu forte na parte rápida do circuito de Spa-Francochamps, e o brasileiro, o primeiro a chegar, desligou o motor e segurou a cabeça até que chegassem os primeiros socorros, já no caso do austríaco, foi um pouco mais obscuro.

A coisa aconteceu numa sessão de testes da Formula 3000, em Suzuka, quando o escocês Anthony Reid bateu forte na 130R. O impacto foi tal que o capacete foi arrancado e os comissários nem se mexeram muito, julgando que tinha morrido. Ratzenberger e o brasileiro Paulo Carasci chegaram ao local e pararam os seus carros para o tirar do seu e fazerem os primeiros socorros até serem socorridos pelos profissionais e levarem para o hospital, onde fez uma recuperação completa. 

As últimas horas de Senna foram as de um homem dividido entre a vontade ou não de correr e a conversa sobre o reavivar da GPDA, a Grand Prix Drivers Association, adormecida desde 1982. Falou de manhã, no "warm up" com Alain Prost, agora comentador na TF1 francesa, em que afirmou que "tenho saudades tuas", algo que, de uma certa forma, poderia afirmar porque, por um lado, não era mais ameaça, mas por outro, ele se tinha alimentado da rivalidade com o francês para se elevar ao patamar onde estava. 

Mas falou com ele, Niki Lauda, Michael Schumacher e Gerhard Berger para falar sobre a pressão dos pneus, que baixava por alturas em que o Safety Car entrava em pista. Senna, no final, afirmou que a conversa iria prosseguir no Mónaco para criar um caderno de encargos para entregar na FIA para identificar as partes perigosas nos carros e circuitos, e melhorá-las. Acabou por não acontecer. 

E minutos antes da corrida começar, disse a seguinte frase: “A Fórmula 1 não voltará a ser a mesma depois deste fim de semana.” Arrepiante, não é?

Quando o acidente aconteceu, e nesses primeiros minutos, enquanto estava a ser socorrido, um carro arrancou esbaforido na pista, sem saber que a prova tinha sido interrompida. As suas reações rápidas evitaram que ele atropelasse comissários de pista e causasse outra catástrofe, para além daquela. Era o Larrousse de Comas, o piloto que tinha sido salvo por Senna ano e meio antes. Quando viu quem era, saiu do carro e tentou ajudar os paramédicos, que lhe disseram ser inútil. 

Entristecido com o que se tinha passado, foi para as boxes de carro. A seu lado, o capacete ensanguentado de Senna. Ele soube no momento que tinha morrido. Decidiu não participar na corrida, e no final da temporada, abandonou a Formula 1.    

Já passaram 30 anos sobe este dia. Muito se escreveu, especulou sobre ambos - Senna, em particular. Os brasileiros sentem uma certa orfandade, não escapando muito ao sentimento de "vira-lata", ou seja, quando estão em baixo, sentem-se na lama, mas quando são os melhores, sentem-se o povo escolhido e o Céu é apenas o limite. Em termos sociológicos, é um povo que precisa de heróis para se guiar. Mas esquece que eles são humanos, de carne e osso. E como viram, morrem. E mesmo mortos, o povo os faz santos.

Francamente, não gosto de santos. Nisso, sou muito ateu. Mas o que admiro em Senna e Ratzenberger é que são de uma espécie rara, que escolhem o que fazem, são muito talentosos, e sobretudo, foram humanos. E é isso que me causa admiração. Não os seus estatutos de "mártires do automobilismo", que muitos decidiram tomar. Mas nisso, faço parte de uma minoria.

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