A biografia de
Gilles Villeneuve, escrita pelo forista
Villickx, chega hoje à quarta parte, o capítulo onde narra a sua chegada à Ferrari, no final de 1977, como substituto de Niki Lauda, que tinha conquistado o bi-campeonato, mas que decidiera correr para a Brabham no ano seguinte. Eis a história, já a seguir:
GILLES, o meu tributo. - 4ª Parte
"Gilles tinha realizado o seu sonho de competir num Grand Prix de Formula 1 e não se tinha saído nada mal aos olhos de muita gente mas, para Teddy Mayer, nem tudo tinha corrido bem. Gilles tinha mostrado andamento para competir, com um carro velho, com os melhores pilotos do grid. Tinha-se mostrado superior ao segundo piloto da equipa tanto nos treinos como na corrida e achava muito naturalmente que tinha um lugar na equipa. Além disso tinha um contrato que previa isso, e só começou a não gostar muito quando voltou para o Canadá sem que Mayer lhe tenha dito quais eram os outros 4 GP's que ele iria correr nesse ano. Achou estranho. Quando voltou ao Canadá, conheceu então um jovem piloto francês, de nome... Didier Pironi, que ali estava como convidado para participar em Trois-Riviéres, e que mais tarde se tornaria, por razões erradas, muito importante na sua vida. Em conversa, disse-lhe que o seu nome na Europa estava a ser conectado com a Ferrari, que se falava que iria ser convocado pela Scuderia para participar num treino de avaliação conjuntamente com Eddie Cheever e que um deles seria escolhido para correr pela equipa. Gilles achou tudo aquilo fantasioso e despropositado pois... tinha um contrato com a Mclaren.
Contudo, quando pouco tempo depois se correu a série canadiana do Campeonato Mundial de Marcas, no circuito de Mosport, em que Gilles dividiu um BMW com Cheever, encontrou Teddy Mayer, que lhe fez o favor de o informar de varias novidades. A principal era que a Mclaren não tencionava accionar a opção que tinha com ele para 78, e que não lhe podia garantir um carro para os Grandes Prémios dos EUA e do Canadá, e que se alguma equipa se mostrasse interessada nele, não deveria se sentir comprometido com a Mclaren.
Ou seja, e por outras palavras: um valente pontapé no traseiro. Partiu o pé, acho eu.
Se calhar foi por causa disso que no dia seguinte, Gilles, quando subiu ao pódio pelo seu 3º lugar, vomitou. Voltou para casa com um sabor amargo na boca e como é óbvio muitíssimo preocupado com o seu futuro pois queria ir para a Formula 1 e não sabia nem tinha como o fazer.
Gilles era um nome na América, mas na Europa apesar de falarem dele não era uma certeza e sim uma possibilidade. Ainda por cima uma “possibilidade” que gostava de fazer piões com carrinhos que valiam milhões de dolares para encontrar os seus limites... Eh, eh. Alguns dias depois deste acontecimento, Joann atendeu um telefonema de alguém que perguntou se era ali que morava um tal de Gilles Villeneuve… tinha um sotaque estranho. Quando Joann lhe passou o telefone, Gilles ouviu do outro lado da linha uma voz feminina que lhe disse: “Estamos a falar da Ferrari, só um momento se faz favor”.
Nem quis acreditar! Era Ennio Mortara, um assessor de Enzo Ferrari e que lhe disse que tinha um recado do Sr. Ferrari para ele. Era um recado em forma de pergunta: “Estaria ele interessado em guiar para a Ferrari?”.
Alguns dias depois, a 29 de Agosto de 1977, Gilles chegou a Milão e foi para Maranello em companhia de Mortara, para a sua primeira entrevista com o homem que dividia irmãmente com o Papa a popularidade, o prestigio e o respeito público em Itália: Commendatore Enzo Ferrari. Diz-se que as primeiras palavras de Enzo foram “Muito bem, meu rapaz, então do que é que você precisa para se realizar?”. A reunião durou uma hora. Gilles explicou a sua situação contratual com a Mclaren mas Enzo, mais familiarizado com este tipo de situações, tranquilizou-o, e no fim, quando se despediram sem qualquer compromisso firmado, disse-lhe que a bola estava do lado dele, que entraria em contacto.
Ora, nesse mesmo dia, Niki Lauda comunicou a Enzo que no ano seguinte guiaria para a Brabham, rompendo a promessa que lhe tinha feito de que nunca sairia da Ferrari, enquanto Enzo lá estivesse… afinal havia 800 mil dólares por época da Parmalat, em cima da mesa.
Gilles foi convidado pela Ferrari para voltar a Itália para assistir ao GP em Monza, e nessa altura os rumores mais fortes eram que Mario Andretti, então na Lotus, iria substituir Lauda na Ferrari no próximo ano. Durante o fim de semana, negociou com Teddy Mayer, com a intermediação de John Hogan, o fim do seu contrato com a Mclaren, e saiu das reuniões com a promessa que iria ser libertado do seu contrato, mas só no caso de firmar um contrato com a Ferrari. Com qualquer outra equipa a Mclaren exerceria a sua opção.
Na 2ª feira, estava de novo em Maranello e desta vez foi pra valer. Sentaram no carro de Lauda, fizeram-lhe um assento á sua medida e foi para a pista de testes particular da Ferrari, em Fiorano. Gilles chegara de Fiat 131, jeans e blusão de cabedal. Andretti tinha lá estado antes, e chegara de Rolls Royce, anel de diamantes e aquela popa e sorriso que só ele tinha.
Ao primeiro teste de Gilles, assistiram somente quatro pessoas: Enzo e Piero Lardi Ferrari, António Tomaini e Mauro Forghieri. Descreve este último que o teste de Gilles foi uma tragédia: pião, overdriving, pião, insegurança, pião, inconsistência… pião, etc, etc. No segundo dia voltou e melhorou…fez menos piões. Conseguiu 1.13 seg, que comparavam com 1.09 seg do recorde da pista que então pertencia a Carlos Reuteman. Enzo declarou-se então satisfeito com o teste e disse: “Ele pode aprender aqui. Ele precisa de trabalhar muito. Você pode ver pela forma como ele entra numa curva que ele sabe o que está a fazer. Nós não devemos ser muito exigentes. Vimos todo aquele espectáculo em Silverstone e além disso ele foi-me referenciado por Wolf e por Amon”.
Gilles declarou publicamente estar impressionadíssimo com tudo e que o Ferrari tinha um motor muito potente, que o carro era leve e preciso, que tinha adorado a caixa de velocidades, enfim, que aquilo era o paraíso na terra (musica para os ouvidos certos). Em privado, era outra história: disse que o carro era muito difícil de guiar. Que tinha sido concebido para a forma de guiar de Lauda, que era diametralmente oposta à dele. Reconhecia que Lauda possivelmente tinha a habilidade de guiar um carro afinado para ele, mas que ele definitivamente não tinha capacidade para guiar um carro feito ao estilo de Lauda. Ele queria um carro duro que fugisse de trás. Aquele Ferrari era muito macio e fugia de frente.
Gilles voltou ao Canadá e ficou á espera, mas com poucas esperanças.
Passadas duas semanas, e já desesperado, Gilles decidiu telefonar para a Ferrari com uma desculpa esfarrapada sobre contas de hotéis na vã esperança que lhe dissessem algo. Não disseram. Pobre coitado, desesperou. Cinco minutos mais tarde, toca o telefone, Gilles atende e é Enzo em pessoa que lhe pergunta: “Você está pronto para assinar por nós?”. Gilles disse-lhe então que … ia pensar. LOL!
Gilles assinou um contrato com Ferrari nos seguintes termos: de salário por época, 75 mil dólares, mais 15 mil para ajudar nas despesas de viagem da família, e ainda 25% dos patrocínios do carro. Fora isso, Gilles tinha direito ao seu fato de corridas e ao seu capacete. Estava rico!
O manager e grande amigo de Gilles, Gaston Parent, participou nesta reunião, e disse que Gilles estava à beira de um ataque de nervos, e que se Enzo lhe tivesse pedido 50 mil dólares para correr na Ferrari ele, apesar de não os ter, teria aceite logo. Conta ainda Gaston que Gilles praticamente não o deixava negociar, pois estava sempre a sussurrar-lhe que já era suficiente, que não convinha esticar a corda, etc, etc. Praticamente desmaiou quando no meio da negociação, Enzo levantou-se para ir á casa de banho. O homem que não tinha medo de andar a 300 km/h tremeu, porque achou que o Commendatore estava a abandonar a reunião.
Nunca ninguém percebeu bem na altura como é que Villeneuve tinha ido parar á Ferrari. Enzo, que tinha já contratado pilotos do calibre de Tazio Nuvolari, Juan Manuel Fangio, Froilan Gonzalez, John Surtees, Chris Amon, Jacky Ickx e Niki Lauda, explicou assim: “Ele é o produto de uma aposta que eu fiz comigo próprio. Quando o contratei pensei que nunca ninguém seria capaz de por algum dinheiro nele. Todos nós sabemos que muitas vezes tomamos decisões na nossa vida baseadas em impulsos emocionais em vez de argumentos racionais. Todos me criticaram por ter contratado um ilustre desconhecido. Bem, já o tinha feito uma vez com Lauda e tinha dado certo e sendo assim deveria haver outros Laudas por ai. Eu gosto de pensar que a Ferrari sabe construir pilotos tão bem como sabe construir carros. Alguns diziam que Villeneuve era doido. Eu disse, vamos experimenta-lo.”
Entretanto, na corrida de Watkins Glen, Lauda com o 4º lugar conquistado, tinha se sagrado bicampeão do mundo de F1, e com o 6º lugar de Reuteman, a Ferrari era a equipa campeã do mundo de construtores. No Canadá, as coisas precipitaram-se, pois Lauda, não muito satisfeito por a Ferrari estar com 3 carros e também porque a equipa tinha acabado de despedir o seu mecânico-chefe, Ermanno Cuoghi, que estava na altura a negociar a sua ida, junto com Lauda, para a Brabham, bateu com a porta tendo sido acusado pela equipa de pouco profissionalismo. Sobrou para Gilles o 312T2 campeão do mundo, de Lauda. A pressão era enorme, pois além de ter a obrigação de substituir uma lenda viva que no GP anterior tinha se tornado campeão do mundo, ainda tinha que enfrentar cerca de 70 mil compatriotas seus, que ali estavam de olhos apontados para eles.
Os treinos não correram de feição á Ferrari pois o tempo estava frio e os Goodyear não atingiam a temperatura desejada, Reuteman e Villeneuve queixaram-se duramente de falta de tracção e na 6ª feira não conseguiram melhor que o 12º e 17º tempos. Para agravar ainda mais a situação, na descida para a curva Moss, Gilles despistou-se e afectou seriamente o seu carro. No sábado choveu e ninguém melhorou os tempos. As perspectivas não eram brilhantes. Andretti era o primeiro, Hunt era segundo.
Na corrida, Gilles debateu-se com um carro totalmente despreparado para a sua maneira de guiar. Gilles necessitava de um carro em que ele pudesse aplicar a sua técnica de condução que tantos admiraram e que constava essencialmente em entrar nas curvas em derrapagem controlada, de forma a mais cedo poder acelerar em recta e esse carro não estava feito, nem conseguia fazer isso. Assim, debateu-se com ele sem glória nem brilho até sair de pista na volta 72, após fazer um pião devido ao óleo deixado na pista pela explosão do motor Ford do Lotus de Mario Andretti.
Após a corrida declarou: “Vi o óleo demasiado tarde e rodei sem bater em nada. Ai tentei voltar para a corrida, quando soltei a embraiagem acelerei demais e parti a transmissão. Foi minha culpa”. Ganhou Jody Scheckter no seu canadiano Wolf, para gáudio da multidão.
Gilles participou ainda no GP do Japão, a última etapa do calendário desse ano e que mais uma vez se corria no circuito antigo de Fuji na base do famoso vulcão que tem o mesmo nome. Mais uma vez, os Ferraris não estavam á altura dos seus directos competidores como os Lotus, os Mclaren e o Wolf de Scheckter. Andretti, já antecipando o que se passaria em 78, foi o mais rápido nos treinos, Hunt largaria ao seu lado. Reuteman não conseguiu melhor que um lugar na 4ª fila e disse que tinha tentado tudo mas que nada fazia diferença. Que tinha um excelente motor mas nenhuma tracção. Que algo estava errado com a geometria do carro, que estava muito perigoso.
Gilles estava em 20º lugar e ainda mais desesperado. Declarou: “Estou realmente preocupado com o carro pois não tenho resposta para a situação, agora o carro foge demais de trás. Estou a guiar como um velho nas curvas e a acelerar nas curvas, se não fizer assim, rodo. A única coisa boa no carro é os travões. Não sei o que fazer…”.
A corrida começou tumultuada, com Andretti a falhar a largada e a cair para o 8º lugar. Numa tentativa precipitada para reconquistar posições embateu no Ligier de Lafitte e bateu fortemente nos guard-rails. Na confusão ficaram também Hans Binder num Surtees, e Noritake Takahara no bonito Kojima. Gilles vinha a abrir e em 5 voltas já tinha passado quatro concorrentes e rapidamente colou-se ao Tyrrell de 6 rodas de Ronnie Peterson.
Os travões que tantas “alegrias” lhe tinham dado nos treinos, estavam contudo caprichosos na corrida e já por diversas vezes tinham bloqueado. Na aproximação para a “Curva do Diabo”, Gilles, que seguia colado a Peterson, bateu com o seu pneu esquerdo dianteiro no traseiro direito de Peterson e imediatamente descolou caindo de bico no chão. Este movimento, quase idêntico aquele que causou a morte de Gilles em Zolder quatro anos e meio mais tarde, catapultou o Ferrari pelo ar, tendo aterrado já fora do circuito numa zona interdita a espectadores, mas onde se encontravam alguns. No acidente morreu um espectador e um guarda que estava no local a tentar retira-los dali. Do carro sobrou o cockpit, com Gilles dentro, e o motor agarrado. Miraculosamente, Gilles e Ronnie nada sofreram e imediatamente Gilles procurou o seu ídolo Ronnie para lhe pedir desculpas e explicar-lhe que tinha ficado sem travões.
Ronnie não se impressionou e achou que tinha sido um erro de principiante, tendo declarado aos jornalistas que tinha visto Gilles na recta mas que se tinha concentrado na curva. Que achava que a inexperiência de Gilles estava no cerne da questão, pois ele tinha se esquecido que levava 200 litros de gasolina no carro. Opiniões...
Hunt ganhou, Reuteman foi segundo e Depailler, terceiro. Hunt e Reuteman não compareceram á cerimónia do pódio, deixando os japoneses de olhos em bico e um desajeitado Depailler sem saber o que fazer a ouvir o hino Inglês. Outros tempos, sem duvida.
No dia seguinte, Gilles e Ronnie foram interrogados pela polícia. Queriam saber a velocidade, em que mudança é que estavam etc, etc. A conselho do chefe de equipa da Ferrari, Gilles declarou que não se lembrava de nada pois estava ainda em choque. Passados alguns dias, o incidente foi declarado como um acidente de corrida. Gilles sempre manteve a sua versão dos acontecimentos apesar de existirem várias versões para o caso.
Gilles declarou o seguinte sobre o incidente: “Não fiquei com medo depois do acidente, somente terrivelmente triste pelas pessoas que morreram. Eu sei que eles estavam numa área proibida e sendo assim não me sinto responsável pela sua morte, mas…” Sobre a sua performance na Ferrari disse: “Em Silverstone fiz 1500 km de treinos e adaptei-me ao carro e ao circuito. No Canadá e no Japão não tive nada disso e isso fez a diferença.”
Era agora um piloto de F1 aos comandos de um Ferrari mas tinha que fazer melhor, muito melhor, e ele sabia-o. (A continuar)
Speeder, meus parabéns pelo excelente documentário que você está fazendo da vida do Gilles. Ainda não li tudo, mas vou recuperar todo o atraso no próximo fim de semana. Vale a pena!
ResponderEliminarE muito obrigado pela dica do vídeo do Henri Toivonen. Ele já está lá no F1 Grand Prix, ok?
Grande abraço!
Gustavo Coelho
Simplesmente maravilhoso o documetário Speeder, muito rico em detalhes certamente tirado de algum livro bem raro ou no mínimo de alguém que conhecia muito a carreira de Gilles Villeneuve. Eu to muito impressionado com este documentário uma verdadeira obra de arte que não podia ficar oculta aos milhares e milhares de fãns de Gilles Villeneuve mundo afora.
ResponderEliminarMal posso esperar pela 5ª parte sobre "A vida de Gilles Villeneuve"
Parabéns a vc Speeder e ao forista Villickx pela brilhante biografia, linda e merecidíssima homenagem a Gilles Villeneuve!
Muito obrigado!
Um belo exemplo de CGU (conteúdo gerado pelo usuário) aplicado a blogs!
ResponderEliminarE Continental Circus consolidando-se como um espaço minimamente colaborativo!
Que inveja... hehehe