terça-feira, 27 de julho de 2010

Grande Prémio, (numero 39, uma visão do futuro)

Monforte, Sildávia. Algures em 1967.

Margarida, uma senhora de meia idade, chega a uma casa humilde nos arredores da cidade. A fama da dona da casa tinha chegado discretamente, algum tempo antes, aos ouvidos de uma rapariga que ela conhecia, como uma das criadas de cozinha da casa senhorial, ou da adega, não se recordava bem. Todos a respeitavam ou temiam o seu poder, embora ela, baixa e rechonchuda, na sua meia idade, tal como a Dona Margarida, uma das noras do sr. de Monforte.

Mesmo no século XX, um século de tecnologia e progresso, com duas terriveis guerras pelo meio, e onde a religião cristã estava enraizada, tal como normalmente acontecia em regiões do interior rural como este, havia alguma superstição, algum paganismo, que sempre resistiu por estas paragens, mesmo depois de séculos e séculos de repressões religiosas. Algumas dezenas de anos antes, esta senhor que iria visitar poderia acabar numa prisão acusada de feitiçaria, ou pior...

Ignorando os avisos, D. Margarida foi ter com ela. A filha da senhora esperou à porta para a receber, e queria a cumprimentar de forma reverencial quando esta a repreendeu:

- Não faça isso, porque ninguém sabe que vim aqui!
- Desculpa, minha senhora, desconhecia.
- A sua mãe está?
- Está, sim senhora. Trouxe aquilo que ela pediu.
- Trouxe.
- Muito bem, vou dizer que está aqui. Espere um momento.

O dia estava nublado e já tinha chovido. D. Margarida trazia um xaile negro à volta da sua cabeça, uma parte para se proteger do vento frio, outra parte para evitar ser reconhecida. Tinha vindo sozinha e deixado o carro a algumas centenas de metros da casa, fazendo o resto do percurso a pé, por entre o caminho empedrado de paralelepípedos de granito negro.

- Pode entrar, afirmou a filha.

Ela entrou numa casa de madeira, velha, mas arejada, bem conservada e limpa. As paredes eram brancas, em contraste com as vigas de madeira castanha que se viam sair da parede. A senhor entrou na sala e a cumprimentou:

- Dona Margarida, seja bem vinda a casa.

Ela sorriu e estendeu as mãos, que ela as recebeu, num cumprimento.

- Tem consciência do que me veio pedir?
- Tenho sim senhora.
- E sabe que, por mais que tente, o Destino não pode ser mudado?
- Tenho consciência disso, senhora.
- O máximo que se pode é fazê-lo mais confortável. E por muito que tentemos, o fim não poderá ser mudado. Nunca.
- Sei disso, minha senhora.
- Como vai o seu sogro?
- Está bem.
- E o seu marido?
- Também. Nesse lado, não tenho com que me queixar.
- Otimo. Espero que esteja pronto para o que vêm aí. Vai ser muito complicado, mas conseguirão, para bem de todos vocês.
- Eu sei, minha senhora.
- Trouxe o retrato?

Dona Margarida tira da carteira o retrato de uma criança, nos seus calções e fato de primeira comunhão. Estendeu à senhora e esta sorriu com a visão dela. Afirmou:

- Belo filho, o seu.
- É o mais velho.
- Sim, sim. Presumo que esteja um homemzinho.
- Sim, está.
- Ouvi dizer que foi para o estrangeiro.
- Foi estudar Engenharia.
- Hmmm...

Com isto, fechou os olhos e concentrou-se. Os minutos passaram, enquanto que a filha da senhora trazia um chá de camomila para a D. Margarida, para depois segredar ao ouvido que deveriam sair da sala onde estava, para que se concentrasse melhor. Os minutos passavam e ambas as mulheres não trocavam uma palavra enquanto tomavam o chá. O silêncio era quase ensurdecedor, a não ser o bater dos segundos no relógio mecânico que estava pendurado na parede. Após isso, a senhora de meia idade, tal como a D. Margarida, assomou, no seu vestido negro, à porta. Sorriu e disse:

- Está pronta? se sim, pode vir.

D. Margarida hesitou. Ela sabia da sua reputação, que crescia à medida que os anos passavam. Já tinha vindo aqui antes, e a curiosidade era crescente. Sentaram-se e ela pegou de novo no retrato do seu filho. Sorriu para ela e disse:

- Dona Margarida, não lhe vou mentir. Tenho boas e más noticias.

Ela mordeu os lábios. Hesitou por um momento e disse:

- Perfiro que seja a senhora a dizê-lo.

Ela deu um longo suspiro e afirmou:

- O seu filho vai ser feliz. Muito feliz. Vai casar e ter filhos. Vai ter netos, D. Margarida, belos e saudáveis. A pessoa com quem vai casar é muito bonita, não é estrangeira, mas vai largar tudo por ele.
- Isso é bom.
- O seu filho vai ser famoso, minha senhora. Muito famoso. Mas não tanto naquilo que está a estudar. Aliás, vejo-o a guiar um carro muito estranho. Muitos carros estranhos, aliás...

O semblante de Dona Margarida alterou-se. Sabia aquilo que fazia o seu sogro e sabia das aventuras do seu filho nos automóveis em Monforte, algo que nunca gostou muito, mas pouco podia falar, pois era algo aprovado pelo avô.

- Ele prometeu-me...
- Uma promessa que não pode cumprir, minha senhora. É mais forte do que ele.
- Até que ponto?
- Será isso que o vai tornar famoso. Será levado em ombros por uma multidão. Aliás, vejo-o rodeado por multidões...
- Será piloto de automóveis.
- Exacto.

Dona Margarida fez um ar triste, consciente dos perigos que tal actividade traz. Baixara os olhos e levantara de novo para perguntar:

- E quais são as más noticias?

A senhora deu um longo suspiro, afundou-se na cadeira, e depois de um silêncio que parecia ser eterno, ia abrir a boca para o dizer quando ela o interrompeu.

- Quando?
- Daqui a muito tempo. Mas temo que vá viver o suficiente para assistir à pior das dores, minha senhora.
- Quanto tempo vai viver?

Mais um longo silêncio. A senhora, firme e hirta, passou mais uma vez as mãos pelo retrato e disse:

- A idade de Jesus Cristo e não mais. Lamento.
- Nâo se pode fazer nada, pois não?
- Lamento, mas não. Não mudo o Destino, limito-me a descrever o que vêm aí, minha senhora.

Novo longo silêncio na sala. Ela deu o retrato à Dona Margarida e disse:

- Mais uma coisa. Não diga nada disto a ninguém. Não faça nada para o impedir, pois como você sabe, não importa o local, mas sim o dia e a hora. Acredite, minha senhora, disso, nada poderemos fazer. E sei que há coisas que não deveriamos saber, mas sabemos. Quando sabemos, a única coisa que se pode fazer é aproveitar o tempo que temos.

Dona Margarida levantou-se e encaminhou- se para a saída, abatida pelo que acabara de ouvir. A filha da senhora o acompanhou até à porta quando, da outra sala, ela disse:

- Dona Margarida, se isto serve de consolo, posso dizer-lhe isto. Ele vai ser um herói e um exemplo para muitos por aqui. Muitos seguirão as suas passadas, aqui e no resto do mundo. Sei que o seu filho vai viver pouco, mas terá uma vida muito mais realizada do que imensos de nós. Um dia, minha senhora, todos morreremos, e muitos esquecerão de nós. Mas ele vai ser dos poucos que não. Não se esqueça: vai ter netos dele.

Dona Margarida esboçou um sorriso, e murmurou um quase imprecéptível "Obrigado", enquanto que a filha o acompanhava até à porta. Colocou o xaile, porque tinha voltado a chover, e mal colocou fora da porta, uma lágrima furtiva começou a rolar pela cara. Tinha ouvido o futuro e odiou.

- Importas-te de me levar até ao meu carro? Não sei se vou conseguir chegar até lá, afirmou.
- Eu compreendo a sua tristeza, Dona Margarida.
- Obrigado. Parece que tenho de me resignar a ela. Que vou fazer?
- Sobre o que aí vem, nada. Mas há maneiras ajudar a viver melhor o tempo que resta.

As duas senhoras afastam-se da casa, rumo ao automóvel que estava estacionado relativamente longe. A senhora de meia idade assomou-se à porta, olhando-as discretamente, à medida que se afastavam. Baixou a cabeça e murmurou:

- Tem dias que odeio o meu dom.

(continua)

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