As três biografias que fiz em catadupa por estes dias deram para redescobrir alguns aspectos de um acidente que assombrou no seu tempo pela sua violência, bem como as suas consequências. Para além de ter precipitado o final da carreira de um piloto, o final da vida de outro, e o término de uma corrida já de si mítica, mas claro, perigosa, fez também mudar a percepção que as pessoas tinham sobre as corridas. E para Enzo Ferrari, foi uma tortura judicial, do qual teve dificuldade em sair.
Alfonso de Portago, "Fon" para os amigos, queixara-se na véspera da corrida da indecisão de Enzo Ferrari em escolher a máquina ideal para ele e para Piero Taruffi, e dos seus receios em correr nas suas máquinas, devido à sua exigência intimidante de correr nos limites e que por causa disso causou o acidente mortal de Eugenio Castelotti, algumas semanas antes. Mesmo um piloto veloz e temerário como de Portago, um "viciado em adrenalina", começava a ter receio de guiar as máquinas do Cavalino Rampante.
As Mille Miglia eram uma prova dura e longa, feita continuamente em estradas abertas no centro de Itália, com centenas de milhares de espectadores ao longo do seu percurso de 1600 quilómetros. A velocidades que por vezes chegavam aos 260 km/hora, era como correr no fio da navalha, onde um erro mecânico ou de pilotagem poderia causar um acidente mortal, e houve muitas mortes durante a realização do evento.
De Portago, contrariado, aceitou correr nas Mille Miglia porque queria ser visto como um dos seus. Apesar das suas origens aristocráticas de da sua polivalência desportiva como aviador e praticante de "bobsleigh", um dos melhores do seu tempo, queria ganhar o respeito dos seus colegas. Tinha-o conseguido, apesar do seu estilo rápido e brutal. O resto da história é mais um menos conhecido: perto do final da prova, em Guidizzolo, De Portago vinha no seu Ferrari no terceiro ou quarto lugar da classificação (a imprensa na altura não conseguiu precisar a sua posição) quando os mecânicos lhe avisaram do desgaste dos seus pneus. Apesar de avisado, "Fon" De Portago decidiu arriscar a sua sorte, e perdeu.
Perdeu tudo: o carro, a sua vida e ainda arrastou consigo mais dez pessoas, cinco delas crianças. A indignação foi enorme, pois a catástrofe de Le Mans, ano e meio antes, ainda estava fresca na memória. A imprensa indignou-se e as autoridades abriram um inquérito judicial a Enzo Ferrari, o fabricante, acusando-o de dez homicídios. Foi um abalo para o Commendatore, porque ser acusado somente por fabricar carros velozes é muito. Certamente não tinha a consciência total de que aquilo podia ser uma arma. Veloz e mortal.
No final, Ferrari não foi acusado pela justiça italiana, mas fechou-se ainda mais no seu casulo. Vivera tempos difíceis, não só no plano desportivo com as mortes dos seus pilotos, mas também no seu plano pessoal: um ano antes, o seu filho Alfredo "Dino" Ferrari tinha morrido devido a uma distrofia muscular. Sobreviveu a tudo isto, mas o preço foi muito alto. Quanto às Mille Miglia, o acidente ditou a sua morte como prova competitiva. E o seu vencedor, Piero Taruffi, decidiu também que era altura de abandonar a competição de vez. Tinha 50 anos e uma carreira de trinta, e sabia que nesta altura, correr e chegar à meta vivo era uma questão de sorte e azar.
Para finalizar: todas as fotos, tirando a última, foram tiradas por Bernard Cahier, que participou nas Mille Miglia não só como fotógrafo, mas também como piloto. Guiando um Renault Dauphine.
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