quarta-feira, 4 de junho de 2014

A entrevista de Filipe Albuquerque ao jornal i

Já não faltam muitos dias para que comece as 24 horas de Le Mans (será no fim de semana de 14 e 15 de junho), mas em Portugal, o interesse este ano é, para além de ter três pilotos relevantes na lista de inscritos - Alvaro Parente, Pedro Lamy e Filipe Albuquerque - é que este último é piloto oficial da Audi, a bordo de uma das máquinas da equipa oficial, na classe LMP1, que vai tentar manter o domínio da marca das quatro argolas na clássica de La Sarthe contra as ameaças da Toyota, e a partir de este ano, da Porsche.

Assim sendo, o jornal i decidiu entrevistar o piloto de Coimbra, que no próximo dia 13 comemorará o seu 29º aniversário, e certamente vai passá-lo em paragens francesas, preparando-se para a grande corrida à sua frente. Na entrevista publicada esta quarta-feira e feita pelo jornalista Rui Pedro Silva, fala-se sobre a sua carreira, sobre os desafios que têm à pela frente e sobre outros desportos.



FILIPE ALBUQUERQUE: "QUERO CONTINUAR A CORRER ATÉ PRECISAR DE MULETAS PARA ENTRAR NO CARRO"

Por Rui Pedro Silva 
Publicado em 31 Maio 2014 - 12:38

Piloto de Coimbra é uma das apostas da Audi para as 24 Horas de Le Mans. Para trás, ficam as memórias de uma 'carreira' de futebolista curta

Filipe Albuquerque vai ser o único piloto português nas 24 Horas de Le Mans (14 e 15 de Junho). Ao volante de um Audi R18, fazendo equipa com o italiano Marco Bonami e o britânico Oliver Jarvis, o objectivo não deixa dúvidas: ganhar. E se não for possível, terminar no pódio. Fora disso será já motivo para ficar desiludido. Neste domingo, a duas semanas da mítica prova, o piloto de Coimbra testará pela primeira vez no circuito. Antes disso, a 26 dias das 24 Horas de Le Mans, Filipe Albuquerque deu uma entrevista ao i no Autódromo do Estoril. O piloto tinha acabado de aterrar em Lisboa depois de vencer em Imola a segunda prova do European Le Mans Series, onde faz equipa com Harry Tincknell (22 anos) e Simon Dolan, o gentleman driver de 44 anos que tem uma fortuna avaliada em 122 milhões de euros. Esteve connosco uma hora e fez-se novamente à estrada para regressar a Coimbra. Porque a vida de Filipe tem sido sempre assim: ao volante. 

Onde nasceu a paixão pelos carros e pela velocidade? 

Com o meu pai a mostrar-me a mim e ao meu irmão o que era um kart. Tinha sete anos na altura e era só uma brincadeira. Depois, passado pouco tempo, comprou um kart para ele e outro para eu partilhar com o meu irmão. 

Já eras fã de Fórmula 1? 

Sim, na altura havia a febre do Ayrton Senna e do Prost e acho que também não tenho dúvidas de que isso ajudou. 

Qual é a primeira memória que tens de Fórmula 1? 

Os Grande Prémios eram fantásticos. Ver o Senna no Mónaco ou a lutar por um lugar à chuva... Os duelos entre Senna, Prost e Mansell, os McLaren com o patrocínio da Marlboro, os Williams mais tarde e por aí fora. De ver um Schumacher na Benetton... 

Chegaste a vir aqui ao Estoril? 

 Não, nunca. 

Nunca calhou ou nunca te deixaram? 

Nunca calhou. A iniciativa teria de ser sempre do meu pai, já que eu era muito pequeno na altura para ter essa ideia. Não surgiu. 

Chegaste a praticar outro desporto? 

Joguei futebol na escola, mas nunca fui um dotado. Era bom na minha aula, dos melhores, o ponta-de-lança, mas nunca era o talentoso, claramente. ... Nunca mais me esqueço de uma coisa. Houve uma vez que acordei cedo para ir jogar a um sábado de manhã. Estava no banco porque tinha acabado de entrar para a equipa. Estávamos a perder mas nem assim o treinador me meteu a jogar. E disse-lhe: 'Não jogo aqui, também não jogo mais nenhuma vez. Vou-me embora'. Ele tentou demover-me mas eu estava decidido. 'Vou-me embora, já estou farto disto!' E nunca mais fui. 

E que idade tenhas? 

Talvez oito, nove... não, era um bocadinho mais velho, talvez uns dez, onze. 

Seres o mais novo de três irmãos deu-te alguma vontade especial de fazer melhor e mais do que eles?

Tentava alcançar o que faziam, sobretudo o Tiago [três anos mais velho]. Era sempre ele que me ensinava as brincadeiras e era ele que fazia melhor, portanto sempre fui com a ideia de alcançar algo, de tentar fazer o mesmo. Acho que isso me fez crescer e, quando fiquei mais velho, tentar melhorar-me a mim próprio. 

Quando é que achas que se sentiu que ias ser o talento da família? 

Foi tudo muito devagar e sem nos apercebermos de que estava a chegar a tal patamar. Quando comecei a ganhar corridas no nacional, parecia uma coisa séria mas o mais importante era entrar numa marca. Voltando à pergunta, acho que foi em 2003 quando fui contratado por um construtor, que era a CRG, para correr para eles. Aí sim, foi o ponto em que eles disseram: 'Ok, nós queremos-te a ti mas tens de vir para cá viver.' E fui viver para a Itália. Lá em casa foi consensual que devia tentar seguir o meu sonho mesmo que tivesse de parar a escola por um ou dois anos. 

E como ficou a escola? 

Fiquei no 12.º ano. Aliás, faltaram-me duas disciplinas do 12.º ano. Matemática e Física. Ficaram por fazer, especialmente porque o terceiro período era a altura em que havia mais provas e ficava mais tempo fora. Tentei mas não deu. 

E se não tivesses dado nada, hoje estarias a fazer o quê? Estavas em Ciências... 

Sinceramente, não sei. Foi um pouco como no póquer: fiz all-in numa coisa e não deixei nem uma ficha para o resto. E havia outro problema: desde os nove anos que dizia à minha mãe que não me imaginava a ir trabalhar todos os dias de manhã com uma pastinha e ir para um sítio fixo. Só me via mesmo nas pistas e a competir, desde pequeno. O que é engraçado é que isto nunca mudou. Sei que sou um sortudo por ter conseguido alcançar tudo isto: sei que é preciso ter sorte também. 

Por esta altura já conseguiste recuperar todo o investimento que fizeste? 

Sim, já está mais do que recuperado. 

Em que momento é que isso aconteceu? 

Em 2002 quando fui correr para fora já tinha alguns patrocínios e tinha uns prémios que iam ficando para mim (o meu pai deixava-me ficar com eles, era engraçado). Deixa-me ver... acho que em 2006 fiquei neutro. Porque ganhei um prize money muito grande na altura na Formula Renault.

Antes disso, fizeste equipa com o teu irmão e o teu pai era o mecânico. Alguma vez tiveram dificuldade em afastar o que se passava em pista enquanto estavam em família? 

Não, acho que não. O meu pai geriu muito bem essa parte. Sempre tentou passar e educar que se não tivesse boas notas e não cumprisse não iria continuar nos karts. O meu pai dizia que era um índio na escola por isso tinha de me motivar e pôr os pés na terra: a única maneira não era deixar-me de castigo em casa mas sim ameaçar que me tirava os karts. E aí lá me aplicava dentro do contexto, porque na verdade sempre faltei às aulas desde a quarta classe. 

E tinhas notas de 4, 5 ou... 

Não, não. Três era o mínimo para passar e pronto. Era difícil, teria de me aplicar bastante para ter melhores notas porque o que perdia quando faltava fazia imensa diferença. E a paixão de querer ser cada vez melhor nos karts também não ajudava, o tempo não dava para tudo. Tinha de conciliar, mas não havia paixão para estudar. E sem paixão, não me concentrava. 

O teu percurso foi sempre muito favorável. Sentes-te um piloto português sortudo? 

Sou, sou, sem dúvida. Sou sortudo mas ao mesmo tempo trabalhador. Sou sortudo mas é engraçado que desde pequeno sempre disse que sou sortudo mas que faço pela sorte. O sortudo de ir para uma pista e ir lá e por acaso a minha sessão ser a mais rápida é porque também fazia os trabalhos de casa e treinava a tempo e horas e jogava jogos de computador, que se calhar tiveram algum impacto. 

Algumas entras numa pista pela primeira vez e lembras-te de a ter jogado? 

Sim, já as conhecia de cor e salteado por causa da Fórmula 1. 

Como é essa experiência? 

É boa. Os jogos de computador e os simuladores estão muito bons para aprender as pistas, saber em que mudança é cada curva, ter a percepção e a pista memorizada. Mas depois é claro, na vida real é preciso ajustar... à vida real. Num computador, fazemos uma curva a 250 km/h e se nos despistarmos o jogo recomeça. 

Ganhar em Imola para alguém da tua geração que cresceu a ver o Senna foi especial? 

Sim, era um grande fã de Senna e se tiver de dizer algum ídolo, seria ele. Passar pela curva de Tamburello e ver lá as fotografias e a bandeira, as flores onde ele teve o acidente... é emocionante. E há outra questão que é uma coincidência. Soube que neste fim-de-semana [17 e 18 de Maio] fiquei no mesmo hotel em que ele ficou na última corrida dele. É um bocado sombrio, um bocado mórbido...  
Teres feito parte da Red Bull fez-te sentir que a Fórmula 1 estava a um passo a qualquer momento? 

Sim, sim. Porque são as etapas de uma carreira de um piloto. Consegui mostrar o talento nos karts. Depois conseguir estar num construtor mas passar para os fórmulas é muito difícil. São poucos os pilotos que o conseguem. Eu tive essa sorte, de fazer um teste para eles e correr bem. Quando faço esse contrato com 18 anos, havia já cláusulas a falar da Fórmula 1 e dos montantes mínimos que seria para ganhar. Dá um ânimo inacreditável porque parece tudo alcançável. Sempre trabalhei com esse intuito porque é um contrato, é uma coisa séria. 

Em que momento achaste que esteve mais próximo? 

Acho que foi mesmo em 2007 quando vou para a World Series e começo a fazer testes privados com a Red Bull. Fiz eventos de demonstração de rua... estava a ter um contacto bastante próximo com uma equipa de Fórmula 1. No final do ano, tive uma proposta para passados dois anos ir para a Fórmula 1 mas não se reuniram os apoios necessários. E a oportunidade passou. 

Os casos têm algumas diferenças mas sentes que o António Félix da Costa está a seguir as tuas pisadas? 

Está, claramente. 

Parece um espelho? 

Sim, nós damo-nos bem. Ele começou na mesma equipa que eu e a cada momento que vou fazendo, que sou mais o pioneiro, ligo-lhe e digo-lhe 'aqui está outra coisa para tu fazeres, Tenta tu'. Eu fiquei em segundo no campeonato da Europa e liguei-lhe para ele tentar ganhar. E depois na Formula Renault 2.0 ganhei dois campeonatos no mesmo ano e desafiei-o. E ele 'epá, isso vai ser difícil...' A mesma equipa, com o mesmo carro, o mesmo pessoal... e não ganhou por pouco. Ganhou um dos campeonatos, no outro ficou perto. Na World Series foi quarto no primeiro ano e foi o melhor rookie, tal como eu. A primeira corrida que ele ganhou foi na Hungria e foi curioso que ele festejou exactamente da mesma maneira que eu. Ligou-me e disse-me 'até festejei da mesma maneira que tu há cinco anos'. Na altura até pus uma fotografia no Facebook das duas. É tudo igual, só muda um pouco as cores no capacete.

... 

Agora ele foi para o DTM e por coincidência eu saí nesse ano. 

Deste-lhe algumas sugestões? 

Sim, claro que dei. Mas é sempre difícil comparar. Ele está na BMW, eu na Audi, e é sempre diferente comparar construtores diferentes, não sei como trabalham. Falei um pouco do genérico e das dificuldades. Mas acho que não está a precisar de grandes dicas... 

E achas que depois ainda vai parar às 24 Horas de Le Mans também? 

Tudo depende dele. Eu gosto muito de resistência e já sabia que ia fazer isto desse por onde desse. Surgiu agora a oportunidade e aproveitei-a, ainda por cima na Audi que era o que queria. 

Como se prepara uma corrida de 24 horas? 

Com várias coisas. Muitos testes para fazer evoluir o carro. Aliás, agora já estou a preparar o carro de 2015. No simulador também, para conhecermos a pista e perceber os melhores níveis de aerodinâmica. E fazer o campeonato europeu de Le Mans Series para me preparar ainda melhor. 

E já há estratégia para quem estará em cada momento da prova? 

Ainda não. Isso vai depender muito de como a pista estiver. Vamos decidir mais em cima do fim-de-semana e depois consoante o andamento de cada um dos nossos pilotos. Pode sempre haver um que esteja mais à vontade. Eu sou o rookie, portanto há sempre um cuidado para olharem por mim. O arranque talvez seja de um mais experiente, embora me tenha sentido bastante confortável nas 6 Horas de Spa. Mas há sempre cuidado. 

E dormir? Não te podes dar ao luxo de demorar muito para adormecer? 

Pois, não posso. Eu preciso de 45 minutos, uma hora para relaxar de toda a adrenalina de andar a correr. Depende muito de quando se consegue desligar ou não. Já tive provas fantásticas em que saía do carro e conseguia dormir logo e recuperar bem. Houve outra em que não consegui dormir. E depois também não vamos tomar comprimidos... [risos] 

Consegues dormir rápido de forma natural? 

Sim. Tenho uma boa disciplina de sono, uma boa almofada. 

E acordar, também? 

Sim, acordo bem. E lá está: aos domingos acordar de manhã custa mais do que nos dias da semana, porque aí tem mesmo de ser. Acordo um bocado assim, sabendo que dormia mais uma horita... 

E normalmente acordam quanto tempo antes de entrar em pista? 

Depende muito da estratégia mas no mínimo uma hora antes porque pode acontecer alguma coisa e ser preciso mandar vir outro piloto. 

E durante esse processo és informado de tudo o que se está a passar?

Sim, sim, sim. Olho para o televisor, vejo como está, como está a pista. 

E sonhas com a corrida? 

Sim, ainda agora estava a dormir no avião e estava a pensar na corrida. Tenho muitos espasmos quando estou a dormir. Dos reflexos, de quando estou a travar. Às vezes dou um pontapé na cadeira da frente e tenho de pedir desculpa. 

Vais fazer as 24 horas de Le Mans um dia depois de fazer 29 anos. O que seria uma boa prenda? 

A grande, grande prenda era a vitória. Mas é muito difícil. A fasquia está para ganhar e vamos fazer o melhor possível. È para lá que apontamos. Se ficarmos em segundo ou terceiro também ficamos contentes. Fora do pódio já ficamos um bocadinho mais tristes. 

Como é a relação com a equipa tens agora na Le Mans Series? 

Bastante boa. Acho que temos um excelente ambiente, brincamos todos uns com os outros apesar de termos idades e experiências diferentes de vida. 

Como é que vês ter ao lado alguém com 44 anos e uma fortuna avaliada em 122 milhões de euros? 

[Risos] Sou mais rápido do que ele. Ele é o gentleman driver, é necessário tê-lo na equipa. Por regra é sempre preciso um piloto silver, alguém que não tenha tão bons resultados. Encaro de forma natural. Ao longo da minha vida tenho-me cruzado com pessoas bastante importantes. Acho que ele gosta de mim mas trato-o exactamente como se fosse um piloto. E acho que ele também gosta da relação que temos. Não faço cerimónias. 

Quando tiveres 44 anos achas que vais ter a mesma paixão? 

Não sei, vou ter de esperar para ver. Até agora não mudou, mas é uma questão de deixar o tempo passar. Olho para o Tom Kristensen que tem 46 anos e já ganhou Le Mans nove vezes e continua com uma motivação e vontade de ganhar que põe-nos em sentido. 

É um sonho para ti fazer algo parecido? 

Sem dúvida. Vou trabalhar para isso. O objectivo é mesmo manter-me como piloto profissional e ganhar Le Mans. E quero fazê-lo até não conseguir mais e precisar de muletas para entrar no carro. 

Se ganhares, vais ligar para o António? 

Claro, claro. E dizer 'aqui está outra!' 

Disseste numa entrevista que o automobilismo é como o surf e a procura pela onda perfeita. O que será a onda perfeita para ti? 

Bom, se calhar foi o que fiz em Imola, ao conseguir pole, volta mais rápida e vitória. Acho que a onda perfeita é estarmos a fazer os projectos que queremos nas épocas que queremos. Nem sempre é fácil, mas neste momento estou na onda perfeita, a correr Le Mans num dos melhores carros da grelha. 

Disseste que tens tido uma carreira muito bem gerida. Ainda assim há alguma decisão que gostasses de voltar atrás? 

Sinceramente, acho que foi tudo feito na hora certa. Há sempre uma decisão aqui e ali que nos faz pensar que poderíamos ter outra vida, mas não sabemos se seria melhor e se calhar até seria pior. São pequenas coisinhas mas tenho a certeza que houve corridas que fiz que não gostaria de voltar atrás porque correu tão bem ali que se voltasse não sei se aconteceria outra vez. Portanto, estou muito feliz por olhar para o meu passado e ver que está tudo muito bem. 

A partir de momento é que as 24 Horas de Le Mans começaram a ser mais o objectivo do que a F1?

Desde que entrei na Audi. Quando desviei o meu objectivo de ser piloto de Fórmula 1, a primeira coisa que me veio à mente foi que gostava de ser piloto da Audi, pelos carros que eles têm e pelos campeonatos em que estão inseridos. Realmente é aquilo que eu gostava. É fantástico, foi quase escolher e chegar lá. Isso foi muito trabalhado enquanto carreira. É fantástico dizer que se quer algo e depois alcançá-lo. 

A nível de objectivos ainda tens mais para onde evoluir? 

Há, ainda há muitas provas que gostaria de ganhar. As 24 Horas de Le Mans, sem dúvida, é uma delas e vou tentar o meu melhor para o conseguir. As 24 Horas de Spa com Audi R8 em GT3 também gostava de ganhar e quase que a ganhei no primeiro ano [quarto em 2011 numa equipa com Bert Longin e Stéphane Ortelli]. Aí, se não fiz a volta mais rápida, foi por muito pouco. Depois, tenho mais algumas corridas em mente. Gostava de ganhar as 24 Horas de Daytona na geral. Há aqui vários pontos da minha 'bucket list' que têm de ser preenchidos.

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