Agora é oficial: o GP da Austrália foi cancelado, e é provável que a temporada fique paralisada até maio, com o GP dos Países Baixos, em Zandvoort. Isto, se formos otimistas. Porque se formos ver pelo lado pessimista da coisa, pode-se dizer que 2020 já acabou. Em março.
Mas até chegarmos aqui, foi uma saga, digna de puxar os cabelos e criar ansiedade até ao mais calmo dos sujeitos. Os eventos das últimas dez, doze horas antes do cancelamento são dignas de toda uma temporada do "Drive to Survive", e os rumores voaram de hora a hora, minuto a minuto, e demonstraram muitas coisas. Uma delas, a capacidade - ou incapacidade - da Formula 1 ser sensível aos apelos para levar a saúde pública muito a sério, as divisões dentro do pelotão e as atitudes de alguns dos pilotos, que parece terem descoberto algumas verdades sobre o espírito da FOM.
Então, comecemos pelo momento em que um membro da McLaren foi testado positivo pelo coronavirus. Havia suspeitas, a começar por quatro membros da Haas e o da McLaren, na quarta-feira de manhã. Quando os testes confirmaram positivo, a equipa reuniu-se e decidiu renunciar à participação no Grande Prémio.
Isto, já por si, seria sinal de alarme para o adiamento imediato do Grande Prémio. Por esta altura, a Formula E tinha suspendido a temporada por dois meses, tirando de circulação quatro ePrixs, dois dos quais na Europa: Roma e Paris. Seul e Jakarta foram as outras suas provas. Na IndyCar, a organização tinha decidido que a corrida de St. Petersburg iria acontecer sem espectadores, e mais tarde, a corrida de Long Beach tinha sido cancelada. Sebring também tinha sido adiada, em principio para novembro. Mas a Formula 1 não dava sinais de ceder.
E noutras modalidades, a NBA tinha decidido na noite de quarta-feira suspender o campeonato, com efeito imediato, depois de um jogador ter dado positivo para a doença. Houve jogos que foram cancelados em cima da hora, com espectadores a sentarem-se nos seus lugares e a prepararem para ver os jogos.
Por esta altura, Lewis Hamilton criticava a atitude da organização em prosseguir com tudo, apesar de todos os sinais em contrário.
“Estou muito, muito surpreso por estarmos aqui. É ótimo termos corridas, mas, para mim, é chocante estarmos todos sentados nesta sala e que haja tantos fãs na pista. Parece que o restante do mundo está reagindo, provavelmente um pouco tarde. A NBA foi suspensa, mas a Formula 1 continua trabalhar", declarou o piloto da Mercedes.
Questionado sobre o fato de a Formula 1 insistir em correr neste fim de semana, Hamilton disparou. “O dinheiro é rei, mas, sinceramente, não sei. Não tenho muito mais a acrescentar”.
Ele tocou na ferida. No meio do essencial, esquecemos do acessório. Dois dias antes, a Formula 1 tinha anunciado um grande acordo com a Aramco, a petrolífera nacional saudita, a maior do mundo e que recentemente colocou uma pequena parte do seu capital na Bolsa de Nova Iorque. Não se fala só do maior poluidor do mundo, numa altura em que a Formula 1 declarou querer neutralizar a sua pegada carbónica até ao final da década, mas com o dinheiro que querem e com a intenção da Arábia Saudita em ter uma corrida, "money talks, bullshit walks".
E ao longo da história, a Formula 1 foi assim: antes quebrar que torcer. Foi assim com as corridas que fez em ditaduras um pouco por todo o mundo, ao longo dos 70 anos da competição. Seguiram em frente quando o mundo pediu que não corressem na África do Sul, em 1985, em pleno regime do "apartheid" ou em 2012, quando se pediu um boicote ao Bahrein pelos seus abusos dos direitos humanos, em plena agitação social naquela nação. E nem saberemos o que faria Bernie Ecclestone numa situação destas. Provavelmente ainda incendiaria as coisas, falando disparates à imprensa...
E Hamilton também deveria saber que o lema não oficial deles é "o espectáculo tem de continuar". Afinal de contas, foi o que fizeram quando dois pilotos morreram num mesmo fim de semana...
Nas horas a seguir à renuncia da McLaren, começaram a surgir rumores sobre o cancelamento da corrida. Sinais inicialmente contraditórios, mas depois, durante a madrugada, houve uma reunião entre as equipas para decidir se cancelariam ou não o evento. E na votação... houve empate. Cinco a cinco. Segundo os "insiders", Mercedes, Red Bull, Alpha Tauri, Williams e Racing Point votaram a favor da continuidade, contra Ferrari, McLaren, Alfa Romeo, Renault e Haas. Mais tarde, minutos antes do encerramento, a Mercedes tinha entregue um comunicado a pedir à organização para que cancelassem a corrida. A ser verdade, há muita lágrima de crocodilo.
Pelas oito da manhã de sexta-feira, com gente nos portões, os seguranças barravam a entrada aos espectadores, enquanto se falava do rumor de que Kimi Raikkonen e Sebastian Vettel já tinham rumado para o aeroporto, provavelmente para apanhar um voo para casa. E logo a seguir, o anuncio oficial, depois de Chase Carey ter chegado a Melbourne, depois de um voo de Hanoi, onde tentava convencer as autoridades a não adiar a corrida vietnamita.
E portanto, chegamos a isto. Mas este pode ser apenas o primeiro capitulo da saga. Semana que vêm está marcado o GP do Bahrein, embora a organização tenha decidido realizar sem espectadores. Contudo, como sabem, um elemento da McLaren tem a doença e não se sabe quantos mais estão a incubar. Se neste período de tempo outros surgirão, eles poderão entrar no país? A equipa poderá entrar no país? Ou seja, haverá cenas dos próximos capítulos de uma situação onde todos saíram mal.
A Formula 1, no seu espírito de "o espectáculo continua, não importa a que preço", ficou muito mal retratado na câmara. Os seus dirigentes ficaram mal vistos. A FIA e a FOM, que tem responsabilidades civis, não serve só para receber o dinheiro, deram uma lição de civismo... mas ao contrário. E como já disse em cima, ainda não acabou. O mais provável é que a temporada seja adiada até maio e todos estes Grandes Prémios sejam, oficialmente, adiados. Porque se cancelam, perdem dinheiro, muito dinheiro. E claro, vai menos dinheiro para as equipas para as temporadas seguintes. Vai abalar a Formula 1 no futuro, em mais maneira do que julgam.
Esperemos pelas cenas dos próximos capítulos.
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