Este é o último ano da segunda década do século XXI. No tempo em que vivemos, espera-se que já estejamos mais avançados em termos de costumes do que no tempo dos nossos avós. Contudo, num tempo em que grande parte dos países do mundo são democracias, onde as minorias estão protegidas por lei, onde deveria haver paz, igualdade e comunhão, ainda há quem diga que "antigamente é que era bom". Um antigamente onde uma minoria se considerava privilegiada, ancorada numa espécie de "povo escolhido" do qual não têm qualquer fundamento sem ser num totalmente preconceituoso. E num ano perfeitamente anormal, onde passamos por uma pandemia global, a pior em um século, um incidente na cidade de Minneapolis, nos Estados Unidos, onde um policia sufocou um negro até à morte com o seu joelho em cima do seu pescoço para o imobilizar, causou revolta geral numa nação onde há muito se sente que o contrato social foi quebrado e uma minoria se sente discriminada, não na lei, mas na igualdade de acesso aos cuidados de saúde, educação, emprego, habitação, e sobretudo, proteção policial. E quando têm como presidente alguém que pretende dividir o país e não o unir, pior ainda.
Mas porque falo de George Floyd, Donald Trump, o racismo na América num sitio de automobilismo? E o que uma coisa têm a ver com outra? Imenso. Porque o automobilismo tem imensos esqueletos no armário. E é altura de falar deles. De uma modalidade onde o domínio do homem branco, do bicho homem tem sido tal que até espanta.
Eu sabia desde há muito tempo que a Formula 1 não era exemplo para ninguém. Aliás, certo dia, Bernie Ecclestone disse que a modalidade pertencia aos velhos de 70 anos com Rolexs nos pulso. Uma certa elite cujo único critério é a riqueza, e o resto é circo. Que se afirmava "apolitica" mas no passado correu na África do Sul, que foi a única modalidade que furava o boicote anti-racial contra um governo de minoria branca. E quando o resto do mundo condenou a sua atitude, encolheu os ombros e foi correr na mesma. Mas num tempo onde o melhor piloto da sua geração é um britânico filho de um negro e de uma branca, teve de ser ele a dizer à Formula 1 que havia um problema grave para ser tratado, depois de não ter visto qualquer reação a esse respeito. Hamilton descobriu que tinha de agir, ser cidadão, para que as pessoas no meio soubessem que havia uma vida lá fora.
Mas quase ao mesmo tempo, discretamente, e no outro lado do planeta Terra, um jornal australiano descobriu que uma das poucas mulheres-piloto a andar nos V8 Supercars teve uma segunda vida mais... "caliente". Renee Gracie tem 25 anos e não teve uma grande carreira, apesar de ter corrido por duas vezes no Bathurst 1000. Largou a sua carreira no automobilismo em 2017 e agora descobriu-se que virou modelo erótico, com uma página sua no site onlyfans,com, onde por uma subscrição mensal de 12.95 dólares, os fãs poderão ver o que quiserem dela, e mostra tudo “full frontal”.
E a coisa causou furor: em uma semana, a sua página passou de sete mil para 12 mil subscritores. E pagando cada um os 12.95 de mensalidade, ela fez com que no fim de junho, irá receber mais de 155 mil dólares. Não querendo criticar as suas escolhas de vida porque já é adulta, estes exemplos fazem-me pensar sobre todos os esqueletos no armário que o automobilismo têm. E o comportamento do típico fã das quatro rodas e um volante.
Esse típico fã do automobilismo congelou-se num tempo que só existe na sua cabeça. Um tempo onde o piloto encara o perigo de morte em frente e terá uma vida curta. competindo uns contra os outros, e um erro é fatal. Essa era a visão do automobilismo nos primeiros anos do século XX, e muitos sonham com um tempo que não viveram. E nesse tempo que não viveram, os motores eram barulhentos, tinham quatro, cinco e seis cilindros em V, tinham cem décibeis, eram o mais leve possíveis, os pilotos apenas estavam protegidos com panos e… a sorte. E claro, eram todos homens brancos. O cheiro a gasolina, os mecânicos besuntados a óleo e os carros a guiar a 200 à hora em reta é, para muitos, paraíso. (...)
O automobilismo, como qualquer desporto, é um entretenimento para muita gente. Um escape, até. Contudo, muitos dos que atraem são pessoas cujas simpatias politicas, que são por vezes exacerbadas, não coadunam muito com a defesa dos direitos humanos. E a Formula 1, em particular, tem muitos esqueletos no armário. Mais do que a filosofia do "espectáculo tem de continuar", no passado foi contra a lógica e o bom senso, por exemplo, quando foi a única modalidade que furava o embargo desportivo ao regime do "apartheid" na África do Sul, e em 1985, não teve problemas em fazer um Grande Prémio, mesmo quando o resto do mundo apelava à sua não-realização.
A mesma coisa andou perto em 2012, com o GP do Bahrein, embora em menor grau. Mas o resto - uma competição com apenas um negro, cinco mulheres e poucos LGBT's ao longo dos seus 70 anos de história - mostra que por ali, o dinheiro sempre foi rei, e a sensibilidade humana foi relegada para segundo plano. E não saberíamos se com Bernie Ecclestone ao comando, o GP da Austrália teria sido cancelado tão em cima da hora como foi...
E é sobre isso que falo este mês no Nobres do Grid.
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