É só amanhã, mas como vou estar fora todo o dia, decidi colocar isto hoje, pois é para vos lembrar que este desporto que amamos, o automobilismo, tem também a sua face cruel. E na minha modesta opinião, o momento mais simbólico dessa crueldade aconteceu, faz amanhã 35 anos.
Já falei em pormenor, no ano passado, sobre o acidente mortal de Roger Williamson, mas hoje em dia, cada vez mais, acho que é importante lembrar das circunstâncias, de tudo o que aconteceu, do gesto nobre de David Purley, que sem querer receber nada em troca, desistiu da corrida para tentar salvar o amigo. Uma tentativa inutil, mas aquilo foi visto por milhões de pessoas, que naquela tarde solarenga de Domingo, viram aquele drama a passar em directo pela televisão.
“Não há muito tempo, contei o número de pessoas conhecidas que tinham morrido em competição. Uma hora depois, tinha chegado a 57.”
Dan Gurney, 1970, explicando a sua retirada da competição como piloto.
Dan Gurney, 1970, explicando a sua retirada da competição como piloto.
Certo dia, li uma frase que afirmava que a Formula 1 é o desporto que é ao mesmo tempo épico, emocionante e cruel. A competição automobilística, em si, tem mais de 100 anos, e a Formula 1 existe, pelo menos oficialmente, há 58 anos. Os mais novos conhecem a face mais profissionalizada e tecnológica deste desporto, mas provavelmente não sabem que, para esta competição ter chegado a este ponto, muitas vidas se perderam. Os que morreram não tinham distinções de classe ou competitividade: tanto eram campeões do mundo ou pilotos do fundo do pelotão. Será que os mais leigos ainda sabem que a Formula 1 já coroou um campeão do mundo depois de morto?
Nesse tempo, podia-se morrer em provas ou treinos, mas também se morria em coisas tão banais como testes ou noutras competições, de outras categorias, pois nesse tempo os pilotos não estavam amarrados em exclusivo a uma competição. O profissionalismo e os contratos milionários são um fenómeno muito recente. Até há cerca de 20 anos, não era raro ver pilotos de Formula 1 activos a correrem nas 24 Horas de Le Mans, por exemplo.
Outra coisa que deve ser referida: a segurança das pistas e dos carros, há 30 ou 35 anos atrás, era mínima. Podia-se dizer que era demasiado fácil morrer nesses carros. Os pilotos entravam no carro, confiantes na sorte, e não deixar que o medo os dominasse. Eles estavam preparados para tudo: para competir, para ganhar… e para morrer.
O mais curioso é que nessa altura, todos eles eram amigos uns dos outros, tinham uma entreajuda formidável, umas amizades indestrutíveis, para a vida e para a morte. Pareciam alunos de um colégio elitista. Não era raro vê-los juntos, em convívio, na piscina do hotel, a jogar às cartas ou outra coisa qualquer. Mas sabiam que aquele fim-de-semana poderia ser o último de algum deles. Era uma espada de Dâmocles que pairava nas suas cabeças, mas sabiam que o risco compensava. Prémios monetários, capas dos jornais do dia seguinte… nesse tempo, a glória era irmã da tragédia.
Eram raros os que tinham uma carreira superior a sete anos. Ou morriam pelo caminho, ou tinham algum acidente incapacitante, ou então, chegavam a um ponto em que tinham atingido o limite e decidiam retirar-se enquanto estavam vivos. Foi por isso que o recorde de títulos de Juan Manuel Fangio aguentou tanto tempo, ou que o recorde de 176 Grandes Prémios de Graham Hill demorou 11 anos para ser igualado, e mais três para ser superado.
“No início dos anos 70, as chances de sobrevivência eram de 1 para 7, ou seja, em cada temporada morriam em média três pilotos. Era como fazer parte de uma esquadrilha de aviões de caça durante a II Guerra Mundial.”
Emerson Fittipaldi, 1989, recordando os seus tempos na Formula 1
Esta semana faz 35 anos que a Formula 1 deve ter assistido ao seu momento mais cruel. Não tanto no acidente fatal, mas sim na coragem de um outro piloto, que altruisticamente, sem pedir nada em troca, abandonou o seu carro e foi a correr, para tentar salvar um companheiro seu. E os comissários não o deixaram, por uma sucessão de equívocos que, caso acontecesse hoje, os familiares não hesitariam em processar os organizadores do circuito de homicídio por negligência, e os comissários de pista por omissão de auxilio.
Hoje em dia, recordamos Roger Williamson e David Purley como os intervenientes de um episódio trágico e cruel. Ver um piloto a morrer diante dos nossos olhos por si, já é mau, mas saber depois que ele poderia ter sido salvo e não o foi, por desconhecimento ou negligência grosseira, quase nos dá vontade de chorar e bater nas pessoas que o podiam ter salvo, mas não o fizeram.
Ambos eram ingleses e jovens. Williamson era considerado como uma das jovens promessas do automobilismo, pois tinha ganho a Formula 3 inglesa no ano anterior e seguia os mesmos passos de outros pilotos, como James Hunt e Tom Pryce. David Purley era o típico herdeiro rico que decidiu correr na Formula 1, comprando o seu chassis March. Ambos tinham se estreado na prova anterior, em Silverstone, e tinham safado de boa de um gigantesco acidente na segunda volta, causado pelo McLaren de Jody Scheckter, que sete anos depois seria campeão do mundo pela Ferrari…
O acidente ocorreu na sétima volta. Não estava a disputar nenhum lugar em particular, mas um pneu furado fez com que perdesse o controlo, batesse no “guard-rail” e ficasse de cabeça para baixo. A corrida prossegue, com os comissários somente a assinalar o local com bandeira amarela, mas ele não tinha morrido com o choque. O mais incrível no meio disto tudo: estava preso no carro, sem nenhum arranhão. Consta-se que Williamson, ao ver Purley a empurrar o carro, disse: “Pelo Amor de Deus, tira-me daqui!”
Dois anos mais tarde, o inquérito às circunstâncias da morte afirmou, preto no branco, que a organização do circuito era o primeiro responsável pela morte do piloto inglês. Ed Swarts, o director da prova daquele ano, tentou anos depois justificar o injustificável: “Foi tudo uma terrível má interpretação do que estava a acontecer.”
Purley ficou desolado por não o ter salvo. Mas o seu gesto fez com que fosse condecorado com a George Medal, a condecoração mais alta de Inglaterra por bravura. E recebeu mais doze prémios semelhantes… As fotografias do acidente, e subsequente tentativa de salvamento, foram tiradas pelo holandês Cor Mooij, que recebeu o prémio World Press Photo desse ano.
“Fazer algo bem vale tanto a pena que morrer tentando ainda melhor não pode ser loucura. A vida é medida em realizações, e não em anos.”
Bruce McLaren, 1964.
Como disse atrás, a glória era irmã da tragédia. Mas vivia-se intensamente aquele tempo. As recompensas eram muitas, e por vezes os pilotos eram elevados a mitos. E acho que o melhor exemplo é o de Emerson Fittipaldi. Foi graças a ele que o Brasil se apaixonou definitivamente pela Formula 1, e inspirou as carreiras de dezenas de pilotos, desde Nelson Piquet a Felipe Massa, passando por Ayrton Senna e Rubens Barrichello. Por todo o lado existem circuitos baptizados com os nomes de pilotos desaparecidos em combate, sendo o mais famoso deles todos o Circuito Gilles Villeneuve, na cidade canadiana de Montreal, baptizado em honra do seu herói local, de pilotagem espectacular, e cuja morte violenta, em 1982, causou ondas de choque no mundo inteiro, semelhantes ao que aconteceu com Ayrton Senna e Roland Ratzenberger, doze anos mais tarde.
Sim, a Formula 1 é glória. Mas não se esqueçam que também houve tragédia ao longo dos tempos, e foram os sacrifícios supremos destes pilotos que ajudaram a evoluir a competição em todos os aspectos, para que isto se tenha transformado no desporto de hoje: altamente profissionalizado, mediatizado, milionário e elitista…
Eu era um desses "milhões" em frente à TV e foi uma cena que até hoje está presente em minha mente...e estava na fase da pré-adolescência, cabelos longos, gatas, praia...e outra cena foi de um jornalista sueco a filmar a própria morte em frente à La Moneda, residência oficial do presidente do Chile, Salvador Alende...tem coisas que marcam sempre.
ResponderEliminarBelíssimo texto.
ResponderEliminarE toca num ponto que tem me fascinado ultimamente: as mudanças que a Fórmula 1 sofreu ocorreram em um espaço de tempo extremamente curto para a história. Será que a mentalidade ocidental mudou assim tão rápido?
Essa cena também me marcou.
ResponderEliminarMas o relato do Speeder emociona e faz pensar: que seria da F1 se, como hoje, ninguém tivesse morrido? Quais seriam os campeões? Cevert? Villeneuve? Bellof?