quarta-feira, 30 de junho de 2021

A imagem do dia


Ontem falei de Harry Schell e dos seus feitos automobilísticos, no dia em que se assinalava o centenário do seu nascimento. Mas hoje regresso a Schell porque decido contar a história... da sua mãe. Que, parecendo que não, foi uma personagem rara nesses primeiros tempos do automobilismo na Europa, e em França, em particular. E a sua historia vale a pena ser contada.

Harry era filho de Lucy O'Reilly e Laury Schell. Os seus pais eram expatriados americanos na Europa, e a sua mãe, em particular, era um entusiasta do automobilismo. Lucy O'Reilly tinha nascido em Paris, a 26 de outubro de 1896, filha de um irlandês que emigrou para a América para fugir à Fome de 1848 e prosperou na construção civil. Lucy vivia entre a Europa e a América, e em 1918, casou-se com Laury, filho de um diplomata americano. Ele tinha nascido em Genebra, quando o seu pai era o cônsul americano na cidade. Três anos depois, a 29 de junho de 1921, ela deu à luz Harry, e cinco anos mais tarde, Philippe.

Nos anos 30, Lucy e Laurence fundam a Ecurie Bleue, com sucesso, ao ponto da própria Lucy participar em algumas corridas com algum sucesso. Por exemplo, foi segunda classificada no Rali de Monte Carlo de 1936, ao lado do seu marido. Mas foi também em 1936 que ela deu nas vistas quando financiou a aventura da Delhaye para bater os Flechas de Prata da Mercedes nos Grand Prix europeus. Já tinha formado a Ecurie Bleue e quando a fábrica desistiu de financiar o projeto, ela agarrou os chassis e injetou dinheiro para continuar a aventura. Especialmente quando o governo francês decidiu dar prémios de um milhão de francos para incentivar as marcas a construírem essas máquinas.

A Delhaye cumpriu os critérios numa corrida chamada "Le Millon", no autódromo de Montlhery, em agosto de 1937, batendo a Bugatti pela margem mínima. O carro era conduzido por René Dreyfuss, um francês de origem judaica, que tinha ganho o GP do Mónaco em 1930, e de uma certa maneira, era uma vingança sobre os alemães, que já viviam debaixo do jugo nazi. No dia seguinte, para comemorar o feito, Lucy O'Reilly mandou pintar três riscas, uma vermelha, outra branca e outra azul, que por coincidência, são as da França e dos Estados Unidos. 

Em 1938, dois Delhaye, corridos por Dreyfuss e o italiano Gianfranco Comotti, competiram no GP de Pau contra os Mercedes inscritos para Rudi Caracciola e Hermann Lang. A Alfa Romeo também apareceu, com Tazio Nuvolari e Luigi Villoresi, mas o carro do italiano pegou fogo na qualificação e a equipa decidiu retirar os seus carros. Na corrida, Dreyfuss e Caracciola entraram num duelo que o francês venceu porque o carro, menos potente que o Mercedes - 435 cavalos contra os 280 - consumia menos combustível, o que permitia ir até ao fim sem reabastecer. E o circuito urbano e estreito também contribuiu para esse inesperado triunfo que deu prestigio para as cores francesas.

Contudo, o projeto sofreu percalços, e as nuvens da guerra já pairavam no horizonte. A família Schell mudou-se para o Mónaco, e a 18 de outubro de 1939, sofre um acidente de estrada que mata o seu marido e a deixa gravemente ferida. Para recuperar, vai para a América no inicio de 1940 e leva o seu filho Harry, que com 19 anos, tenta a sua sorte na Força Aérea Finlandesa, para os ajudar na invasão russa, durante a Guerra de Inverno. 

A ideia é inscrever carros nas 500 Milhas de Indianápolis pela Ecurie Bleue. Com eles irão René Dreyfuss e René Le Begue, e para cuidar dos carros irá também outro piloto (duas vezes vencedor das 24 Horas de Le Mans) com imensos conhecimentos de mecânica, o italiano Luigi Chinetti. Contudo, no dia da corrida, enquanto corriam no "Brickyard", o exército aliado está cercado e acossado pelos nazis em Dunquerque, e Dreyfuss sabe que a França será derrotada. Ele fica por lá, acabando por ajudar o exército americano como motorista e tradutor, como Harry Schell, e mais tarde, ajuda Deryfuss e Chinetti em arranjar os papéis para que se tornassem cidadãos americanos. Dreyfuss morre a 16 e agosto de 1993, aos 88 anos, exatamente um ano e um dia antes de Chinetti.

Quanto a Lucy, ela volta à Europa no final da guerra e morre em Monte Carlo a 8 de junho de 1952, aos 55 anos. Por esta altura, já o seu filho pegará no testemunho da Ecurie Bleue e torna-se num piloto de Formula 1 por direito. 

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