Já passaram 25 anos, mas as pessoas da minha geração reconhecem que isto foi um separar das águas em relação ao comportamento dos espetadores no rali de Portugal. Foi também um dos “princípios do fim” dos carros do Grupo B, que com os seus chassis tubulares e feitas de fibra de plástico (carros bolha) e motores Turbo, eram cada vez mais velozes e cada vez mais difíceis de controlar. Para poder explicar o que aconteceu naquela quarta feira, 5 de março de 1986, tenho de ir um pouco atrás e tentar explicar a aqueles que não costumam ver ralis ou que ainda não eram nascidos aquilo que se vivia nessa altura do Mundial de Ralis.
Primeiro que tudo, o Rali de Portugal é um dos poucos que fazem parte do calendário inicial do Mundial, que começou em 1973. Sendo um dos poucos eventos que colocava este pais no calendário do desporto motorizado, atraia multidões por onde passava, ao longo do pais. Desde a sua partida, em Lisboa, até a Fafe, no norte do país, passando por zonas como Arganil, Figueiró dos Vinhos e Viseu, no centro do país, centenas de milhares de pessoas assistiam nas bermas da estrada a passagem de carros velozes como o Lancia 037, o Peugeot 205 Turbo ou o Audi Quattro.
Contudo, o comportamento dos espetadores muitas vezes deixava a desejar. Temerários ou simplesmente estúpidos, milhares de jovens arriscavam a vida e somente se desviavam dos carros no último momento, colocando sempre os pilotos com o coração nas mãos e manter a concentração em níveis muito elevados, pois para além de tentarem evitar as bermas, tinham também de evitar os espetadores.
Uma pequena história desse tempo: um grupo de rapazes tinha apostado quem era capaz de tocar em um dos carros que passavam na subida à Lagoa Azul. Quando passou o Audi Quattro de Hannu Mikkola, com os seus 600 cavalos a voar baixinho, um dos apostadores resolveu mesmo tentar tocar no carro! Conclusão: Mikkola seguiu para o fim da classificativa e o “espertalhão” para o hospital de Cascais, com a mão partida.
Em 1986, estava-se em plena era dos “grupo B”, carros ultra-potentes com motores Turbo e com uma relação peso/potência desequilibrado: havia carros com cerca de 500 quilos e potências superiores a 800 cavalos. Contudo, a escolha de carros era rica e vasta: Para além da Audi, Peugeot e Lancia, estavam também a MG, com o seu Austin Metro Turbo, e a Ford com o RS200 Turbo, e a Renault, com o seu modelo 5 Turbo, entre outros. Essa combinação começava a ser explosiva e os pilotos começavam crescentemente a queixar-se de que não conseguiam controlar esses carros. Conta-se a lenda que quando a Lancia colocou o seu piloto Henri Toivonen a dar algumas voltas ao Circuito do Estoril, o seu melhor tempo teria dado um lugar na terceira fila da grelha de partida do Grande Prémio de Formula 1…
A primeira etapa do rali era feita na zona da Serra de Sintra, nos arredores de Lisboa. O conjunto de classificativas, feitas na zona da Lagoa Azul, atraiam uma larga população, que quer ver os velozes carros a passar sobre as estradas asfaltadas da zona. Segundo a policia, naquele ano estariam cerca de meio milhão de pessoas, e estes tinham muita dificuldade em controlar essa multidão. Nesse dia 5 de Março, a primeira etapa consistiam em duas passagens pela Serra de Sintra, de manhã e de tarde, e numa estrada muito estreita, a multidão acumulava-se nas bermas, numa posição perigosa. O primeiro aviso tinha sido dado quando o finlandês Timo Salonen, campeão do mundo em título, tocou com o seu Peugeot 205 um espetador no inicio da primeira classificativa.
Nas primeiras três classificativas, as coisas estavam ao rubro. Henri Toivonen, Massimo Biasion e Markku Alen, pela Lancia, lutavam pelo comando, contra o Audi de Walter Rohrl e os Peugeot de Timo Salonen e Juha Kankunnen, os Austin de Tony Pond e Malcom Wilson e os Ford de Stig Blomqvist e Kally Grundel, e os pilotos locais tentavam acompanhar os oficiais: Joaquim Moutinho, no seu Renault 5 Turbo e Joaquim Santos, num Ford RS200.
Na primeira classificativa, Joaquim Santos andava a adaptar-se ao Ford RS200, recém adquirido à fábrica e que serviria para o campeonato nacional de ralis, competindo contra Moutinho e Carlos Bica, os seus rivais mais diretos. E foi nessa altura de adaptação que a tragédia aconteceu. A meio da primeira especial, Santos perde o controlo do seu carro - uns falam por tentar evitar dois espectadores, outros falam que passou por uma zona húmida e perdeu aderência – e embate de frente contra um grupo de espectadores. Trina e três pessoas ficaram feridas, e duas pessoas, uma mulher e o seu filho de nove anos, acabaram por morrer. A prova foi interrompida nesse local, mas a organização decidiu prosseguir o rali até ao final da manhã, pois quando aconteceu, os pilotos da frente já estavam na terceira especial.
Quando foram informados do sucedido, os pilotos reagiram: iriam boicotar a prova, com efeito imediato. Reunidos no Hotel Estoril-Sol, decidiram pelo abandono voluntário, em gesto de protesto pela impotência da organização em assegurar as condições mínimas de segurança.
O comunicado oficial foi lido à imprensa por Henri Toivonen, vencedor do Rali de Montecarlo algumas semanas antes.
"As razões pelas quais os pilotos abaixo assinados não desejam prosseguir o Rali de Portugal são as seguintes:
1 – Como uma forma de respeito pelas famílias dos mortos e dos feridos;
2 – Trata-se de uma situação muito especial aqui em Portugal: sentimos que é impossível para nós garantir a segurança dos espectadores;
3 – O acidente no primeiro troço cronometrado foi causado por um piloto que tentou evitar espectadores que estavam na estrada. Não se ficou a dever ao tipo de carro nem à sua velocidade;
4 – Esperamos que o nosso desporto possa beneficiar futuramente com esta decisão."
O diretor de prova, César Torres, aceitou as razões invocadas pelos pilotos, mas decidiu que a prova deveria prosseguir na mesma, mesmo sem os pilotos de fábrica. Os troços de Sintra foram anulados, e o rali prosseguiu um pouco mais a norte, no Gradil. E essencialmente a prova continuou com os pilotos locais a dominarem os acontecimentos. E o vencedor acabou por ser Joaquim Moutinho, que com o Renault 5 Turbo, tornou-se no primeiro – e único até agora – piloto português a ganhar uma prova do mundial de Ralis. Mas os acontecimentos da Serra de Sintra tiveram impato: as classificativas tinham muito menos espetadores.
Apesar dos pilotos terem dito que se retiravam de prova por motivos de segurança, já se notava que estes carros começavam a ser demasiado perigosos para serem controlados. Dali a 58 dias, a 2 de Maio desse ano, na Córsega, Henri Toivonen iria pagar com a vida esse descontrolo das máquinas do Grupo B, e seria também a machadada final destes carros. Jean-Marie Balestre, o presidente da FISA reagiu de imediato ao desastre e declarou de imediato a abolição destes carros na temporada de 1987.
O Rali de Portugal prosseguiu nos anos seguintes, com a organização a impor a segurança em primeiro lugar, pois estava em jogo a sua continuação no calendário do Mundial de ralis. Ele ficou sem problemas até 2001, e não houve mais problemas com o controlo das multidões. Essa era tinha passado. Hoje em dia, o Rali de Portugal continua a estar no campeonato do Mundo, depois de um hiato de cinco anos e respetivo regresso em 2007. Mas agora o rali disputa-se num cenário totalmente novo: o Alentejo e o Algarve substituram as míticas classificativas do Norte e Centro, e pilotos como Sebastien Löeb, Mikko Hirvonen ou Petter Solberg nunca tiveram a ocasião de andar por uma Serra de Sintra onde há vinte e cinco anos, um certo rali de Portugal acabou mal, vítima da sua velocidade e sucesso.
1 comentário:
Me lembro das imagens desse acidente... os expectadores eram loucos!
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