terça-feira, 22 de outubro de 2024

Apreciação critica de "Gilles Villeneuve"


Sou um sujeito que mora numa casa que começa a ficar cheia de livros - compro 30 a 40 por ano, e os assuntos variam. E nem falo das ocasiões onde vou à biblioteca e requisito alguns, para poder ler em duas semanas, que é o tempo que eu tenho para ler. Se apenas comprasse os livros que leio, já teria mais de mil em casa, e a tendência seria para aumentar.  

Mas os meus livros sobre automobilismo não são muitos. E sempre que consigo um, é uma festa. Foi o que aconteceu há quase um mês quando, no Leiria Sobre Rodas, encontrei a biografia do Gilles Villeneuve a um preço de desconto - 10 euros. E é um "roubo", para quem conhece os "alfarrabistas" (em português do Brasil, sebos) onde por esse preço, podes levar três ou quatro livros de qualidade. Acreditem, falo por experiência própria.

Não parece muito - cerca de 330 páginas - mas como é um livro de capa dura, parece ter mais. Para mim, o inglês não é assustador, estou habituado desde criança a falar, ler e escrever. Mas mesmo assim, demorei cerca de uma semana para o ler, e foi depois de me esforçar no final de semana passado para ler o máximo que podia. 

Enfim, dito isto... vamos ao que interessa. 

Como disse, são cerca de 330 páginas a falar sobre a vida e carreira de Gilles Villeneuve. As suas origens, no Quebec rural, com um inicio de carreira que é considerada das mais excêntricas na história do automobilismo - fez "drag racing" (arrancada, no português do Brasil) e correu em "snowmobiles", antes de ir para a Formula Ford, em 1973, e a Formula Atlantic, no ano seguinte - e depois, a sua ascensão foi dramática, chegando à Formula 1 em três anos e meio, primeiro na McLaren e depois, à Ferrari, onde o Commendatore viu nele um resquício do passado, nomeadamente Tazio Nuvolari. E depois disso, como demorou cerca de uma temporada para abater as dúvidas e as resistências para ser o piloto dos corações de uma geração de "tiffosi". E momentos como o de Dijon, a 1 de julho de 1979, entraram na mente de todos.

Ao ler todas aquelas páginas, dá para entender muito de Gilles, o piloto, e Gilles, o ser humano. Como piloto, queria dar espetáculo, pretendia ganhar, mas num estilo "win or wall". Os tiffosi alegravam-se com isso, viam nele alguém que defenderia as cores do Cavalino até ao limite, e esse limite era as barreiras de proteção. Foi o que aconteceu em Imola, em 1980, na curva que agora tem o seu nome, onde um furo a alta velocidade o fez embater contra o muro, mas saiu de lá com escoriações e nada mais. 

E esse estilo fez perder corridas e campeonatos. Especialmente em 1979, quando ganhou duas das primeiras três corridas do ano, mas por exemplo, perdeu um pódio certo quando ficou sem gasolina na última volta do GP da Bélgica. Se tivesse acabado no pódio, talvez no final do ano, o título seria dele. E nem se fala do que aconteceu em Zandvoort, com a famosa manobra das três rodas, depois do furo que lhe custou outro lugar no pódio. Ou seja, perdeu o título de 1979, em muitos aspetos, por culpa própria. Jody Scheckter, seu companheiro de equipa, aproveitou os erros e excessos do seu companheiro de equipa para ser campeão.

Mas isso não o impediu de ser amigo dele. Aliás, um dos seus melhores amigos. E entramos noutra faceta: O Gilles humano. Tirando o episódio de traição do Didier Pironi - ele julgava que era amigo dele e colaborava no carro - ele era honesto para com as pessoas e leal para com os seus companheiros de equipa. Honrou os contratos que tinha - apesar de, no final de 1981, a McLaren tenha tentado seriamente tê-lo na sua equipa, caso Niki Lauda não aceitasse o convite para regressar, e pediu cinco milhões de dólares para correr com eles em 1982 - e era amistoso com todos: jornalistas, engenheiros, pilotos e outros. O único que teve uma relação tempestuosa ao longo da sua carreira foi Bernie Ecclestone, então patrão da Brabham e depois, da FOCA. Nunca se deram bem e na altura da cisão, sempre se queixou dos métodos dele de conseguir o que queria. E em Kyalami, na altura da greve dos pilotos de 1982, a coisa ficou tão azeda que se temeu que os dois baixinhos brigassem.

Há outros detalhes. Os episódios "loucos" - ele ia no limite ao volante, fazendo uma viagem Monaco-Modena em 3.45 horas, em vez das habituais cinco horas - arrepiava toda a gente, ao ponto de muitos se recusarem a ir com ele. E quando passou para os helicópteros - o seu Agusta custou-lhe 1,150 milhões de dólares, com um grande desconto em troca de um autocolante no fato de competição - a sua capacidade de voar nos limites continuou, confessando que adorava viajar quando o tempo estava mau. em condições de nevoeiro e chuva. Considerava um desafio.  

Para além disso, Gilles era exigente para com a família, apesar desta ser unida. Casou-se muito cedo - tinha 20 anos, quando Joann ficou grávida de Jacques - e andavam juntos num motorhome, primeiro no Canadá, depois na Europa, algo que não se via muito. Ele era calmo, algo tímido, e adorava mexer com ferramentas, especialmente quando repousava em casa. Quando começou a ter dinheiro, gastou-o em brinquedos caros - barcos, helicópteros, a casa do Mónaco - e isso causou tensão conjugal, com constantes discussões domésticas. Era exigente com ela e com os filhos, especialmente com Jacques, e a certa altura, no inicio de 1982, ele e Joann consideraram seriamente o divórcio: ele tivera um caso extraconjugal e escondeu o mais que pode. Ironicamente, os eventos de Imola, nas últimas duas semanas de vida, aproximaram-se muito em termos de relacionamento.

Outra coisa curiosa: por uns tempos, considerou construir a sua própria equipa. Aconteceu algures no final de 1981, onde aparentemente, alguns homens de negócios encontraram-se com ele, em Milão, e afirmaram que poderia arranjar dinheiro de uma grande tabaqueira. Chegaram-se a fazer planos - uma fábrica foi localizada em Paul Ricard, para a construção de um "Team Villeneuve". Contudo, descobriu-se que não era mais do que um esquema elaborado para angariar patrocinadores usando o nome dele. Não tinham dinheiro. Quem ajudou a explodir a bolha foi o seu amigo Scheckter, e isso acontece nos dias antes da corrida fatal de Zolder.  

Os eventos do seu acidente mortal e funeral são dramáticos e algo pungentes. Todos sofreram. Foi um choque duríssimo para muitos - não houve poucos que desabafaram que choraram com a sua morte. Mas também muitos outros disseram que, da maneira como corria, um grande acidente iria ser inevitável. E o próprio Gilles sabia disso. A certa altura, quando ele e Gaston Parent, seu empresário, falaram sobre um assunto do qual achava que teriam tempo para resolver, ele respondeu: "que garantia tenho se daqui a um ano andarei por aqui?" Ele mesmo sabia - e reconhecia - que estava a fazer malabarismos em trapézios sem rede.

O funeral durou quatro dias. Foi levado de Bruxelas para o Canadá num 707 da Força Aérea, com honras de funeral de estado, e o primeiro-ministro de então, Pierre-Eliot Trudeau, esteve presente no funeral, onde estavam mais de 10 mil pessoas num lugar pequeno que é Berthierville, e acabou por ser cremado, com as suas cinzas, provavelmente, na posse da família. Não ficaria admirado se algumas delas já estejam sobre o túmulo, em Berthierville - o pai de Gilles morreu em 1987, e a mãe em 2008 - mas como o livro é de 1988, essa parte não é muito falada.

Em suma, como biografia, cumpre o seu objetivo. Fica para a história, e conta os pormenores, conhecidos e não tão conhecidos. Como leitura é agradável, o estilo é claro - é escrito por um jornalista - e fica-se a conhecer o ser humano por trás do piloto. É uma boa leitura.       

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