quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A(s) image(ns) do dia



Estamos em 1986. Entre as 13 equipas do pelotão, uma americana: a Lola-Haas. O projeto, montado por Carl Haas, com nome feito na Can-Am e CART, em associação com o ator americano Paul Newman, estava a ter sucesso com Mário Andretti, que tinha sido campeão em 1984 na competição americana.

Atrás dele tinha o apoio da cadeia de supermercados Beatrice, e com isso, em 1985, decidiu faxer algo mais ousado: ir para a Formula 1. E Haas, que era o importador da Lola nos Estados Unidos, pediu a eles para montar um chassis, enquanto ia buscar gente capaz para montar a sua equipa. Gente como Teddy Mayer, ex-McLaren, um jovem chamado Ross Brawn, que tinha trabalhado na March e Williams, e dois weteranos pilotos: o australiano Alan Jones, campeão do mundo de 1980 e ex-Williams e o francês Patrick Tambay, ex-McLaren, Ligier, Ferrari e Renault.

Os motores eram feitos pela Cosworth - apesar de Keith Duckworth detestar os Turbo - e o projetista era nada mais, nada menos, que Adrian Newey

Contudo, no GP do Canadá, Tambay acidenta-se no warm-up e fica magoado nos pés, não partindo para a corrida. E não recuperaria a tempo do GP americano, que aconteceria em Detroit, dali a uma semana. Assim sendo, Carl Haas parte para um substituto. Irá buscar um Andretti. 

Mas não é Mário, que nessa altura tem 46 anos. É o seu filho, Michael, então com 23 e a ter uma carreira promissora na CART. Carl Haas vai ter com ele e concorda, e corre para a FISA, no sentido de ter uma Super-Licença. Mas esta... nega. Carl Haas, evidentemente, fica furioso. 

"Não conseguiu os critérios para ter a Super-Licença", começou por afirmar, em declarações ao Indianápolis News. "Creio que nenhum dos americanos tem esse critério, nem sei se o Mário [Andretti] tem", continuou. Haas não ficou parado, e chamou Eddie Cheever, que estava na CART desde que a Alfa Romeo fechara as portas, um ano antes, e competiu até ao regresso do francês, em Paul Ricard. A equipa fecharia portas no final da temporada por causa da saída de cena da Beatrice, com cinco pontos no campeonato.

Michael Andretti iria ter a sua chance na Formula 1 sete anos depois, em 1993, pela McLaren, e essa história é sabida: 13 Grandes Prémios, seis pontos e o despedimento depois de um pódio em Itália, e ser cilindrado pelo seu companheiro de equipa, Ayrton Senna.

Agora, mais de 35 anos depois, Michael Andretti quer regressar à Formula 1. Como construtor. 

E tem pedigree para tal: a Andretti Autosport, que virou Andretti Global, está em muitas categorias do automobilismo, desde a IndyCar até ao IMSA, passando pela Formula E. E quer montar uma equipa na Formula 1. Em setembro, a FIA aprowou a sua entrada, para 2015. Mas há um grande obstáculo: a Liberty Media. Está começa a trabalhar praticamente independentemente da FIA, que se limita a sancionar o calendário e pouco mais. E a Liberty Media - ironicamente, uma entidade americana - acha que 10 equipas chegam, por causa do bolo que distribui às equipas. E com um "cost cap", as equipas começam a ficar equilibradas em termos de orçamento. Mas a Liberty tem planos. E um deles passa pelo licenciamento, ou seja, os lugares pertenciam a eles, as equipas apenas teriam direito ao usufruto. E se abririam um 11º posto, teria de ser uma construtora, a única com capacidade de gastar o dinheiro necessário. Uma equipa independente seria, pura e simplesmente, vetada. 

E desde que a FIA aprovou a Andretti, nenhuma das equipas presentes deu as boas vindas, não a querendo por si mesma. Só se viesse com a General Motors, que entrou na parceria com a Andretti, mas apenas em 2028. E foi isso que transpirou no comunicado oficial desta quarta-feira

Nosso processo de avaliação estabeleceu que a presença de uma 11ª equipa não traria, por si só, valor ao Campeonato. A forma mais significativa pela qual um novo participante agregaria valor era se um participante competitivo.

Embora o nome Andretti traga algum reconhecimento para os fãs da Formula 1, nossa pesquisa indica que a Formula 1 traria valor à marca Andretti, [mas] não o contrário”, continua.

Contudo, também se afirma que “nós olharíamos de forma diferente para um pedido de entrada de uma equipa no Campeonato de 2028 com uma unidade de potência da GM [General Motors], seja como uma equipa de fábrica da GM ou como uma equipa cliente da GM”.

Há certas coisas que, de uma certa forma, tem de ser lidas com uma certa ironia. Charlatães sempre existiram na Formula 1, mas... quando temos equipas como a Haas - não a de Carl Haas, mas de Gene Haas - que em 2021 se "vendeu" a uma equipa russa, do pai do Serguei Sirotkin, e conseguiu a incrível soma de... nenhum ponto, dois depois depois de conseguir o "patrocinio" da Rich Energy, que de "rico" só tem o nome; quando acolheu cripto-patrocinadores, alguns dos quais faliram de forma espetacular - a FTX, cujo fundador ficará na cadeia o resto da sua vida nos Estados Unidos, patrocinava a Mercedes -  quando temos uma segunda equipa da Red Bull, que mudou de nome pela terceira vez nesta década, depois da Alpha Tauri, agora são os Racing Bulls, com um nome "ridiculo", ou a Sauber, que depois de ver sair a Alfa Romeo, e não entra a Audi, se chamará o de um patrocinador que não faço ideia do que seja... e wetam a Andretti, mais séria do que todas essas?

Para mim, o assunto é simples: a Formula 1 só quer 10 equipas, porque o dinheiro tem de ser distribuído dessa maneira. Uma 11ª equipa privada é um alvo a abater. É assim desde que assinaram o mais recente Pacto de Concórdia, e continuará a ser assim.

E pior. Também temos de ver isto no grande retrato da Formula 1 atual. A luta entre a Liberty e a FIA. A guerra é surda, e a FIA tem muito pouco poder em relação a eles. Apenas sancionam calendários, regulamentos e pouco mais. A culpa não é nem de Mohamed ben Sulayem nem de Stefano Domenicalli. Isto tem 20 anos, é do tempo de Max Mosley e Bernie Ecclestone, e o famoso "acordo dos cem anos", onde a FIA cedia a sua parte por pouco mais de 100 milhões de dólares. De uma certa forma, a Formula 1 seria totalmente autónoma, as equipas mandariam na categoria como se fosse o seu clube privado, e a entrada das três equipas Cosworth, em 2010, foi uma espécie de "presente envenenado", para mostrar que não seriam bem-vindos. Afinal de contas, nessa altura, a sua tentatiwa de cortar custos, limitar orçamentos a cerca de 55 milhões de dólares foi um fracasso total, porque as outras equipas não queriam. De uma certa maneira, foi a razão do surgimento da FOTA, a associação de Construtores.

Mas isto mostra, abertamente, ao que vão: isto é um clube fechado. Ou é à nossa maneira, ou vão correr para outro lado. E não interessa se são sérios, queremos um construtor. O recado ficou dado.

Agora... o que a Andretti poderá fazer? A Liberty é americana. A Andretti é americana. Se acham que existe cartelização e ela é contra a lei nos Estados Unidos, então... processem-os. E a FIA, se acha que a Formula 1 quer seguir o seu caminho, pode ir. Mas eles poderão criar a sua categoria, concorrencial à "Formula 1" da Liberty. E se forem impedidos disso, simples: processem a Liberty no Tribunal da União Europeia. Se existe leis que garantem a livre concorrência, então é altura de ir para as salas do tribunal para saber se têm razão ou não. 

Há quase 30 anos, em 1995, um futebolista belga processou a FIFA e a UEFA pelo seu direito de jogar onde quiser, sem ser impedido de jogar pelo clube anterior. Ganhou. Seu nome era Jean-Marc Bosman. Depois disso, o futebol passou por uma revolução em termos de liberdade de circulação. Alguns clubes querem processar a FIFA e a UEFA no seu direito de criar ligas próprias. Pelos vistos, parece que tem direitos. Se no futebol é assim, então porque o automobilismo tem de ser diferente?        

Se fosse a eles, pegaria nisto e iria montar um caso para os processar. Acho que seria mais barato que montar uma equipa de Formula 1.

No final, regresso a Carl Haas, que na mesma reportagem da Indianápolis News, afirmou:

"Os americanos deveriam realmente ver pilotos americanos. Se isto é um campeonato do mundo, então deveriam ter alguns pilotos da América ou então isto passa a ser um campeonato europeu", resmungou.

É evidente que isto não é uma questão de "lixar" a Andretti ou Michael Andretti. É que eles querem ter um modelo de campeonato que restringe a livre concorrência. Só que em algumas regiões do mundo, é contra a lei. 

E processá-los seria uma justiça. 

Sem comentários: