domingo, 31 de outubro de 2021

A imagem do dia


Derek Bell, um dos maiores nomes da Endurance no século XX, faz hoje 80 anos. O britânico, que correu boa parte da sua carreira ao lado de Jacky Ickx, especialmente na Porsche, onde conseguiu três das suas quatro vitórias em Le Mans, também teve a sua parte na carreira em monolugares. Nove corridas entre 1968 e 1974, entre Ferrari, McLaren, Surtees e Tecno, conseguindo um ponto com o sexto posto no GP dos Estados Unidos de 1970.

E para além disso, correu muito na Formula 2, sendo vice-campeão em 1970, num Brabham inscrito pela Team Whatcroft, que mais tarde iria "adoptar" Roger Williamson. Aliás, Derek Bell era amigo de infância e vizinho de David Purley, pois ambos são de Bognor Regis.

Contudo, no meio da sua longa carreira - ainda hoje participa em corridas históricas - ele têm uma "pequena chatice". Chama-se Enzo Ferrari. 

Depois de ter começado a carreira num Lotus Seven, em meados dos anos 60, incentivado pelo seu padrasto, em 1968 andava na Formula 3 e Formula 2, pela Church Farm Racing, gerida por Mike Earle - que mais tarde fundaria a Onyx. As suas performances Europa fora chamaram a atenção de muita gente, e em meados desse ano, um seu contacto na Shell disse que o Commednatore queria falar com ele. Aos 27 anos de idade, como poderia recusar tal convite de Maranello?

Em 2007, numa entrevista à Motorspot britânica, contou o dia do teste, em Monza:

Eles queriam que eu fosse a Monza testar o seu carro de Fórmula 2”, começa por recordar. “Isso foi mais do que um sonho. Quer dizer, eu era agricultor [na fazenda da família] entre as corridas, sonhando que talvez um dia eu pudesse correr com um dos melhores carros. Mas nunca pensei que dirigiria pela Ferrari. Lá estava eu ​​em Monza no final da manhã e agora é o grande momento. De alguma forma, era solitário. Eu estava acostumado com meu próprio mecânico estando comigo, e o Coronel [seu padrasto, Bernard Hender] não estava lá. Mas eu me lembro tão bem da sensação deste carro vermelho brilhante, o cheiro do estofamento, os botões que prendem o assento na cabine, a alavanca da caixa de velocidades aberta, o emblema no volante.”, continua.

Eu conhecia a pista - tinha lá corrido na Formula 3 - e guiei o mais rápido que podia. O motor não era tão bom; não tão bom quanto o de Cosworth. Você tinha que mantê-lo realmente forte. Se você diminuísse as rotações, não haveria potência e torque suficiente. O Cosworth tinha mais potência a baixa [rotação]. Mas eu fui em frente e no final do dia o Signore Gozzi disse: ‘Gostaríamos que você corresse por nós’. Era como se fosse uma ordem, de alguma forma.

Eles me colocaram no hotel Real Fini, ao lado da fábrica. Nunca gostei muito da minha própria companhia, mas fui em frente, pedi uma refeição e descobri uma coisa fantástica chamada tortellini. Foi tão bom - eu nunca vou esquecer - e eu não estava dirigindo no dia seguinte, então me sentei no bar e tomei uma taça de vinho com uma senhora com um vestido curto. De qualquer forma, no dia seguinte eu deveria encontrar Enzo Ferrari, então fui para a cama sozinho, perguntando-me se estava no meu caminho para [um carro de] Grand Prix.

Fui recebido pelo secretário, um homem naquela época. Foi dito que a Signora Ferrari estava, na melhor das hipóteses, indiferente à ideia de ter meninas no escritório do Velho. Era estranho, o lugar inteiro estava deserto, a fábrica e a oficina de corrida totalmente vazias; em silêncio. Disseram-me que era feriado nacional. Numa quarta-feira? Acontece que eles estavam em greve, o que não era incomum naquela época."

Ficamos entre os carros, todas essas lindas Ferraris vermelhas nas suas plataformas de produção. De repente, o próprio homem dobrou a esquina, a capa de chuva verde-clara pendurada nos ombros; óculos escuros e o corte de cabelo perfeito - ele acabara de ir ao barbeiro. Eu estava nervoso”, sorriu. “Eu não estava tão confiante na época. Um rápido aperto de mão e vamos almoçar no Cavallino. Ele me perguntou se eu avaliei Jochen Rindt. Eu disse que sim, disse. Conversamos com seu intérprete e então era hora de ir. Sem contrato, mas ele queria que eu corresse por ele: simplesmente inacreditável.”, concluiu.

Contudo, o contrato causou tensões na família. A sua mãe chegou até a impedi-lo de entrar na sua casa, a sua mulher ficou doente, com o stress causado por correr pela Scuderia - a sua má reputação em relação ao destino de muitos pilotos era bem forte - mas os resultados na pista eram bons. E no final do ano, teve a sua chance de guiar num Formula 1, e depois de um teste positivo, à chuva, com o Velho a ver, iria ter a sua estreia em Monza, ao lado de Jacky Ickx e Chris Amon. 

Sobre a sua estreia, disse que aquilo que mais marcou foi a multidão.

Os tifosi agarrados às árvores, aos tapumes, a qualquer coisa que pudessem escalar, e todos gritando pela vitória da Ferrari. Uau, que atmosfera. Qualifiquei-me bem, fiz uma boa largada e estava razoavelmente feliz até que a bomba de combustível quebrou. Isso estava ficando difícil. Eu queria mais sucesso, queria fazer muito melhor e almejava mais alto. Eu estava voltando para as boxes quando [Chris] Amon voou para fora da estrada nas Lesmos, pulou a barreira e desapareceu na floresta. Eu queria ir ver se ele estava bem e ao mesmo tempo não queria olhar, mas não consegui atravessar a pista de qualquer maneira. Então Chris simplesmente apareceu, saindo das árvores, abalado, mas vivo.” Ainda fez mais uma corrida, em Watkins Glen, em substituição de um lesionado Jacky Ickx, mas acabou por desistir com um motor partido.

Correu nas Tasman Series, na Austrália, ao lado de Amon, e um pouco na Formula 2, mas a meio de 1969, a Scuderia decidiu abandonar o seu programa na competição, afirmando que os seus carros eram pouco competitivos. Decidiram concentrar-se na Endurance, e ele ficou sem lugar para correr, acabando por acabar a temporada de Formula 2 a correr para Frank Williams.

No ano seguinte, quando correu os 1000 km de Spa-Fracochamps num modelo 512 inscrito pelo Jacques Swaters, o importador da Ferrari para a Bélgica, as suas prestações foram tais que a Scuderia qui-lo para para correr oficialmente nas 24 Horas de Le Mans. Swaters não o queria libertar, mas uma ameaça da Ferrari de não fornecer mais material o convenceu a cedê-lo para aquela que viria a ser a sua estreia na maior prova de Endurance. Ao lado de Ronnie Peterson, andaram bem, mas ao fim de 39 voltas, o motor explodiu em plena Mulsanne. Iria ser a primeira de 26 particopações, acabando por ser o britânico mais vitorioso na prova francesa.

Talvez o meu querido amigo Ken Tyrrell estivesse certo quando me disse, há muitos anos, que ir para a Ferrari foi o maior erro que já cometi. John Wyer disse a mesma coisa para mim quando eu tive que recusar correr no GT40 em 1969, pois o Velho não me liberaria do meu contrato. ‘Eles vão arruinar sua carreira, meu velho’, ele me disse naquele tom grandioso. Mas eu não tinha nenhum outro lugar para ir no momento. E foi além de um sonho.

No final, Bell pode dever à Ferrari as suas grandes estreias, quer na Formula 1, quer na Endurance. Mas foi com a Mirage, depois a Porsche, que alcançou a glória. Agora vive na Florida durante metade do ano, sendo um embaixador da Bentley e gerindo uma concessionário da marca, e muitos afirmando que o seu carácter continua em forma, mesmo tendo alcançando agora uma idade venerável. Parabéns! 

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