domingo, 1 de maio de 2011

Ayrton Senna e o modelo que o meu avô seguisse

É muito raro misturar automobilismo com as minhas crenças pessoais e passá-las para um sitio tão público como este blog, mas vai haver momentos em que isto irá acontecer. Há boas razões para isso: sou timido por natureza e não me expando perante desconhecidos. Perfiro observar as pessoas primeiro e depois é que começo a falar. Faz parte da minha natureza. E mesmo assim, exprimir as minhas emoções ou aquilo que está no fundo da minha alma, ou colocar algo que considero como fazendo parte do meu patromónio pessoal, do qual não partilho com qualquer um, isso não faço. Até não ficaria admirado se alguém me considere como frio e distante...

Mas como disse, há dias excepcionais, e hoje é um deles. Começo por falar do dia 21 de abril de 1985. Era domingo, tinha nove anos de idade, e via da minha janela a chuva que caia incessantemente. A 130 quilómetros dali, no Estoril, o cenário era o mesmo, mas ali ocorria o GP de Portugal de Formula 1, segunda prova do campeonato desse ano. A televisão estava ligada e estava sentado diante dela, vendo a corrida com o meu pai e o meu avô. Chamava-se Tomás e tinha na altura 69 anos. Tinha vivido muito, em vários paises e continentes. Tinha sido policia, depois agente comercial e um ávido pescador desportivo. Ainda tenho em casa alguns dos troféus que ele ganhou, enormes, e que resistiram ás várias viagens intercontinentais que fizeram, primeiro de Angola para o Brasil, e depois de Brasil para Portugal.

Naquele dia, via a corrida à chuva, na televisão. Os mais velhos assistiam espantado aos feitos de Senna, que naquela Lotus negra e dourada de uma marca de cigarros, fazia vida negra aos outros, dando um avanço excepcional e uma lição de condução à concorrência. Na altura não sabia, mas ele tinha feito algo semelhante quase um ano antes quando - também á chuva - tinha quase ganho o GP do Mónaco com um Toleman-Hart inferior às máquinas da frente como os Ferrari e os McLaren.

No final da corrida, o meu avô dizia-me, certamente entusiasmado por aquilo que tinha visto, o seguinte: "A partir de agora tens que apoia-lo. Ele é o teu patricio!" Ao dizer-me tal coisa, e sabendo aquilo que era e onde nasci, queria que o apoiasse, pois ele tinha visto um grande prodigio na pista, ao nivel de Juan Manuel Fangio.

Ele gostava de ver corridas, como eu, especialmente depois de ter ficado viuvo e ter vivido na casa dos meus pais. Todos nós o adoravamos, pela sua personalidade bem humorada. Via as corridas muitas vezes ao seu lado, e foi com ele que vi a partida do GP do Japão de 1990, onde a corrida, como sabem, acabou na primeira curva quando o brasileiro bateu em Alain Prost para ter a certeza que iria ser campeão do mundo. Depois, estava ao seu lado no dia em que em 1992, estavamos a ver o final do GP do Mónaco. Pensava que iria ser mais do mesmo, mas os planos sairam um pouco furados. Nigel Mansell teve problemas com uma porca e cedeu a liderança a Ayrton Senna. De repente, do quase torpor passamos à exaltação.

Considero o meu avô um dos meus heróis particulares. Por aquilo que viveu, pela amizade e carinho que nós partilhavamos, pelo fato de se ter importado de mim e feito as perguntas que nem o mau pai, nem a minha mãe, faziam enquanto eu passava pelos anos de adolescência, que são sempre complicados, com otodos nós sabemos. Sabia que se importava comigo e fazia o seu melhor para seguir os seus conselhos, nem sempre dava certo, mas fazia o seu melhor.

Naquela velhice, sabia como me incentivar nos estudos, por exemplo. Nunca tinha sido um aluno excepcional, mas sempre se esforçava o suficiente para dar o meu melhor. Tinha matérias em que era bom: História, Geografia, Inglês, mas no resto não fedia nem cheirava. As coisas modificaram um pouco na Universidade, mas na altura era assim. Ele mostrava-me o exemplo de preserverança dele para que eu servisse como modelo para a minha superação pessoal. Sabia ir ao ponto e convencer-me. E dava resultado, pois foi aí que descobri que o sucesso é o resultado de muito trabalho, e que os sacrificios inciais dariam lugar, no final a uma bela recompensa.

Mas por essa altura, já estava doente. Desde que ficara viuvo, não passava um ano sem que fosse internado no hospital durante algumas semanas devido a pneumonia. Sabia e tinha consciência do fim, apesar de nós - eu e o meu irmão - o incentivermos a lutar, pois afinal ele fazia o mesmo a nós- Mas não deu. Acabou por morrer a 7 de fevereiro de 1993, aos 76 anos.

De uma certa maneira, o fato de ele ter ido pouco mais de 14 meses antes dos eventos de Imola, poupou-o de um enorme desgosto que sentia que iria acontecer. Quase dois meses apos a sua morte, era Domingo de Pascoa e via na televisão, numa casa cheia de parentes, o GP da Europa em Donington Park. Vi a tal primeira volta de Senna, onde o ser humano conseguiu superar as máquinas e passar cinco carros numa volta, num asfalto algo molhado e jogando naquelas condições, demonstrando todo o seu talento. Tenho pena que ele não estivesse vivo para ver aquele dia, pois acho que teria aplaudido de pé tal movimento.

Em jeito de conclusão, costuma-se dizer que os mais velhos nos transmitem valores aos mais novos. Basicamente tenho de agradecer ao meu avô Tomas por me ter despertado algo que tinha em mim, o fascinio pelo automobilismo. E de me ter mostrado o seu herói automobilistico, aquele que o fazia levantar da cadeira e me transmitir aquilo que ele era. E quando me perguntava, na inocência da infância, a razão pelo qual tinha de o apoiar, não era por causa de termos nascido no mesmo solo, com dezasseis anos de diferença: porque ele era simplesmente fabuloso e deveria ser o meu modelo a seguir na vida.

De uma certa maneira, foi.

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