Falei por estes dias sobre Pierre "Levegh" na semana das 24 Horas de Le Mans, 70 anos depois do seu acidente mortal. Mas hoje quero falar sobre a corrida propriamente dita, de como afetou o automobilismo, e se houve algum momento em que o automobilismo esteve em perigo... foi este.
Em 1955, o automobilismo estava num auge. Marcas como Ferrari, Lancia, Maserati, Aston Martin, Mercedes, Jaguar, entre outros, participavam naquilo que era uma das mais prestigiadas corridas de automobilismo do ano, na Europa, a par do GP do Mónaco, das Mille Miglia ou da Targa Florio, entre outros. A Mercedes, claro, estava desde há cinco anos a recuperar o seu prestígio no automobilismo, reerguendo-se, como a Alemanha Ocidental, uma década depois desta ter acabado em ruínas.
E era liderado por alguém que inventou o seu lugar: Alfred Neubauer. Os seus pilotos, fossem alemães, como Karl Kling ou Hans Hermann, ou estrangeiros, como Stirling Moss ou Juan Manuel Fangio, eram dos melhores e mostravam-se, como tinha acontecido a Moss, quando ganhou nas Mille Miglia, um reduto italiano cheio de Ferraris, Lancias e Alfa Romeos, entre outros.
E ganhar as 24 Horas de Le Mans, era outro troféu que valia a pena, e também faria o ano automobilístico para as marcas.
A Ferrari estava em rescaldo. Não podia apostar em todos os cavalos, e estava sempre no limite da solubilidade. Tanto que a Lancia, muito ambiciosa, não aguentou o acidente mortal de Alberto Ascari, duas semanas antes, e decidiu entregar a sua equipa de Formula 1, seus chassis e motores, e um piloto como Eugenio Castelotti, a Maranello, esperando que usasse melhor, enquanto Gianni Lancia tentasse manter a marca â tona. Mas mesmo assim, apareceria em Le Mans, com os seus pilotos: Eugenio Castelotti, Umberto Magioli, Paolo Marzotto e os americanos Harry Schell e Phil Hill.
A Jaguar estava em melhor estado. Tinha o seu maior trunfo. E não era em termos de pilotos, mas sim de tecnologia: os travões de disco. A tecnologia vinha da II Guerra Mundial, quando foram colocados nos aviões de caça e bombardeiros, para ajudar melhor a travar nas pistas de relva e outras superfícies. Transportado para os automóveis, conseguiam ser eficazes.
Em contraste, a Mercedes tinha os seus 300 SL, pilotos como Moss, Fangio, Hermann, Levegh, e gente como o americano John Fitch, que tinha corrido no inicio da década com os carros construídos por Briggs Cunningham. Tinham uma espécie de asa que trabalhava de forma hidráulica, e serviam de auxiliar à travagem nas retas.
Havia mais marcas inglesas presentes, como a Austin-Healey, e as francesas, mas elas tinham quase nenhumas chances de lutar pela geral.
Regressando à Jaguar, o seu melhor piloto era Mike Hawthorn. Então com 26 anos, tinha ganho no inicio do ano as 12 Horas de Sebring, ao lado de Briggs Cunninngham, e ia a caminho da vitória no Tourist Trophy, na Irlanda do Norte, quando o motor do seu Jaguar falhou e foi passado por... Moss. Em Le Mans, ele corria com um estreante, Ivor Bueb, enquanto nos outros dois Jaguares, um tinha a dupla Duncan Hamilton e Tony Rolt, e no outro carro, Don Beauman e Norman Dewis, o piloto oficial de testes da marca.
Aliás, não era só Jaguar e Austin-Healy presentes. Na realidade, estavam 27 carros britânicos inscritos nessa edição, e três deles eram Aston Martins, também equipados com os travões de disco que a Jaguar tinha. Um dos carros iria ser guiado pela dupla Peter Collins e o belga Paul Frére. Até existia um Lotus 9 inscrito, e iria ser guiado pelo escocês Ron Flockhart... e por Colin Chapman!
Nos treinos, os Ferrari andaram bem, com Castelloti a fazer o melhor tempo, um segundo na frente do melhor Mercedes, o de Fangio. Enquanto isso acontecia, houve alguns sustos, especialmente com Moss, que se acidentou com o DB-Panhard, que na altura era guiado por Jean Behra. Este ficou ferido e foi substituído por Robert Manzon.
Na reta, Elie Bayol feriu-se quando capotou o seu Gordini, ao evitar alguns espectadores que atravessavam a pista. E muitos começaram a preocupar-se com a segurança, embora todos quisessem correr a fundo, no espírito do automobilismo. E claro, quando eles foram a correr para os seus carros, às 4 da tarde de sábado, 11 de junho de 1955, estavam mais concentrados na corrida que nos incidentes dos treinos.
E foram mesmo a fundo, especialmente no duelo Mercedes-Jaguar. Apesar de Castelloti a ser o primeiro, e manter essa posição na chegada à ponte Dunlop, os outros estavam mesmo atrás. E quem estava a recuperar posição atrás de posição era Fangio, que se atrasara na partida por causa... das suas calças, que tinham ficado presas na alavanca da caixa de vewlocidades do seu Mercedes. Mas com o passar das horas, apanhava e passava os pilotos mais lentos. Até lá, quem fazia espetáculo em nome dos carros alemães era Moss, que perseguia Hawthorn. Nas primeiras duas horas, o recorde da volta caira sete segundos, entre ambos os pilotos, ficando o recorde com Hawthorn.
Castelotti cometeu um erro na entrada da Maison Blanche no inicio da segunda hora e caiu algumas posições, enquanto via os da frente irem embora.
Pelas 18:30, estavam previstos os primeiros reabastecimentos. Era às alturas da volta 35, e Hawthorn mantinha a liderança, deixando os Mercedes para trás. Ao pé deles circulavam o veterano Levegh, e Fangio, que recuperava os lugares que tinha perdido. Hawthorn passava Lance Mackin, piloto da Austin-Healey, quando das boxes da Jaguar, avisaram da altura de reabastecer. Hawthorn, que corria com os seus Jaguares com travões de disco, trava em cima do Austin e assusta-se, metando-se no caminho do Mercedes de Levegh. Ele, que momentos antes, tinha avisado Fangio da confusão que via na sua frente, não teve tempo de se desviar, catapultou-se e cai na tribuna cheia de espectadores, matando-se e mais 80 pessoas. O facto do seu carro ser feito de magnésio, um material altamente inflamável, ajudou a alimentar as chamas.
Os organizadores, perante a catástrofe que viam na sua frente, decidiram que a prova deveria prossegur-se. Por uma razão prática: queriam as estradas livres para que as ambulâncias pudessem circular sem interferência. As estradas da região, em 1955, ainda eram estreitas, e achariam que interromper a corrida poderia prejudicar as operações de socorro. Nesse dia, estavam cerca de 200 mil pessoas, vindas da cidade e arredores, e as autoridades acharam que tinham escolhido o mal menor.
Hawthorn abasteceu e prosseguiu a corrida, agora, determinado a apanhar os Mercedes, que iam na frente. Entretanto, nas boxes, John Fitch, o piloto que fazia dupla com Levegh naquela corrida, começou a pedir a Neubauer para que retirasse a equipa da corrida, por causa da catástrofe e da perda de um dos seus pilotos. O velho Neubauer acedeu, mas não tinha esse poder: quem tinha era a sede, em Estugarda. E eles, nesse momento, estavam reunidos de emergência para decidir o que fazer. E as memórias da Ocupação e da II Guerra ainda estavam frescas - tinham passado dez anos - logo, a decisão de retirar os carros foi aprovada. Eles telefonaram para Neubauer pela meia-noite, mas eles decidiu que iria ser a meio da noite, quando muitos dormiam, e quando corriam em primeiro e terceiro na geral.
Hawthorn herdou o comando, e o segundo lugar ficou nas mãos de outro Jaguar, o de Tony Rolt e Duncan Hamilton. Mas estes tinham problemas com a caixa de velocidades, numa altura em que começou a chover. Eles aguentaram até às 8 da manhã, quando este cedeu e a sua corrida acabou por ali. A essa hora, na Catedral de Le Mans, começava uma missa em tributo aos espectadores mortos da corrida.
A chuva tinha amainado quando foi mostrada a bandeira de xadrez para Hawthorn e Bueb. Tinham um avanço de cinco voltas para o Aston Martin de Peter Collins e Paul Frére, e onze sobre o outro Jaguar, este privado - da belga Ecurie Francochamps - dos belgas Jacques Swaters e Johnny Claes. Hawthorn mostrava felicidade pela vitória, mas não tinha consciência do que tinha causado inadvertidamente no dia anterior. Quando as fotografias de felicidade foram mostradas nos jornais e revistas, caiu mal na opinião pública. Um jornal francês, o L'Auto-Journal, escreveu como título "À Sua, Mr. Hawthorn!", como sinal de desprezo, criticando a sua alegada indiferença pela tragédia ocorrida. Na realidade, ele estava mentalmente devastado por tudo o que tinha acontecido. Mas nessa altura, o mal estava feito.
O público exigia medidas sérias para proteger os espectadores, e se isso implicasse a proibição das corridas de automóveis, melhor.
E se alguma vez o automobilismo esteve perto da sua proibição, foi no final daquela primavera.