sábado, 11 de julho de 2015

Quando o motociclismo ia além da Cortina de Ferro (Parte 1)

Normalmente não falo sobre motociclismo por aqui - aliás, ele é sempre um assunto menor neste blog - mas há ocasiões onde a coisa é demasiado boa para deixar escapar. No fim de semana do GP da Alemanha de motociclismo, não quero deixar de falar de uma das suas catedrais, o circuito de Sachsenring, e um evento que faz hoje 44 anos que foi marcante, num tempo em que a Guerra Fria estava quente, e onde a Alemanha estava fragmentada e a reunificação era um sonho que passava no subconsciente das pessoas.

Ao contrário da Formula 1, cuja visita ao outro lado da Cortina de Ferro aconteceu apenas em 1986, numa Hungria que já abraçava um "socialismo à húngara", com alguma propriedade privada, no motociclismo, as visitas ao outro lado aconteciam bem antes. Em 1961, o campeonato do mundo visitava pela primeira vez a Alemanha do Leste, exatamente o mesmo ano em que se levantava... o Muro de Berlim. Quatro anos mais tarde, em 1965, o calendário iria acolher o Grande Prémio da Checolsováquia, numa versão do Masaryk Circuit, em Brno. Mais quatro anos se passariam até que a caravana da MotoGP fosse à Jugoslávia.

Contudo, já havia corridas bem antes: Sachenring existia desde 1927, primeiro como um circuito de rua, e depois como circuito permanente. Era ali que acontecia o GP da Alemanha, bem antes da II Guerra Mundial. Com o final do conflito, a zona caiu na área soviética, e dezanove anos depois, e já com a fundação da República Democrática da Alemanha, começaram a haver corridas no circuito. O primeiro grande vencedor foi Ernst Degner.

PARTE 1 - O PILOTO DO OUTRO LADO DO MURO

Degner, nascido em 1931 na atual Gliwicie, na Polónia, e orfão aos 15 anos - seu pai morreu antes da guerra e a sua mãe pouco depois do final do conflito - licenciou-se em engenharia no Instituto de Tecnologia de Postsdam em 1950, tendo pouco tempo depois começado a guiar em motos,  feitos por um amigo seu, Daniel Zimmerman. Essas motos de 125 cc começaram a bater as máquinas do estado, as MZ (Motorradwerk Zschopau, ou fábrica de motos de Zschopau, em português) que eram fabricadas na antiga fábrica da DKW, em Zwickau. Com o tempo, a marca notou as qualidades de Degner e o contratou.

Em 1956, Degner era piloto da fábrica, mas esse contrato só aconteceu depois de ter exigido que a sua namorada, Gerda Bastian, fosse empregada. Walter Kaaden, o o seu diretor desportivo, tinha conseguido encontrar uma técnica que permitia expandir as câmaras de combustão, permitindo colocar mais gasolina nos motores de dois tempos e ser mais eficaz. Depois de vitórias no campeonato alemão de 125cc, a MZ entrava no Mundial de motociclismo, na mesma categoria, começavam a surgir as primeiras vitórias. Em 1961, Degner era vice-campeão na categoria de 125cc, com vitórias em casa... e na Alemanha Ocidental, bem como no Troféu das Nações, em Monza.

Contudo, por esta altura, o Muro de Berlim já tinha sido erguido, e viajar para os países ocidentais era uma tarefa bastante dura. E quer ele, quer a sua familia - tinha-se casado com Bastian e já tinha tido um filho - estavam com vontade de fugir para o Ocidente. E assim elaborou-se um plano de fuga, bastante arriscado nesses dias. O plano era simples: a família iria com ele para assistir ao GP da Suécia, em Kristiansand, e no regresso iriam separados para a fronteira alemã ocidental. E Degner tinha outro motivo para irem separadamente: ele era mais uma vez candidato ao título, na classe 125cc.

Para isso, precisava de ficar na frente do seu rival, o Honda do britânico Tom Phillis. Tudo parecia indicar que isso iria acontecer, mas o seu motor falhou nas primeiras voltas e viu o seu rival ser sexto, mas não o suficiente para alcançar o título. Depois da corrida, pegou no seu Wartburg e fez uma viagem que só parou na fronteira franco-alemã, onde ele se reuniu com a sua família, sã e salva.

A deserção de Degner causou um fernesim na MZ, que acusou-o de ter sabotado o seu motor, e tentou impedi-lo de competir na corrida final, na Argentina, onde já tinha arranjado moto e uma licença da Alemanha Ocidental. As autoridades apresentaram uma queixa à FIM (Federation Internationale du Motociclisme) e este conseguiu impedir Degner de alinhar em Buenos Aires. Assim, Phillis alcançou o título, mas no final de 1961, a FIM, depois de ver o motor do seu MZ, chegou à conclusão de que a quebra do motor tinha sido acidental.

Imediatamente, Degner foi contratado pela japonesa Suzuki e foi morar para o país do Sol Nascente, onde no ano seguinte, conseguiu ser campeão na classe de 50cc, graças aos seus conhecimentos de mecânica, que ajudaram melhorar os motores nipónicos ao ponto de lhes dar o seu primeiro título. Contudo, no final de 1963, Degner sofreu um grave acidente durante o GP do Japão, quando guiava a moto de 250cc. No impacto, o tanque de combustivel abriu-se e explodiu, causando-lhe graves queimaduras no seu corpo. Levou mais de 50 enxertos na pele, mas recuperou para correr até 1966, vencendo em mais quatro corridas, incluindo em Dunrod, em 1965, na classe de 125cc. 

PARTE 2 - UM ALEMÃO INCONVENIENTE

Quem olhasse para o calendário motociclistico de 1970, este mostrava que das doze provas existentes, três aconteceriam do outro lado da Cortina de Ferro. A viagem começava a 24 de maio, quando iam a Opatija para correrem no GP da Jugoslávia. Depois, a 11 de julho, rumavam para Sachenring, para correrem o Grande Prémio da Alemanha do Leste, e na semana a seguir estavam em Brno para a corrida checa. Interessantemente, a corrida inaugural dessa temporada acontecia no lado ocidental da Alemanha, mais concretamente no Nordschleife.

Eram seis as classes que estavam presentes: 50cc, 125cc, 250cc, 350cc, 500cc e 500cc em sidecar. E nessa altura, já dominavam as lendas do motociclismo, como Giacomo Agostini, nos 500, e o espanhol Angel Nieto, nos 50 e 125cc.

Na classe 250cc dominava um alemão, Dieter Braun. Então com 27 anos de idade (nascera a 2 de fevereiro de 1943), tinha começado a correr em 1968 com... MZ, motos vindas do outro lado do muro. Tinha começado na classe 125cc, mas saltava para as 250, também conseguindo bons resultados. Em 1970 fez isso com uma Suzuki e ganhou as quatro primeiras corridas dessa temporada, acabando como campeão do mundo de 125cc, ao mesmo tempo que corria também com motos de 250 e 350cc.

Em 1971, Braun corria em três classes: 125cc com a Maico, uma fabricante alemã, e com a Yamaha nas 250 e 350cc. Nas 250cc, a sua temporada estava bastante melhor, com várias subidas ao pódio, mas faltava a vitória. E em Sachenring, a 11 de julho, essa vitória surgiu.

Por essa altura, as autoridades alemãs orientais usavam as corridas motociclisticas como um espelho do seu país perante o mundo, um dos poucos que este tinha. Era das poucas coisas desportivas do qual o Ocidente poderia vir e competir de igual para igual com os pilotos do Leste europeu, e a politica, como seria óbvio, não fazia parte. Mas naquele dia, as coisas ficaram fora de mão: é que até então, nenhum alemão ocidental tinha vencido por ali. Aliás, era normal os alemães ocidentais evitarem ir ao lado oriental, para evitar embaraços.

Mas naquele dia, não havia como evitar. Quando tocou o hino alemão, o público levantou-se e cantou-o em unissono, quase como que uma manifestação de rebeldia contra as autoridades vigentes, e de uma certa forma, um desejo de uma futura reunificação. Estes ficaram envergonhados e decidiram, que a partir dali, só poderiam aceder por convite. Em 1973, a FIM retirou a corrida alemã oriental do calendário e as motos só voltariam ao Sachenring em 1998, após a reunificação.

Quanto a Braun, ele ainda viria a vencer mais um título, em 1973, de 250cc, pela Yamaha, e correria até 1977, quando sofreu um grave acidente durante o GP da Austria, no Salzburgring.

(continua amanhã)  

1 comentário:

João Carlos Viana disse...

Só algumas correções na bela história de Ernst Degner.
1 - Tom Phillis era australiano.
2 - A deserção de Degner foi um pouco mais elaborada e contou com apoio total da Suzuki, incluindo fornecendo o carro que o piloto alemão usou para fugir.
3 - O abandono de Degner na Suécia foi proposital. Tanto, que ele deixou a moto no outro lado dos pits, longe dos olhos da MZ. E próximo do carro com os homens da Suzuki.
4 - A MZ tinha um motor revolucionário e Degner não apenas levou sua família, como também a moto MZ no porta-malas do carro em que fugiu.
5 - Com a Suzuki inspirada na MZ, Degner venceu o campeonato.
6 - As curvas antes do grampo em Suzuka se chamam em Degner. Mesmo o alemão sendo ligado a Suzuki e a pista ser da Honda.
7 - Até hoje a morte de Ernst Degner ainda é um mistério, onde se fala até mesmo em assassinato por parte da Stasi, ainda vingança pela deserção em 1961.
8 - Parabéns pelo aniversário Paulo!