quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Uma voz isolada a favor de um boicote

Os tempos são maus para a democracia, isso andamos a ver. Vai haver um recuo nos próximos tempos, agora que os populismos são os rebeldes de hoje, para acercar e tomar o poder. E ainda por cima são "rebeldes de direita", que acham que todas as conquistas sociais são uma ameaça, principalmente por parte do "branco machista", que vê a sua posição de "privilégio" ameaçada.

Mas isso muitas das vezes acontece porque o outro lado resolve ser cínico. O cinismo... não precisamos de ler Nicolau Maquiavel para entender a sua razão. Apenas as pessoas detestam outros que dizem uma coisa e depois fazem outra, como que a enganar papalvos. E como as pessoas se sentem enganadas, têm a tendência de votar naqueles que passam a ideia que comigo, só haverá uma palavra. Sabemos que não é assim, mas há quem acredita na mensagem.

Digo isto por causa dos tempos que correm, e não só por causa do Brasil. Por estes dias se fala do assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi, que se encontrava exilado nos Estados Unidos e no dia 2 de outubro, foi atraído a uma armadilha no consulado saudita de Istambul, acabando por ser morto às ordens de Mohammed bin Salman, o principe herdeiro da coroa saudita. De uma certa forma, bin Salman tem andado a passar a ideia de reformador, para abrir o país ao mundo e deixar de passar a ideia de que é um país que reprime os seus dissidentes. O mundo ocidental acreditou, tanto que Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Alemanha, entre outros, assinaram contratos nultimilionários para as suas forças armadas. A máscara caiu, com este assassinato.

E se calhar com isso, pode ser que o resto do mundo olhe com atenção o que se passa no Yemen, onde desde 2015 o regime combate os rebeldes houtis, que são apoiados pelo Irão. Essa guerra já causou fome e cólera entre a população, e mais de dez mil pessoas já morreram às mãos de ambos os lados, sem final à vista. 

O mais interessante no meio disto tudo é que por estes dias está a acontecer uma conferência internacional em Riad, com aquilo que chamam de "Davos no Deserto". Os ocidentais retiraram-se, desde empresas como a Apple e a Microsoft, até ao FMI e o Banco Mundial, passando pelo Secretário do Tesouro americano, Steve Mnuchin. Ficaram apenas os russos e os chineses, que lá querem saber dos direitos humanos. Mas os negócios mantêm-se intactos, especialmente o das armas. 

E é no meio disto tudo que encontro com o artigo do Pedro Henrique Marum, do brasileiro Grande Prêmio, que fala sobre a ideia de um boicote da Formula E a Riad, a capital saudita. A corrida será dentro de mês e meio, a 15 de dezembro. A Formula E está na mó de cima, isso é certo: oito construtores, grelha alargada para 22 carros, os carros novos prometem muito, os patrocinadores acorrem a ela como se fossem batatas quentes. Contudo, esta corrida, que seria algo inédito naquele país (nem a Formula 1 esteve aí!) deve ir adiante, porque... o automobilismo é feito de dinheiro e pragmatismo, não de ideologias.

Alejandro Agag aprendeu muito com os melhores, como Bernie Ecclestone. Escuso de dizer sobre as polémicas que ele se envolveu ao longo dos 40 anos em que controlou a Formula 1, quando eles iam à África do Sul em pleno regime do "apartheid", ou em 2011, quando queriam ir ao Bahrein, mesmo no meio da agitação da Primavera Árabe. Só mexeriam em caso de "force majeure", ou seja, quando os tanques ou os AK-47 estivessem na pista, apontando para o público ou aos pilotos. 

O apelo é interessante, mas cortar com isso semanas antes da abertura do campeonato parece ser um pouco tarde demais. Pelo menos por este ano. É que o contrato tem a inusitada duração de dez anos e lhes dá o poder de veto sobre pistas no Médio Oriente. E ainda por cima, a Saudia, a companhia aérea local, é parceira da Formula E. Pelo contrato, uma corrida no Qatar, por exemplo, está fora de questão, por causa das brigas que ambos os países estão a ter neste momento. Estão a ver Agag a denunciar um acordo destes, tão longo e provavelmente tão generoso? Não este ano, tenho a certeza.

O que é triste. Quando vemos que as pessoas colocam o dinheiro na frente dos valores, é para ver até que ponto as pessoas estão dispostas a ir nesse campo. Contudo, esta é uma competição cheia de marcas, e provavelmente, poderá ser que pressionem Agag para que mude de ideias. Não este ano, mas no futuro.

Protestar por isto? Sim, se queremos ser coerentes. Mas na grande engrenagem das coisas, ninguém quer saber da cor que mancham as notas de dólar, euro ou libra. Não interessam se tem cor preta ou vermelha, se cheira a sangue ou a petróleo. O que interessa é que é válido, entrou na conta e vamos cumprir a nossa parte. É uma tempestade e já passa. Contudo, nestes tempos que correm, talvez o cinismo ocidental não chega para passar um pano sobe estes embaraços. Mesmo Donald Trump, o presidente americano, e que andou por estas semanas a condenar o regime saudita, desde que não colocasse em causa o contrato de armas multimilionário que assinou no ano passado, parece já ter largado até essa parte. Não sei se trata da sua estratégia de caos organizado ou se fartou dele, mas a ideia de reformista aos olhos do Ocidente parece ter acabado. 

Em suma... com tristeza minha, não acredito no boicote neste ano. A voz do Pedro Henrique, por agora, é isolada. Mas o futuro pode ser diferente, dependendo de como as coisas se desenrolarem. Agag nesse campo não pode ser Ecclestone, sob pena de sair prejudicado.

Nota: Na primeira versão, o autor deste artigo identificou Victor Martins como o autor do artigo no Grande Prêmio quando na verdade era o Pedro Henrique Marum. Aos visados, as minhas desculpas pelo erro.   

Sem comentários: