terça-feira, 19 de novembro de 2019

Ford Versus Ferrari - A verdade por trás do filme (parte 8)

(continuação do episódio anterior)


"THE SHOWDOWN"


E por fim, chegou a altura que ambas as equipas esperavam. As 24 Hotas de Le Mans de 1966, marcado para o fim de semana de 17 e 18 de junho, tinha colocado todos ao rubro por causa do duelo entre ambas as equipas, anunciado nos jornais por semanas e meses a fio. Para melhorar as coisas, na Ford, soube-se que o patrão estaria em Le Mans para dar a partida à corrida, a convite da organização.

A Ford parecia sentir-se confiante, mas... nem tanto. Apesar de ter uma armada de GT40 na competição, com os carros oficiais, inscritos como Shelby-American, e os carros inscritos pela Holman-Moody, também tinham GT40 inscritos por privados como os da Essex Wire, da britânica Alan Mann Racing, da Ford France e da canadiana Comstock Racing. Ao todo, eram quinze os carros inscritos.

Do lado oficial estavam três carros, uma para Ken Miles e Dennis Hulme, da Nova Zelândia, que substituia Lloyd Ruby, que tinha sofrido um acidente aéreo e fraturado a coluna, ficando fora de combate por algum tempo. Ambos teriam o número 1, enquanto o carro numero 2 ia para outros dois neozelandeses, Bruce McLaren e Chris Amon. Um terceiro carro estava na posse dos americanos Dan Gurney e Jerry Grant, este último a substituir A.J. Foyt, que se tinha acidentado dias antes numa corrida da USAC. Na Holman -Moody, estavam outros três carros, para os americanos Ronnie Bucknum e Dick Hutcherson, outro para Mário Andretti e o belga Lucien Bianchi, e o terceiro para o americano Mark Donohue e o australiano Paul Hawkins.

Do lado da Alan Mann Racing, dois carros estavam inscritos para os britânicos Graham Hill e Brian Miur, e para John Withmore e o australiano Frank Gardner. Na Ford France estavam o francês Guy Ligier e o americano Bob Grossman, e na Essex Wire estavam dois carros, um para o belga Jacky Ickx - na sua primeira participação na corrida onde iria vencer por cinco vezes - e o alemão Jochen Neerspach, e o outro para Peter Revson e Skip Scott. Por fim, na Comstock Racing estava o escocês Innes Ireland e o austríaco Jochen Rindt.

Do lado da Ferrari, já se sabia que a Scuderia levava o modelo 330P3, com um motor de 4 litros capaz de produzir cerca de 420 cavalos, do qual esperavam poder conter a ameaça da Ford. Oficialmente, só havia dois carros, um para a dupla John Surtees e Ludovico Scarfiotti, e outra para Lorenzo Bandini e o francês Jean Guichet. Um terceiro chassis, de cockpit aberto, ia para a NART, a North American Racing Team, e seria guiado pelo americano Richie Ginther e o mexicano Pedro Rodriguez.

Outros chassis da Ferrari também estavam presentes, desde um P2 modificado, também inscrito pela NART e corrido por Masten Gregory e Bob Bondurant, um P2 Spyder, inscrito pela britânica Maranello Concessionaries, para os britânicos Richard Attwood e David Piper, e os P2/P3 híbridos, um deles inscrito pela Scuderia Fillipinetti, para o belga Willy Mairesse e o suíço Herbert Muller.

Mais marcas estavam presentes, como a Porsche, que estreava o 906 de 2 litros, e a Matra, que tinha construido o M620, com um motor BRM de dois litros, e tinha três carros, quase todos para pilotos franceses (Jean-Pierre Beltoise, Johnny Servoz-Gavin, Henri Pescarolo, Jean Pierre Jassauld e Jo Schlesser, mais o galês Alan Rees, que mais tarde seria famoso por ser um dos fundadores quer da March, quer depois da Arrows.

E no final, um GT estava a fazer uma discreta entrada: o francês Jacques Dewes, numa inscrição privada, trouxe um Porsche 911S com dois litros e 160 cavalos, naquela que viria a ser a primeira aparição deste modelo na corrida de La Sarthe.


A PRIMEIRA BAIXA


No lado da Ferrari, o carro prometia, mas as tensões no seu seio tinham virado grandes problemas. Não em termos de mecânica ou de chassis, mas em termos humanos. Desde há algum tempo que as tensões entre Eugenio Dragoni e John Surtees tinham virado hostilidade. Nem quando Surtees venceu em Spa, uma semana antes, Dragoni não tinha deixado de criticar por este ter esperado por atacar na última volta, depois de andar o tempo todo atrás do Cooper de Rindt, poupando nos pneus e no motor. Mas mesmo assim, decidira que Surtees iria fazer o primeiro turno da corrida. A ideia era eles serem os "lebres" para que os Ford fossem atrás e quebrassem pelo caminho, como nos anos anteriores, e era isso que tinha combinado com ele.

Contudo, Dragoni, sem avisar, mudou os planos na semana das 24 Horas. A ordem dos pilotos era agora Ludovico Scarfiotti em primeiro lugar. E a razão era familiar: o presidente da Fiat, Gianni Agnelli - que também era o tio de Ludovico - iria visitar o circuito. Na altura, Ferrari estava a negociar com Agnelli a compra de parte da equipa, nas condições que Ferrari queria, e colocar o sobrinho no carro oficial, em posição de destaque, poderia ajudar nessas negociações. E claro, com a hostilidade do britânico, era como matar dois coelhos num tiro só.

Quando Surtees soube disso, ficou lívido e decidiu ir ter com Dragoni e tirar satisfações.

"O acidente quase fatal, a pressão que o regresso às corridas colocara sobre o seu casamento, a politica feroz e de apunhalamentos nas costas. Ainda pior: Dragoni tinha feito um espalhafato por Pat, a mulher de Surtees, se sentar na boxe. Pat Surtees sempre registara os tempos por volta do marido. Corriam rumores de que um dos engenheiros da Ferrari se andava a atirar a ela, e Dragoni dizia que distraía. A atirar-se à mulher dele enquanto estava na pista a arriscar a vida! Seria verdade? Quem podia fazer? Toda a fúria fervilhante que sentia canalizou-se para aquele único momento.

Encontrou Dragoni.

- Porque é que o nome do Scarfiotti está pintado no carro?

- Talvez não estejas suficientemente capaz - respondeu Dragoni.

Seguidamente, acrescentou:

- John, não és tu que vai começar, é o Scarfiotti.
- Porque? - perguntou Surtees, exasperado. - Isto vai contra toda a filosofia! Vai contra o que dissemos ser necessário para vencer!

. O senhor Agnelli esta aqui - disse Dragoni - Está aqui para a partida. Quero que o senhor Agnelli veja o sobrinho Scarfiotti.
- O Ludovico não vai conseguir baralhar os Ford na parte inicial da corrida. Temo aqui uma estratégia!
Aparentemente, a estratégia tinha mudado.

- Além disso - disse Dragoni - pensamos que deixando o Ludovico começar te facilitamos a vida. Talvez estejas cansado.

Percebeu o que estava por trás de tudo aquilo. Como patrão da Fiat, Agnelli era o homem com quem Enzo Ferrari andava a negociar uma aliança estratégica e diplomaticamente ficava bem se visse o sobrinho começar a corrida. E acreditava que Dragoni tinha os seus próprios motivos. Surtees e o companheiro de equipa Mike Parkes eram ambos ingleses. Dragoni queria um italiano na equipa deles para que os britânicos não ficassem com o crédito todo se ganhassem.

Surtees entrincheirou-se. Desencadeou uma discussão ruidosa, que terminou com Dragoni a impor um ultimato. Se Surtees não gostava do cenário, podia ir-se embora.

- Sou o homem mais rapido desta equipa - respondeu ele. O que quer que esteja por trás disto, não é o melhor interesse da equipa. A principal tarefa é bater a Ford e ganhar a corrida. Estou farto de ver os meus esforços para a vitória constantemente sabotados por decisões que não fazem sentido. Por isso, bem podes esquecer-me!
"

A.J. Baime, Como uma Bala, pgs. 259-260

Surtees não se afastou muito das boxes. Falou com a imprensa, colocando o seu lado dos factos, e Shelby até lhe ofereceu um lugar na sua equipa, caso quisesse. Ele recusou, mas também decidiu que tinha de falar com Enzo Ferrari para que ouvisse a sua versão. No final do dia, pegou no carro e decidiu fazer toda a viagem sem parar até Maranello para conversar com o Commendatore. No final, ele ficou do lado de Dragoni e Surtees decidiu abandonar a equipa. Era o final de uma era, e a Ferrari teve de refazer as suas duplas: Scarfiotti iria correr com Parkes.


"VAI COMO UMA BALA!"


Nos treinos, a Ford dominava, com os quatro primeiros lugares. O melhor tinha sido Dan Gurney, com 3.30,6, 1,1 segundos superior a Miles, enquanto duas posições mais atrás estava o carro de McLaren e Amon. O melhor Ferrari estava na casa de 3.33. No dia da corrida, 350 mil pessoas aglomeravam-se ao longo da pista de 14 mil metros para ver o espetáculo maior da Endurance, uma das melhores corridas do mundo.

Na hora anterior à partida, o tempo estava instável. Tinha chovido suficiente para que os pneus fossem trocados à pressa, porque o chão estava molhado. Mas tudo estava pronto quando Henry Ford II marchou para o centro da pista com a bandeira francesa na mão, pronto para dar o sinal de partida. Quando o fez, os pilotos correram para os seus carros e partiram ruidosamente para 24 horas frenéticas. A Ford ficava com as três primeiras posições, com Hill na frente de Gurney e Bucknum. Parkes era quarto, seguido por outros Ford, enquanto Ken Miles teve de parar na segunda volta para fazer reparações na sua porta, danificada devido a uma colisão com o Ford de John Whiemore. Quando voltou, batia recordes atrás de recordes de volta, tentando recuperar o tempo perdido: no final da primeira hora, tinha feito 3.34,3 e era terceiro classificado, numa corrida liderada por Dan Gurney.

Se Gurney liderava e Miles recuperava, atrás, McLaren tinha problemas com os pneus da Firestone, que estavam a desfazer-se à medida que alcançava os 355 km/hora na Mulsanne. No final da terceira hora, enquanto Miles baixava o tempo para 3.31,9, a uma média de 228,554 km/hora, o piloto neozelandês queixava-se a Shelby que sentia os Firestone a desfazerem-se no asfalto das Hunaudriéres. Quando viu que os Goodyear não tinham problemas, perguntou a Shelby se poderia trocar de marca.

"- Vocês é que sabem, pessoal - disse Shelby - têm contrato com a Firestone, mas nós temos uma série de Goodyears por aqui."

Atrasado, McLaren passou o carro para Amon e disse-lhe, frustrado: "vai como uma bala!". O seu compatriota assim o fez e à medida que o tempo passava, e os pneus Goodyear eram melhores, eles recuperavam posições. No final da quarta hora, os Ford ocupavam quatro das cinco primeiras posições, com Miles a chegar à liderança antes de passar o carro para Hulme, com o único intruso a ser o Ferrari NART de Pedro Rodriguez.

Às oito da noite, novo aguaceiro aparecia em Le Mans, numa altura em que havia um duelo entre Miles e Gurney, com Rodriguez não muito atrás, pois a chuva fazia igualar as potências de ambos os carros. A chuva aumentou nas horas seguintes, e os Ferrari estavam na frente, com Ginther, parceiro de Rodriguez, em primeiro e Parkes em segundo. Os Ford tinham mexido nos travões, para evitar sobreaquecimentos demasiado cedo, e estavam atrasados, com McLaren a uma volta dos líderes. Miles, de novo ao volante depois de trocar com Hulme, voltava à pista a fazer tempos na casa dos 3.39, debaixo de chuva, e ignorava os apelos da boxe para ir mais devagar. 

(continua)

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