sábado, 29 de fevereiro de 2020

A imagem do dia

É raro ouvir "A Portuguesa" fora do país, em eventos desportivos. Ainda hoje pagamos as décadas de menosprezo que o Estado deu ao desporto, excepto o futebol. Sou de uma geração onde ir a um Europeu ou Mundial de Futebol era um feito, quanto mais vencê-lo. Aos meus amigos estrangeiros: se vos disser que o hino nacional de Portugal só foi tocado por quatro vezes nus Jogos Olímpicos, acreditam? Sim, é verdade o que vos digo.

Logo, no automobilismo, e tirando o facto de termos recebido a Formula 1 e sermos palco de um dos clássicos do Mundial de Ralis, só por uma vez é que um dos nossos subiu ao lugar mais alto do pódio numa prova destas. E foi em casa, num dos mais infames ralis da história do WRC, a edição de 1986, onde os pilotos de fábrica boicotaram a prova após o acidente da Lagoa Azul, deixando o caminho livre para que Joaquim Moutinho chegasse à meta como vencedor. 

Estão a ver o Tiago Monteiro, naquele dia, em Indianápolis? Para nós, isso não nos é "virgem".

Assim sendo, ver António Félix da Costa vencer com categoria uma prova de Formula E e sair de Marrakesh com a liderança do campeonato, com concorrência a sério e sem ser por "default" é algo muito, mas muito raro. Quase único, até. E isso deve ser saboreado. Por muitas razões.

A primeira é que este é um mundial essencialmente com equipas de fábrica, logo, eles querem talento e não dinheiro, como é agora a Formula 1, onde as equipas privadas, para sobreviver, "vendem" lugares à melhor oferta. É uma verdade insofismável.

A segunda é que, tendo ele um carro à sua altura, e numa competição igual, consegue superar o seu companheiro de equipa. E toda a gente sabe que o primeiro oponente é o seu companheiro de equipa. Ainda por cima, quando esse companheiro se chama Jean-Eric Vergne e é o atual bicampeão da competição, e o piloto que ajudou a colocar a Techeetah no lugar onde está, contra o seu maior rival que é a BMW Andretti e a Jaguar. Ironicamente, a BMW Andretti está onde está no campeonato deste ano graças a... António Félix da Costa, que ajudou a desenvolver o carro nas últimas duas épocas, e na temporada passada conseguiu quatro pódios e uma vitória na ronda saudita.

E a terceira porque repõe uma injustiça. Ele deveria ter ganho a corrida de 2019 se não tivesse cometido um erro que desperdiçou 25 pontos para o campeonato, numa altura em que ele liderava depois da vitória na Arábia Saudita. Uma segunda vitória ou um segundo pódio seguido poderia ter dado melhores armas para encarar esse campeonato. Hoje, essa injustiça foi resposta, irónicamente, contra um carro da BMW.

É ótimo chegar às cinco corridas do campeonato e vê-lo na liderança. Mas ainda nem chegamos a meio. Cinco vencedores diferentes em cinco corridas mostra todo este equilíbrio - chamem-o artificial, chamem o que quiser - e a última ronda é como a primeira: uma jornada dupla, são 50 pontos em jogo. E um mau fim de semana é o suficiente para dar um tombo no campeonato. Logo, a consistência é a chave. Tem carro, inteligência e sobretudo, sangue-frio. Não é ele o pressionado, agora ele é o pressionador. E se fizer tudo bem, conseguirá algo raro e merecedor na sua carreira: ser campeão. 

E se conseguir, poderá escrever uma página de ouro no automobilismo português. E esta tarde, ouvir "A Portuguesa" fez-me arrancar um sorriso e pensar que fazemos parte da civilização.

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