sábado, 30 de novembro de 2019

A imagem do dia

Algures no verão de 1984, Ayrton Senna ouve Domingos Piedade sobre um assunto que não deve ser lá muito bom. E pego essa altura por causa de algumas das coisas que ambos fizeram juntos, e um grande sarilho no qual ele esteve evolvido.

A primeira coisa que se deve dizer é que a sua chance de correr num carro de Endurance deve-se a Domingos Piedade. Foi nos 1000 km de Nurburgring, em 1984, pouco depois da Joest ter vencido as 24 Horas de Le Mans com Karl Ludwig e Henri Pescarolo. Ali, Senna fez um turno com o próprio Pescarolo e o sueco Stefan Johansson. Ele afirmou mais tarde que nunca gostou muito da experiência, mas Domingos disse algo diferente:

"O seu comportamento com o Porsche 956 da minha equipa foi exuberante, divino. Depois de sete voltas ao volante de um carro que lhe dera totalmente desconhecido, numa categoria nova para ele, Ayrton alcançou todo o mundo na pista e nas 65 voltas em que pilotou o carro da New Man foi simplesmente o mais rápido em pista, batendo senhores como Bellof, Mass, Ickx, Bell, Pescarolo, Winkelhock, Boutsen, Wollek, Patrese e outros.", contou, anos depois, na biografia sobre Senna escrita pelo Francisco Santos.

Contudo, pouco tempo depois, Senna envolveu-se uma complicação. Sem conhecimento da chefia da Toleman, começou a negociar com a transferência para a Lotus. Peter Warr estava enfeitiçado pelas suas performances na Formula 1 e na Formula 3, no ano anterior, e conseguiu fazer com que fosse para a Lotus em 1985, no lugar de Nigel Mansell. O acordo foi anunciado no fim de semana do GP da Holanda, mas Alex Hawkridge, aparentemente, foi o último a saber. E ele ficou furioso. Decidiu castigá-lo, não o colocando no carro no GP de Itália, em Monza, onde no seu lugar foi... Stefan Johansson, que foi quarto com o carro.

Em Monza, Senna via tudo nos bastidores, altamente frustrado com tudo o que se passava, e Domingos acompanhava-o para ver se mantinha a cabeça fria com todo o rebuliço à volta. Sem poder competir, chegou a fazer comentário do fim de semana italiano por uma televisão - desconheço qual - e os conselhos que ele deu fizeram-o pensar se ele não queria ser seu empresário. Domingos Piedade, que tinha a tarefa de ser o "manager" de Michele Alboreto, mais os seus afazeres na Joest, recusou. Mas não deixaram de ser amigos até ao final de vida do brasileiro, dez anos depois.

Domingos Piedade não foi um português normal. Viveu trinta anos na Alemanha, participou em duas vitórias nas 24 horas de Le Mans, aconselhou e ajudou pilotos portugueses no estrangeiro, ajudou na Copersucar-Fittipaldi, foi manager de Michele Alboreto e do próprio Emerson Fittipaldi, chegou a ser um dos diretores da AMG, e no final da carreira, foi ser o diretor do Autódromo do Estoril, onde ajudou a trazer a MotoGP para Portugal, com sucesso. Conheceu Michael Schumacher quando ele era um mero mecânico num kartódromo em Kerpen, perto da fronteira com a Bélgica, porque era amigo dos seus filhos. Como conhecera Senna, ainda ele andava no kart.

E sempre que podia, comentava Grandes Prémios com Adriano Cerqueira e José Pinto, nos anos 80, e com João Carlos Costa e Jorge Alexandre Lopes, nos anos 90 e no inicio do século. A sua voz pausada e algo arrastada, a contar estórias de bastidores, ficou nos ouvidos dos amantes de automobilismo neste retângulo à beira-mar plantado.

Morreu hoje aos 75 anos, e estava doente havia algum tempo. Fica um legado nada pequeno. Ars lunga, vita brevis.

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