sábado, 10 de setembro de 2016

Aquilo que a Liberty Media vai ter de lidar a partir de agora

A venda da Formula 1 para a Liberty Media foi anunciada e referenciada por todo o lado, quer dentro da imprensa especializada, quer na imprensa generalista. Ver o negócio da Formula 1 ser vendido por um valor próximo dos oito mil milhões de dólares - embora não tenham dito os detalhes complexos do negócio, que incluem assumir as dívida de mais de três mil milhões de dólares da Formula 1 à CVC Capital Partners, por exemplo - é um grande negócio por estes dias, algo do qual John Malone estará certamente satisfeito, depois de cerca de ano e meio de negociações entre ambas as partes.

Vai haver um presidente da Formula 1, o vice-presidente executivo da Fox, Chase Carey, de 62 anos e que faz parecer com o primo bigodudo do Jon Stewart, e Carey já disse que está feliz com esta situação:

"Estou muito feliz em assumir o papel de chairman da Fórmula 1 e ter a oportunidade de trabalhar ao lado de Bernie Ecclestone, CVC, e da equipe Liberty Media. Admiro muito a Fórmula 1 como uma franquia de entretenimento único de desporto, que em termos globais, atrai centenas de milhões de fãs a cada temporada pelo mundo inteiro. Vejo uma grande oportunidade de ajudar a Fórmula 1 a continuar a desenvolver e prosperar em benefício do desporto, fãs, equipes e dos investidores", afirmou.

A própria Liberty Media já disse que irá trabalhar em quatro áreas dos quais afirma existir uma "deficiência": a promoção da Formula 1 como marca, a melhora na distribuição do conteúdo, especialmente no online (e redes sociais), arranjar novos patrocinadores, desenvolver o calendário de corridas e novos eventos no sentido de arranjar mais fontes de receitas. A própria Liberty Media afirma que nos próximos dez anos, estima ganhar cerca de 9,3 mil milhões de dólares em receitas.

Contudo, todas estas boas intenções colidem com as imensas perguntas que todos fazem neste momento, desde a colocação da Formula 1 na NASDAQ, o índice tecnológico da Bolsa de Nova Iorque, até ao papel de personagens como Bernie Ecclestone e do Grupo de Estratégia, bem como a negociação do calendário e dos futuros Acordos de Concórdia. É tudo muito engraçado ao ver a Liberty Media dizer que quer ter um papel mais interventivo, mas a politica da formula 1 ao longo deste tempo todo é o de ser absolutamente opaco nos seus acordos e nos seus negócios. Pensem bem: porque é que acham que até agora, eles não estão cotados em Bolsa?

É verdade que há planos mais urgentes, por agora. As redes sociais são um grande buraco do qual Bernie Ecclestone nunca quis lidar com isso. Ora lidava com desdém, e fazia caso disso através dos seus "papagaios" na imprensa, ora lidava com hostilidade. Ao invés, outras competições abraçavam-na, com a Formula E a tomar o plano mais radical, quando inventaram a figura do "fanboost". Aí, eles farão as coisas de forma melhor do que fazem agora, apesar da Formula 1 já ter aberto às redes sociais, especialmente este ano, quando a página da Formula 1 apareceu no Twitter e Facebook. Isso e novos patrocinadores, são algo do qual eles poderão lidar de imediato, especialmente quando no ano que vêm, ficarem com o resto do capital vendido pela CVC Capital Partners.

É verdade que a visão americana das coisas será bem mais animada do que a de Bernie Ecclestone. Vai ser bem mais moderna, bem mais atual. Bernie sempre assentou as coisas em duas permissas: as receitas televisivas e aquilo que os países pagavam para ter a Formula 1. Em média, cada país paga cerca de 20 milhões de dólares para ter uma corrida no calendário, com os países do Golfo a pagarem cerca de 60 milhões para tê-los, por exemplo, como corridas de abertura ou de final de campeonato. E às vezes... nem isso.

Contudo, a Liberty Media, John Malone, Chase Carey e outros novatos neste meio vão ter de lidar com uma corporação que é bem mais complexa do que aparenta. Lidar com os interesses das equipas, reunidas no Grupo de Estratégia, com cada um a querer a sua parte do bolo, lidar com um grupo de pessoas que se conhece há mais de 40 anos, desde pilotos, ex-pilotos, diretores de equipa, que passaram toda a sua vida adulta nisto, e que viram a Formula 1 crescer tanto e ficar rica e próspera ao ponto de todos viverem numa bolha, sem ver o mundo à sua volta e muitas vezes serem politicamente incorretos.

E quando for a altura, lidar com o que vai ser "o elefante na sala": a Formula 1 pós-Bernie, e o Acordo da Concórdia, assinado em 1981 e renovado desde sempre, cujos detalhes estão no segredo dos deuses. Por agora, a Liberty Media decidiu que vai manter Bernie por mais três anos, até ao final da década, quando ele chegar aos 89 anos... se lá chegar. E há uma boa razão de ser: a negociação e assinatura de um novo Acordo, que entrará em vigor em 2020. E provavelmente, nessa altura - se Bernie estiver vivo - ele talvez goze a reforma no seu cafezal do interior de São Paulo...

Mas para além de lidar com um sucessor para ele - já se ouviu desde Niki Lauda até a Alejandro Agag - há outras coisas que a Liberty Media vai ter de encarar: a relação com a FIA e as investigações da União Europeia. Jean Todt já disse que apesar de não ter participado neste negócio, espera ter uma reunião com os novos proprietários para saber os planos futuros.
  
"Enquanto estamos ainda a ver como é que esta aquisição irá influenciar a promoção do campeonato de Fórmula 1, congratulamo-nos com este investimento a longo prazo na Fórmula 1 por uma empresa que tem um amplo portfólio [em termos] de desporto, media e empresas de entretenimento", começou por dizer Todt. 

"Como órgão regulador, reconhecemos a ampla experiência da Liberty Media nestes domínios e estamos ansiosos para trabalhar em estreita parceria com eles no futuro, a fim de desenvolver ainda mais a Fórmula 1 e trazê-lo para as novas gerações de entusiastas do desporto automóvel em todo o mundo", concluiu.

O mais interessante deste acordo - e do qual pouco ou nada se sabia - era que a FIA detêm desde 2013 um por cento das ações da Delta Topco, uma das clausulas que vem deste recente Acordo da Concórdia. Provavelmente, por causa dos conflitos de interesse, a FIA poderá ter de vender essa parcela, que dá todos os anos cerca de 40 milhões de dólares. Provavelmente, ou diretamente da Liberty Media, ou então mais tarde, quando a Formula 1 for à Bolsa de Nova Iorque, por exemplo. Mas tudo indica que essa parte não veio da CVC, mas sim de Bernie Ecclestone. E no acordo, os valores eram bem "amigáveis": 640 mil dólares!

No caso da União Europeia, as coisas são um pouco mais complicadas, mas a atitude é esta: eles não se querem meter em assuntos desportivos. Apesar de as equipas mais pequenas (Sauber e Force India, principalmente) terem colocado uma queixa em outubro de 2015 - há quase um ano - em Bruxelas, a União Europeia não tem tido muita rapidez em analisar o caso, apesar de a FIA ter dito que era impotente para lidar com os problemas de distribuição dos dinheiros da Formula 1, porque a maior parte dos lucros vai para as seis equipas que constituem o Grupo de Estratégia (Williams, Ferrari, Mercedes, McLaren, Red Bull e Lotus-Renault)  

É altamente provável que quando a Comissão Europeia tomar uma posição sobre o assunto, vai ser mais para multar a FIA pelos seus conflitos de interesses - o tal um por cento que detêm no negócio da Formula 1 - e pedir para que o Grupo de Estratégia resolva os seus assuntos em relação às equipas mais pequenas, redistribuindo os dinheiros entre si e resolvendo, por exemplo, o poder de veto que a Ferrari têm. Mas isso não acontecerá antes de negociarem um novo Acordo da Concórdia, e é provável que a sentença de Bruxelas possa aparecer quando todas as partes estarem a negociar os novos detalhes de um novo acordo. E provavelmente, poderá fazer com que as coisas sejam diferentes, pois vai ser a partir do ano que vêm que começam as negociações, e o acordo tem de estar pronto para entrar em vigor no final de 2019. 

Assim sendo, é um mundo complexo este que a Liberty Media vai entrar, a partir de agora. Nada que uma corporação não se tenha envolvido, mas a Formula 1, como galinha de ovos de ouro que é, e que tem uma projeção global, poderá ter de lidar com opiniões e filosofias diferentes, num tempo que seguramente será de transição.

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