sábado, 18 de fevereiro de 2023

A imagem do dia


Custa a crer, mas se ainda andasse entre nós, Enzo Ferrari estaria hoje em Maranello a comemorar os seus 125 anos. O "Commendatore", que foi piloto e fundou uma marca, marcando uma página no automobilismo mundial, foi sempre uma personagem ao mesmo tempo intimidadora e enigmática, do qual a sua "persona" ajudou imenso nesse mito. 

E em muitos aspectos, ele mesmo ajudou a consolidar esses mitos. Um exemplo? Não costumava entrar em elevadores. E não existia um motivo aparente, apenas porque... sim. 

Também não era muito de entrar em aviões. Era muito excepcional. Uma das poucas ocasiões em que fez isso foi por absoluta necessidade. Foi em 1982, para as negociações que deram origem ao primeiro Acordo da Concórdia. De resto, quase nunca saiu de Itália, e ia a Monza nas qualificações do GP de Itália, durante os anos 50 e 60, deixando de ir a partir do final dessa década. E não recordo de ter ido alguma ocasião a Imola. À medida que a idade avançava, ficava em Maranello e pouco mais. 

A relação com os pilotos era, no mínimo, complicada. Pressionava-os para ultrapassar os seus limites. Em alguns aspectos, ele é o responsável moral pelas mortes de pilotos como Eugenio Castelloti e Luigi Musso. O primeiro, porque exigiu que estivesse em Modena numa sessão de testes, quando estava em Milão. Guiou a noite inteira e quando chegou estava cansado, e pegou num carro que não era facilmente controlável. Os seus reflexos estavam afetados quando perdeu fatalmente o controlo do seu carro. No segundo caso, foi um pouco a puxar pelo seu orgulho, contra o lobby britânico de Mike Hawhtorn e Peter Collins. E ainda por cima, os rumores de que devia muito dinheiro devido às suas dívidas de jogo ajudaram no seu fim, em Reims, ajudaram nisso. 

Muitos anos depois, Dan Gurney disse que essas pressões suas eram suficientes para que largasse o seu lugar na sua equipa, em 1959. 

Para colocar pilotos uns contra os outros, Ferrari conseguia ser fantástico. 

Um dia, muitos anos depois do final da relação, John Surtees visitou o "Vecchio" e passaram um tempo agradável. No final, Ferrari disse a ele que o melhor é ficar com as coisas boas. E era verdade: o final da relação, em 1966, foi acrimoniosa, por causa dos favoritismos de Dragoni, o diretor desportivo, sobre Bandini, e de ele ter sido preterido de guiar o carro nas 24 horas de Le Mans desse ano. Surtees guiou uma noite inteira até Maranello, onde ambos discutiram e ele decidiu ir embora da Scuderia, com efeito imediato. E isso, semanas depois de ter ganho uma corrida à chuva em Spa-Francochamps, com a sua equipa na Formula 1. E muitos afirmam até hoje que foi essa tempestade que impediu Surtees de lutar por um segundo título mundial contra Jack Brabham.  

Bem vistas as coisas, a Ferrari é, se calhar, a equipa mais mortífera do automobilismo. Para terem um exemplo, a Lotus "só" matou seis pilotos em toda a sua história: Alan Stacey, Ricardo Rodriguez,  John Taylor, Jim Clark, Jochen Rindt e Ronnie Peterson. Isso, a Ferrari conseguiu... em 10 anos, entre 1957 e 67: Castelloti, Musso, Collins, Alfonso de Portago, Wolfgang von Trips e Lorenzo Bandini. E em duas ocasiões, com Portago (nas Mille Miglia) e von Trips (no GP de Itália), espectadores foram envolvidos e essas fatalidades causaram consternação e condenação. 

Mas também sempre se gabou de ter dado chances a desconhecidos, nos anos 60 e 70. Foi ele que deu a primeira chance a pilotos como os irmãos  Rodriguez, Clay Regazzoni, Ignazio Giunti, Arturo Merzario, e especialmente, Niki Lauda e Gilles Villeneuve. No primeiro caso, o austríaco era um piloto pagante na BRM, mas tinha a capacidade de mexer nos carros, torná-los melhores. E sabia guiar. Regazzoni, seu companheiro de equipa nessa equipa, recomendou-o e graças a isso, pagou-lhe o que devia aos bancos - quase 50 mil libras - deu-lhe um bom salário, e retribuiu com dois títulos mundiais. E quase acabou vitima dos seus carros, em Nurburgring, regressando 40 dias depois. Mas isso, como sabem, deu filme.

O que poucos sabem é, em 1977, depois de ter sido atacado na imprensa e de ter sentido que Ferrari lhe "tinha feito a cama", por causa de contratação de Carlos Reutemann, Lauda conseguiu ser suficientemente pragmático para conquistar o bicampeonato antes de Monza. Depois. largou a bomba, sem avisar ninguém: ia para a Brabham. Ferrari foi o primeiro a ser avisado, com o "fait accompli", o que - alegadamente - ele respondeu com um espontâneo "Ebreo!" (Judeu!) 

Mas logo a seguir, fez o mesmo com Villeneuve. Inscreveu-o como terceiro piloto em Mosport - a última ocasião onde Ferrari inscreveu três carros - e a sua velocidade e carisma foram suficientes para ficar na Scuderia e ganhar o coração dos fãs. Mas quando aconteceu Imola, em 1982, quando Didier Pironi levou a melhor, o rumo iria ser semelhante ao de Lauda, se o Destino não interviesse.

Em suma, ame-se ou deteste-se, Ferrari é uma personagem fascinante. Não admira que Hollywood queira fazer filmes sobre ele. Michael Mann andou no verão passado a fazer um "biopic" sobre ele, e outro sobre a sua rivalidade com Ferruchio Lamborghini também foi estreado neste outono passado. 

É uma pessoa do qual ninguém fica indiferente.   

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