quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Grand Prix (numero 88 - Na Catedral de Monza, IV)

Monza, 6 de Setembro de 1970.

Domingo era exactamente como Sábado: um dia limpo e claro. Em Monza, desde cedo estavam milhares de pessoas que queriam entrar no circuito para verem de qualquer maneira o Grande Prémio. E quando se dizia "de qualquer maneira", estavamos a falar de milhares de pessoas penruradas nas árvores, nos cartazes publicitários e nas redes de protecção, para poderem ver uma parte do circuito onde pudessem ver, de perferência, os carros vermelhos à frente da concorrência, num ano onde eles estavam na frente, lutando contra a francesa Matra e a nova concorrência vinda da Apollo, que começava a estar ombro a ombro com a Jordan e a BRM, com a McLaren na mó de baixo nesta temporada.

De manhãzinha, Teresa tinha saido da cama e descido para o átrio do hotel onde estavam hospedados. Já vira a banca dos jornais e o título de primeira página do jornal rosa "Gazzetta dello Sport": 'Beaufort é morto, Ferrari in pole-position', com algumas das fotografias do desastre nas páginas interiores. E como na "Gazzetta", os restantes jornais de Milão mostravam o mesmo assunto, com fotos mais ou menos macabras do piloto e do carro, apesar das tentativas dos carabibieri de afastar os demasiado curiosos. Mas quando o tinham levado do carro, ele tinha o capacete colocado, portanto nada se via, para alivio de muitos e decepção de muito poucos.

Ao se sentar na mesa para o pequeno-almoço, viu o seu namorado a desccer as escadas, com um ar abatido. Tentou esconder o jornal que tinha na mão, mas ele tinha topado e disse:

- Deixa-me adivinhar: está cheio de fotos.
- Acho que não devias ver isto...
- Já ando deprimido, portanto, ver isto não fará muito mais mal daquele que tenho agora. Dá cá o jornal.
- Espera, agora vejo eu o resto.
- Está bem, mas despacha-te. Há algum grande plano do cadáver?
- Não sejas sarcástico...
- Não estou a ser. Pelo que me contaram, teve morte imediata. O impacto com os rails foi tão forte que se não fosse o pescoço partido, teria se salvo com uma perna fraturada, e teria conquistado o titulo com gesso e canadianas. Teve um tremendo azar... mas ficou com um lindo cadáver.
- Não sejas deprimente. Era teu amigo!
- Pois era... ele queria ganhar isto e ir embora. Testou os limites e morreu. É este o preço a pagar? Começo a ter dúvidas sobre que treta é que ando a fazer.
- Queres sair?
- Não, somente acho demais ter quatro dos nossos mortos em três meses. Está a ser um ano horrivel, querida. Temos de fazer algo para estancar esta hemorragia, senão mais vale acabar tudo.

Alexandre suspirou fundo enquanto se servia de café negro, enquanto que Teresa acabava de ler o jornal. Algum tempo depois, o resto da equipa desceu ao átrio do hotel para tomar o pequeno almoço, antes de seguirem para o circuito, dali a minutos. Quando sairam, rumaram todos para lá, onde ouviam as emissões de rádio, que falavam sempre o GP de Itália e dos eventos do dia anterior, com o acidente mortal de Philippe de Beaufort. Por essa hora, o féretro de Beaufort era colocado na capela do Hospedale Comunale de Milano, onde estava algum pessoal da Matra, que ficara a velar o corpo.

Sabia-se que a maior parte do pessoal o iria velar mais logo, após a realização da corrida, que iriam fazer com um nó na garganta, pelos eventos e pela atmosfera entre eles, saturada de tanta morte naquele ano: McLaren, O'Hara, Ortega e agora Beaufort... alguns pensavam quando é que isto iria acabar?

--- XXX ---

Monza estava cheia que nem um ovo. As pessoas enchiam as bancadas, subiam às árvores, faziam buracos nas placas publicitárias, tentando ver a corrida sem pagar - e os locais chamavam a essa gente de 'portoghesi' - e desde o meio da manhã já passeavam no circuito. Muitos seguravam e faziam chapéus de papel com os jornais que tinham comprado naquela manhã, com as noticias sobre o acidente mortal de Philippe de Beaufort. Mas estavam ali para apoiar a Ferrari, que estavam em alta, e em particular Patrick Van Diemen, o "poleman" na pista mais rápida do ano.

Encostado aos guard-rails, e com o seu capacete ao seu lado, o piloto belga olhava para a azáfama que os mecânicos estavam à volta do seu carro. Olhava à sua volta e via toda a gente nas suas tarefas, e os espectadores estavam extasiados em ver os carros de Modena na fila da frente. O seu director Forgheri olhou-o, aproximaou-se e disse:

- Então?
- O carro está pronto?
- Está quase. Que pensas?
- O que tenho de fazer para ganhar o Mundial. Estamos a melhorar, mas temo que tenha sido muito tarde...
- As hipóteses são matemáticas, meu caro. Enquanto existirem, tens de tentar.
- Sim, dar tudo e vencer, em nome da Ferrari... tem de ser, afinal há um titulo para ganhar.
- É verdade. Se ganhares as próximas quatro corridas, serás o campeão.
- É uma tarefa enorme. O meu carro tem de ser indestrutível para isso acontecer.
- Deixa isso para nós. Tu tens de o guiar da melhor maneira que sabes.
- De facto... e "Il Vecchio", disse alguma coisa de ontem?
- Só nos deu os parabéns. Sobre o Beaufort, a mim, nada me disse.
- Estranha maneira de tratar alguém que correu com ele em 1966, nas 24 horas de Le Mans...
- Ganhas pela Ford, naquela chegada inesquecível.
- Mas isso é outra história. Ele tem razão, acima de tudo está a Ferrari. E se ganhar, será a Ferrari a vencer, e eu sou apenas o tipo que o guiou.
- Estás muito cínico hoje...
- Que queres? O meu rival está morto e tenho de lutar pelo título. Para mim - e agora que estamos só nós dois - é como bater em mortos. Mas como "Il Vecchio" me paga para correr, é isso que faço.

Van Diemen, levanta-se, pega no capacete, coloca-o na cabeça, calça as luvas e entra no carro já pronto para a largada, pois o sinal dos três minutos tinha sido mostrado. Um mecânico coloca o cinto de segurança de seis pontos e ele fica pronto para a partida. Quando o sinal de um minuto é mostrado, a grelha é evacuada e toda a gente fica atrás da linha branca, esperando que os carros liguem os motores e avançem da grelha provisória para a definitiva, esperando pelo comissário da corrida, que agitará a bandeira verde para dar a partida, dali a segundos. Quando o faz, o ruido da multidão é tão alta como o ruido que os motores fazem. E na frente estava o Ferrari de Van Diemen, com o BRM de Bob Turner logo atrás.

Tipicamente de Monza, os pilotos estavam colados, tentando passar aproveitando o vácuo dos cones de aspiração. Van Diemen estav a na frente no final da primeira volta, é certo, e a multidão aplaudia, mas já ao seu lado, o veterano turner mexia-se para ficar ao lado do belga e o ultrapassar, conseguindo-o na Curva Grande. Tentou afastar-se logo depois, mas não foi muito longe, pois Van diemen tentou passá-lo pela direita na travagem da Parabolica. Esperto, o veterano inglês conseguiu fechar a porta, frustrando a ultrapassagem, e fazendo mais uma volta na frent do pelotão. Metros mais adiante, ao iniciar a terceira volta, o BRM creme estava na frente de um comboio de carros vermelhos, liderados por Van Diemen, seguido por Bernardini e Guarini. Reinhardt, Solana, Medeiros e Monforte seguiam-no, em fila indiana, tentando aproveitar cada metro de ar, cada cavalo, cada quilómtetro por hora a mais para poder ser mais rápido que o outro que seguia na sua frente.

Nas voltas seguintes, Van Diemen e Turner trocavam a liderança por algumas vezes, começando a distanciar-se gradualmente do pelotão. Mas não muito mais do que um segundo de diferença. Na volta dez, o motor de Anders Gustafsson começava a trabalhar mal, com cinco cilindros em vez de seis, e perdia velocidade de ponta. Foi às boxes e logo a seguir saiu do carro, dando a sua corrida por terminada.

Na volta 17, os dois carros da frente estavam a chegar à Parabólica. Van Diemen tentava mais uma vez passar Turner, mas este tentava sempre fechar a porta. Mas naquela volta, Van Diemen tentou uma manobra diferente, por fora, para livrar do britânico. Conseguiu travar tarde e ficar ao lado dele, mas a meio da curva, viu que tinha cometido um erro. O carro começava a ir para fora da pista e a ir para a gravilha, e quando colcou as rodas da esquerda de fora, a sua ideia passou a ser de sobrevivência. Tinha de sair dali com o carro inteiro, se queria continuar.

Os segundo pareciam horas, mas quando conseguiu finalmente sair dali, acelerou no sentido de alcançar o BRM. Mas ao fazê-lo, sentiu o volante a fugir e um pedaço de borracha a voar. Tinha o pneu da frente/esquerda furado e tinha de o levar cuidadosamente para as boxes, para não danificar ainda mais o carro. À medida que o levava para lá, sabia que a tarefa tinha-se tornado ainda mais complicada, se queria acabar a corrida nos pontos e tentar fazer os pontos suficientes para apanhar um piloto morto havia 24 horas.

(continua)

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