(continuação do capitulo anterior)
QUANDO O AUTOMOBILISMO INFLUENCIA UM MOVIMENTO FILOSÓFICO
Em 1909, já se tinham passado quinze anos desde a realização da primeira corrida de sempre, e mais de vinte tinham acontecido desde o aparecimento do primeiro automóvel funcional. Em paralelo, o desenvolvimento da aviação fazia com que se estabelecessem desafios em relação à altitude e à distância, e também cumprisse o velho sonho do homem de voar acima das nuvens. Ambas as realizações, neste inicio do século XX, foram as mais recentes vanguardas que a industrialização tinha provocado, capturando a imaginação das pessoas e provocando uma lenta evolução das mentalidades.
Era já certo que por essa altura, as pessoas já tinham aceitado que a "carruagem sem cavalos" e o aparelho "mais pesado do que o ar" tinham chegado para ficar e iriam moldar o resto do século que aí vinha. E ambos, aliados ao desenvolvimento do desporto em geral (ciclismo e futebol em particular) e o renascimento dos Jogos Olímpicos, cuja primeira edição tinha acontecido em 1896, em Atenas, faziam com que se começasse a elaborar uma corrente de pensamento, uma filosofia que captasse o espirito da época, que ficou conhecida como "Le Belle Époque".
Assim sendo, uma primeira proposta surgiu a 20 de fevereiro de 1909, quando o jornal francês "Le Figaro" publicava nas suas páginas um texto vindo de Itália, de um editor, jornalista e escritor de 33 anos de Milão, de seu nome Filippo Tomaso Marinetti. Tendo como título "Manifesto Futurista", ali se propagava de forma provocatória para o seu tempo algumas propostas não só para a arte, mas também para todos os campos da vida. No Manifesto, Marinetti propunha uma clara ruptura com o passado e abraçasse inteiramente o presente:
1 - Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e destemor.
2 - A coragem, audácia, e revolta serão elementos essenciais da nossa poesia.
3 - A literatura exaltou a imobilidade muito pensativo, êxtase e sono. Temos a intenção de exaltar a ação agressiva, uma insónia febril, o ritmo da corrida, o salto mortal, o soco e tapa.
4 - Afirmamos que a magnificência do mundo foi enriquecida por uma nova beleza; a beleza da velocidade. Um carro de corrida cuja capota é adornada com grandes tubos como serpentes com respiração explosiva ... um carro que ruge, que parece correr na metralha é mais bonito do que a Vitória de Samotrácia.
5 - Queremos celebrar o homem na roda, o eixo ideal de que atravessa a terra, atirou-a, bem como, em sua órbita.
6 - O poeta deve esgotar a si mesmo com ardor, esplendor, e generosidade, para aumentar o fervor entusiástico dos elementos primordiais.
7 - Não há mais beleza, exceto na luta. Nenhum trabalho sem um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um ataque violento em forças desconhecidas, para reduzir e serem prostradas perante o homem.
8 - Estamos no promontório extremo dos séculos! ... Por que devemos olhar para trás, se queremos arrombar as portas misteriosas do impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já vivemos no absoluto, porque nós criamos eterna velocidade onipresente.
9 - Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutivo dos que trazem a liberdade, belas idéias vale a pena morrer, e o escarnecer da mulher.
10 - Queremos destruir os museus, bibliotecas, academias de todo tipo, e luta contra o moralismo, feminismo, toda covardia oportunista e utilitária.
11 - Nós cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer, e pelo tumulto cantar das marés multicoloridas, polifônicos da revolução nas capitais modernas; cantar do vibrante fervor noturno de arsenais e estaleiros em chamas com violentas luas elétricas; as estações ferroviárias glutões devorando serpentes fumadores; as fábricas penduradas nas nuvens pelos fios trançados de suas fumaças; como ginastas gigantes pontes que cruzam os rios, piscando ao sol com um brilho de facas; vapores aventureiros que farejam o horizonte, e amplas locomotivas, empinando sobre os trilhos, como cavalos enorme de aço freados por tubulações, e o voo de deslizamento de aviões cujos propulsores tagarelam no vento como faixas e parecem aplaudir como um público entusiasmado.
É da Itália que lançamos ao mundo que nosso manifesto de violência avassaladora e incendiária com quem mesclar o futuro hoje porque queremos libertar esta terra de sua gangrena fedorenta de professores, arqueólogos e antiquários. Já há muito tempo a Itália foi um mercado para os negociantes de segunda mão. Queremos libertá-la de muitos museus que cobrem todos os cemitérios.
A proposta era radical, revolucionária. Apesar de não ser explicito, havia ali todo um programa politico nacionalista total. A cultura da violência está presente, afirmando até serem favoráveis à guerra, uma guerra que já em 1909, estava nas mentes de muita gente como uma quase inevitabilidade, devido às tensões nacionalistas do qual o automobilismo ajudava a elevar.
Cedo, o apelo futurista teve os seus seguidores. Os pintores e escultores são os primeiros a aderir, como Umberto Boccioni, Carlo Carrá, Giacomo Balla, Gino Severini, em Itália, e a partir de 1910-11, surgem as primeiras pinturas referentes ao manifesto. A velocidade passa a ser um elemento central nessas pinturas, especialmente o automóvel. Um desses exemplos é a pintura de 1913 de Luigi Russolo, "Dinamismo de um Automóvel", vista no parágrafo acima.
Boccioni será outro importante personagem no futurismo. Para além de ser pintor, é também escultor, e tentará fazer nas suas obras a ideia de velocidade e aerodinamismo, sendo o melhor exemplo a escultura de 1912, "Formas Únicas de Continuidade no Espaço", que hoje em dia pode ser vistas nas moedas italianas de vinte cêntimos. A ideia de Boccioni - principalmente nas suas esculturas, é a de que não só mostraria às pessoas a ideia de uma energia constante, como também daria a ideia do controlo do Homem sobre a Natureza, do qual a aviação era o melhor exemplo, já que os aparelhos desafiavam muitas vezes a gravidade do ar.
Outros, fora de Itália, foram influenciados pela filosofia e pintura futurista, como os russos Vladimir Mayalovsky, Natalia Goncharova e Igor Severenianyn; o francês Marcel Duchamp e os portugueses Almada Negreiros e Amadeo de Souza Cardozo. Neste curto periodo de tempo, até 1914-15, o Futurismo cria um impacto dinâmico na arte e na literatura europeia, que será percursor de outros movimentos.
Quando ao automobilismo, este é um elemento essencial nesse manifesto, do qual o ponto quatro explicita isso. Para Marinetti, o automóvel é o simbolo dessa beleza da velocidade, e o automobilismo era uma forma superior, em paralelo com o ciclismo, e ambos eram relacionados com as ideias de superação, resistência e progresso, numa altura em que nas provas automobilísticas era frequente andarem a mais de cem quilómetros por hora. E os vários artistas não deixaram passar isso em claro: Balla, Russolo e até Souza-Cardoso colocaram o automóvel como tema central nas suas pinturas. Mesmo o próprio Marinetti não deixava passar isso em claro, quando em 1918 fez uma colagem com as palavras "record", "velocidade" e mais interessantemente, "pole", de pole-position, o primeiro lugar da grelha de partida de um evento automóvel.
Contudo, a filosofia futurista é um produto do seu tempo. A sua temporada mais intensiva irá acontecer até ao eclodir da I Guerra Mundial e a Revolução Soviética de 1917, onde a admiração pela violência e o incentivo à guerra como "única higiene do mundo" têm as suas consequências: Boccioni é mobilizado e morre em 1916, vítima de uma queda do cavalo, enquanto que na Rússia, os futuristas são absorvidos pela Revolução Bolchevique de 1917, enquanto que outros têm um destino mais trágico: Souza-Cardoso será uma das vitimas da Gripe Espanhola de 1918-19.
Apesar do futurismo continuar nas décadas seguintes, sobrevivendo aos cismas e às associações politicas (Marinetti e outros abraçarão o Fascismo nos anos 20), a temporada compreendida entre 1909 e 1915 vai ser a mais fértil e mais marcante.
(continua no próximo capitulo)
Apesar do futurismo continuar nas décadas seguintes, sobrevivendo aos cismas e às associações politicas (Marinetti e outros abraçarão o Fascismo nos anos 20), a temporada compreendida entre 1909 e 1915 vai ser a mais fértil e mais marcante.
(continua no próximo capitulo)
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