A competição é algo intrínseco ao ser humano. É mais do que sabido que em tempos da Antiguidade egípcia que havia carruagens puxados por dois cavalos, usados em batalhas, mas é apenas em termos da antiga Roma que essas carruagens eram usadas para competição, em corridas de bigas (com dois cavalos) e de quadrigas (com quatro). Mas no final do século XIX, com o aparecimento do automóvel, e numa sociedade onde a industrialização moldou a Europa e o mundo, tornou-se inevitável o aparecimento da competição automobilística, onde se juntou elementos como o desenvolvimento tecnológico, o surgimento da atividade desportiva como algo retemperador para o corpo e para a mente, e por fim, os orgulhos nacionais, aliados a um tempo onde o nacionalismo cavalgava triunfante numa Europa onde já se cavavam as rivalidades e já se acumulavam as tensões que dariam lugar à I Guerra Mundial, no verão de 1914.
Ao longo das próximas semanas falarei sobre este período de tempo, uma altura de pioneiros, onde muito daquilo que conhecemos hoje em dia sobre o automobilismo foi moldado, agora que estamos em 2014 e se aproximam duas datas históricas: o centenário do inicio da Guerra Mundial, e os 120 anos da primeira corrida automobilística conhecida da história, a competição que ligou as cidades francesas de Paris e Rouen. São vinte anos ricos em história e é nesse período de tempo em que a esmagadora maioria das marcas e dos lugares que conhecemos no mundo do automobilismo foram conhecidos, e irei recordar toda uma geração de heróis esquecidos, mas que motivaram personagens como Tazio Nuvolari e Antonio Ascari a correrem. De condes e nobres, de multimilionários e homens com visão e arrojo de futuro, que ajudaram a fazer o automobilismo aquilo que conhecemos hoje.
É certo e sabido que a primeira tentativa séria de uma "carruagem sem cavalos" data de 1769, quando o francês Nicolas-Joseph Cugnot construiu um carro a vapor, colocando uma gigante caldeira na frente dessa "carruagem", que o fazia mover a pouco mais de seis quilómetros por hora. Mas na realidade, o primeiro automóvel construído e que tivesse funcionado existiu um século antes, em 1672, quando o padre jesuita belga Ferdinand Verbeist, construiu um pequeno carro a vapor como brinquedo para o Imperador chinês da altura. Contudo, sendo um brinquedo, muitas vezes não consta nos manuais de História do automóvel.
Ao longo do século XIX, enquanto a industrialização avançava quer na Europa, quer nos Estados Unidos, esta sociedade começava a depender do vapor, um modelo de combustão que começou a ser usado no inicio do século XVIII, e aperfeiçoado pelo engenheiro escocês James Watt. No inicio de século XIX, graças aos feitos de inventores como Richard Trethwick e George Stephenson, o caminho de ferro foi desenvolvido no solo britânico, especialmente após a construção, em 1830, de uma linha de caminho de ferro viável, entre Liverpool e Manchester.
Mas à medida que o século XIX avançava, verificava-se que o caminho de ferro, que se expandia com sucesso por todo o mundo, não satisfazia as necessidades de toda a gente. Ao usar um carril desenhado e construído especificamente para esse feito, não preenchia a necessidade de uma "carruagem sem cavalos", e o motor a vapor não era suficientemente pequeno para que se pudesse viabilizar um meio de transporte que pudesse dispensar os cavalos. Na Grã-Bretanha, os desenvolvimento de um veículo de transporte sem cavalos que se pudesse deslocar numa estrada, em substituição das diligências, sofreu um forte abalo em 1865 quando é passado o "Locomotive Act", onde os carros a vapor eram obrigados a ir a um máximo de quatro quilómetros por hora e precedidos de um pessoa a pé, que sinalizaria uma bandeira vermelha. Isso fez atrasar em muito o desenvolvimento do automóvel no Reino Unido, e apenas em 1896 é que essa lei foi abolida, já o automóvel existia há cerca de dez anos.
Mas não se deixou de construir carros a vapor fora da Grã Bretanha.
Amédée Bolée é um deles, construindo carros desde 1873, na sua oficina de metalurgia na calma cidade de... Le Mans. Em 1875, constrói um veículo coletivo, o "Le Obeissante" (O Obediente), que faz o percurso entre Le Mans e Paris em 18 horas. Três anos depois, constroi o "La Mancelle", o primeiro carro com inovações como a tração traseira. E muitos consideram que foi o primeiro automóvel do mundo a ser construido em série, já que 50 deles foram construidos. E em 1881, constrói o "Le Rapide", que anda a uma estonteante velocidade de... 62 km/hora!
Contudo, por essa altura, já se começava a pensar noutras hipóteses de propulsão de uma "carruagem sem cavalos", graças ao desenvolvimento de vários tipos de motores, especialmente elétricos e com combustão interna. O primeiro motor de combustão interna é construido em 1807 por Claude e
Nicephore Niépce (um dos pioneiros da fotografia), mas o motor é instalado num barco. No mesmo ano, um suiço,
Framcois Isaac de Rivaz faz o seu próprio motor de combustão interna, misturando oxigénio com hidrogénio. Ambos os motores não são bem sucedidos comercialmente, mas isso não impede que ao longo desse século se tente construir um motor de combustão interna eficiente. Em 1881,
Gustave Trouvé demonstra um motor elétrico de três cilindros na Exposição Industrial de Paris, mas três anos antes, em 1878,
Karl Benz tinha começado a construir na Alemanha o seu motor interno.
Para Benz, a "carruagem sem cavalos" era uma obsessão que vinha desde os seus 15 anos de idade, em 1863. Com o passar dos anos, outros alemães também se debruçavam sobre esse problema, como
Wilhelm Maybach ou
Gottfried Daimler. Separadamente, construíam os seus motores de combustão interna, mas era Benz que estava mais adiantado: em 1883 tinha construído a sua própria companhia, e já construia protótipos viáveis. Mas Benz, perfeccionista, somente no inicio de 1886 é que está suficientemente confiante para registar a patente. Atribuída a 29 de janeiro de 1886, a 3 de julho, o primeiro automóvel era construído, na localidade de Mannheim. Era um triciclo.
A invenção foi um sucesso, mas Benz estava mais concentrado em desenvolver os seus carros do que comercializá-los. A primeira viagem entre duas cidades com um automóvel só aconteceu a 12 de agosto de 1888, quando Bertha Benz, mulher de Karl, levou os seus dois filhos numa viagem de 106 quilómetros entre Mannheim e Pforzheim. A viagem não foi anunciada a Karl, e Bertha parava em todo e qualquer farmácia e boticário para conseguir benzina, para abastecer o veículo. Bertha (que tinha investido a sua fortuna pessoal para viabilizar o sonho do seu marido) tinha faro comercial e sabia das potencialidades que uma "carruagem sem cavalos" poderia fazer. E tinha razão: o impacto da viagem e respectiva noticia fez com que se gerasse publicidade e demonstrando a viabilidade da invenção para viagens mais ou menos longas, e aparecesse um potencial rival para os caminhos de ferro.
A GRANDE CORRIDA
Apesar dos primeiros automóveis comerciáveis serem alemães, o primeiro país a acolher com entusiasmo a nova invenção foi a França. Aliás, foram os franceses os grandes dinamizadores da industria automóvel e do automobilismo em particular. E nessa altura, apareceram vários construtores, tentando mostrar os seus automóveis, movidos a vários tipos. O motor a vapor era popular, mas também havia automóveis a ar comprimido e elétricos. E com o tempo, começava-se a pensar num concurso onde todos esses automóveis pudessem medir forças e começar a destacar-se numa era onde outras invenções começavam a desenvolver-se, especialmente um em particular: a aviação.
Em 1888, Émile Roger tinha conseguido os direitos para importar e construir carros da Benz, e no ano seguinte,
René Panhard e
Émile Levassoir decidiram fazer a primeira marca de automóveis. Daimler e Maybach juntaram-se em 1890 para fazer a Daimler, e nos anos seguintes, imensas outras marcas surgiriam, entre elas a Peugeot. Todas elas demonstravam as suas virtudes perante um mercado crescentemente interessado nos automóveis. A explosão foi repentina e duradoira: em 1903, havia mais de 30 mil automóveis fabricados, só em França. Mas o grande fator que contribuiu para essa explosão tinha um nome: automobilismo, a competição entre "
carruagens sem cavalos".
Mal apareceram os automóveis, a ideia de competição entre eles surgiu naturalmente. Mas o grande impulso somente surgiu a 19 de dezembro de 1893, através do mais popular dos jornais de então em França: o "
Le Petit Journal". O seu diretor,
Pierre Giffard, decidiu que, tal como acontecera trinta anos antes com o "boom do ciclismo", que se deveria aproveitar para se fazer uma competição, apesar de Giffard dizer... o contrário.
A ideia era de promover os automóveis como sendo "
não perigosos, fáceis de guiar e baratos", e o vencedor seria "
o condutor que se mais se aproximasse desse ideal". A ideia expressa tinha um objetivo: evitava os condutores profissionais, os "chauffeurs". E dizia também outra coisa. "
Esta não é uma corrida". Mas havia um "prize money" bem elevado para aqueles dias: 10 mil francos em ouro, cinco mil dos quais atribuídos ao vencedor, dois mil para o segundo classificado, 1500 para o terceiro.
A ideia de uma corrida de automóveis podia totalmente ser nova, mas era uma formula já testada anteriormente. Desde o final dos anos 60 do século XIX que os jornais organizavam provas desportivas como forma de aumentar a circulação dos seus diários. Foi um jornal, o "
Le Velocipéde Ilustrée" que em novembro de 1869 teve a ideia de organizar uma corrida de bicicletas entre Paris e Rouen, e hoje em dia é considerado como o antepassado do "
Tour de France". Nos trinta anos seguintes, o ciclismo tornou-se numa modalidade tremendamente popular, com várias corridas entre cidades e tentativas mais ou menos solitárias de bater o recorde da hora em velódromos construídos para o efeito. Assim sendo, com o "Le Petit Journal" a promover um tipo de corrida diferente, o sucesso era garantido.
E a iniciativa do Le Petit Journal nem era inédita. Em 1887, a revista "Le Velocipéde Ilustrée" (
a mesma do Paris-Rouen em bicicleta) decide também promover uma corrida de automóveis, entre Neully e Versalhes, nos arredores de Paris, mas apenas aparece um carro: uma máquina a vapor conduzida pelo conde
Jules-Albert de Dion, um homem de origem nobre, mas um apaixonado pela mecânica e com um temperamento volátil.
Nascido a 9 de março de 1856, Jules-Albert de Dion interessou-se pela mecânica na sua juventude. Em 1881, viu um carro a vapor e quis construir o seu. Assim, fez uma encomenda a
Georges Bouton, um engenheiro que construía brinquedos científicos e ao seu cunhado
Georges Trépardoux, que sonhava em construir um carro a vapor.
Em 1883, os esforços dos três fizeram nascer a De Dion-Bouton, começando a construir motores a vapor para navios, mas em 1884 estão a construir carros. O sucesso é grande, e De Dion pensa em formas de comercializar os seus carros. Na iniciativa de 1887, De Dion fora o único a aparecer, mas completou o percurso determinado. Nos anos seguintes, os De Dion são comercializados e ganham reputação por serem fiáveis e duradoiros, mas as desavenças entre os sócios apareceram. Trepardoux era um firme advogado do vapor, mas De Dion e Bouton tinham plena consciência de que os motores de combustão interna eram o futuro. Assim sendo, Trepardoux demite-se no inicio de 1894, não sem antes inventar um tipo de suspensão não independente, mas fléxivel, que fica com o nome da marca.
Nesse ano, De Dion é uma personalidade referida e admirada, e quando vê o anuncio no Le Petit Journal feito por Giffard, olha a ideia como a melhor chance de divulgar a sua marca.
(
continua no próximo episódio)