(continuação do capitulo anterior)
1898: A PRIMEIRA TEMPORADA AUTOMOBILÍSTICA
Em 1898, o automobilismo está mesmo em expansão. O calendário de provas é maior, quer em França, quer no estrangeiro, e todo o tipo de provas acontece por toda a parte: arrancadas, provas de curta, média e longa duração. Aparecem mais marcas de automoveis, e alguns destes novos construtores vêm estas provas como o laboratório ideal para testarem as suas ideias para o desenvolvimento de automóveis de estrada.
Entre outras coisas que o ACF (Automobile Club de France) tinha previsto em termos de calendário, haveria a repetição do Paris-Bordéus-Paris, de 1895 e uma corrida mais curta, entre Marselha e Nice. Mas a grande atração seria uma corrida de uma semana entre Paris e Amesterdão, e volta, a acontecer na primeira semana de julho. Em suma, se antes haveria uma grande corrida por ano, agora uma combinação de pequenas e grandes provas fazia com que existisse uma verdadeira temporada automobilística. E era uma temporada que os construtores ansiavam imensamente.
Em 1898, os construtores presentes já apostavam declaradamente no automobilismo, tanto que eles alinhavam com carros especialmente modificados para o evento. Os Panhard tinham motores de 2,5 litros, com potências na ordem dos... oito cavalos (mesmo assim, o dobro dos carros de estrada), enquanto que Bollée e Peugeot alinhavam em carros com motores de três litros, com nove ou dez cavalos. Maior potência significava mais arrefecimento, e os primeiros radiadores - tal como conhecemos agora - eram instalados nos Panhard e Levassor.
Novos construtores apareciam no horizonte, como a Mors. Fundada em 1895 por Émile Mors e o seu irmão, Louis Mors. Émile acreditou desde logo que o automobilismo era o melhor local para testar os produtos dos seus automóveis, bem como as soluções tecnológicas que eram apresentadas. Tinha começado por construir carros a vapor, mas cedo passou para a gasolina, dado o enorme potencial de desenvolvimento.
A primeira grande prova do ano é o Marselha-Nice, que vai acontecer nos dias 6 e 7 de março. Émile e Louis Mors estão presentes, nos seus carros, bem como Fernand Charron, num Panhard branco. Gilles Hourgiéres e o Conde Renée de Knyff também estão presentes, e também correm em Panhards. André Koechlin também está inscrito, correndo num Peugeot, bem como Charles Labouré. Uma das atrações mais interessantes desta corrida era um motociclo De Dion, guiado... por uma mulher. "Madame" Marie Laumaillé decidiu participar na competição, inscrita pelo seu marido, Albert Laumaillé, que também conduzia um triciclo De Dion. A participação de Marie Laumaillé é a primeira de uma mulher numa competição automobilística.
A prova durou dois dias, e durante essa altura, o tempo não esteve muito bom, primeiro com uma chuva ligeira, mas persistente, e no segundo dia, o tempo piorou. As estradas degradaram-se com a passagem dos carros pelas poças de água e lama, e a húmidade causou problemas aos carros cuja transmissão era feita por correia, em detrimento aos carros que já tinham caixas de velocidades e corrente, para fazer a troca de mudanças.
Charron andou o tempo todo na frente. No final do primeiro dia, tinha dado um pequeno avanço sobre os outros Panhard de Hourgiéres e De Knyff. Manteve o avanço no segundo dia, apesar do agravamento das condições do tempo, e terminou com oito minutos de avanço sobre Hourgiéres, que andou o tempo todo em duelo com De Knyff. André Kocchelin foi o quarto, na frente de Francois Giraud e Émile Mors. Contudo, os aplausos mais calorosos foram para Madame Laudmille, que apesar de ter tido constantes problemas com a sua correia de transmissão, persistiu e cruzou a meta, sendo a quarta classificada na categoria de motocicletas. E terminou... 48 minutos à frente do seu marido Albert.
A PRIMEIRA FATALIDADE EM COMPETIÇÃO
A 1 de maio, decorre a segunda grande prova do ano, a Course des Perigeux, uma competição de 150 quilómetros no sudoeste de França. Havia 18 inscritos, mas a grande maioria eram motocicletas. Dez carros estavam inscritos, entre os quais o Marquês de Montariol, que conduzia um Benz Parisienne. Outro inscrito era o Landry et Beyroux, conduzido pelo seu amigo, o Marquês de Montaignac. Logo após a partida, Montariol foi para a frente, mas Montaignac aproximou-se e ao fim de quase dois quilómetros, ambos estavam próximos e prestes a fazer uma ultrapassagem. Contudo, o que deveria ser algo normal, transformou-se nas primeiras mortes do automobilismo.
A manobra de ultrapassagem começou com Montariol a encostar para deixar passar Montaignac, com este a agradecer a manobra. Contudo, Montaignac distrai-se por momentos e perde o controlo sobre o guiador, guinando para a direita. Montariol, para evitar o choque, vai para a direita e cai numa vala com dois metros de profundidade, capotando por várias vezes. Ele sai ileso, mas o seu mecânico fica ferido, com graves contusões na cabeça.
Entretanto, o Marquês de Montaignac olha para trás, apercebendo-se do seu erro de condução. Mas isso provoca nova distração e perde de novo o controlo do carro, uns 50 metros mais adiante, acabando por ter o mesmo destino: capotando várias vezes, parando no fundo da valeta. Mas as consequências foram bem mais graves: quer Montaignac, quer o seu mecânico, sofreram ferimentos fatais. Ele sobreviveu tempo suficiente para assumir a responsabilidade no acidente. Mal ele sabia, mas o marquês tinha aberto um livro negro, que iria reclamar as vidas de milhares de pilotos, mecânicos e espectadores ao longo do século seguinte.
A corrida acabou por ser vencida por G. Leys, num Panhard, mas o ambiente foi tremendamente sombrio devido aos acontecimentos do inicio da corrida.
Dez dias depois do Course des Perigueux, volta a acontecer uma prova de longa distância, entre Paris e Bordéus. Contudo, ao contrário do que tinha acontecido em 1895, era uma corrida de ida, e acontecia sobre o nome de "Criterium des Entraneurs", uma prova de preparação para o Paris-Amesterdão-Paris, dali a dois meses. Dividido em duas etapas, a primeira até Tours, e a segunda até Bordéus, compareceram 22 inscrições, divididos entre motos - treze, todos De Dion - e nove carros, entre os quais os Panhard de Fernand Charron, do Conde René de Knyff e de Leonce Girardot, e os Mors de Émile Mors e Alfred Velghe (correndo sob o pseudónimo de "Levegh").
A corrida começou com os Panhard e os Mors em luta, mas De Knyff tinha as coisas controladas. A luta entre ambas as marcas terminou por alturas de Angoulême, quando Mors foi vitima de uma colisão com um atrelado. Ele e o seu mecânico Touissant foram projetados para a estrada, e Mors acabou com uma clavicula fraturada. Levegh parou para prestar assistência, e seguiu em frente. Contudo, foi assolado por diversos problemas e acabou também por desistir.
No final, os Panhard monopolizaram o pódio, com de Knyff a ser o vencedor, com mais de duas horas e vinte minutos de avanço sobre Fernand Charron. Outro Panhard, conduzido pelo senhor Breuil, foi o terceiro, a mais de três horas e cinco minutos do vencedor. Apenas oito participantes terminaram a prova: cinco carros e três motocicletas.
Quando ao tempo, De Knyff completou a corrida em 15 horas e 15 minutos, menos oito horas e oito minutos que Levassor tinha gasto para alcançar a mesma cidade, três anos antes. Os carros estavam cada vez mais velozes.
(continua no próximo episodio)