Faz agora 28 anos que o britânico David Purley sofreu o seu acidente fatal, ao largo da sua Bognor Regys natal, a bordo de um avião de acrobacia, quando retomava a um velho amor, anos depois de ter tido uma carreira no automobilismo que sendo parca em resultados, foi rica em situações que o colocaram como um dos heróis do seu tempo. Pela sua coragem e pela sua capacidade de sobrevivência.
Inicialmente, esta matéria era para ser publicada na edição de julho da revista Speed, em conjunto sobre uma biografia de Roger Williamson, dado que no final do mês passarão 40 anos sobre o seu acidente fatal e as tentativas de Purley em o salvar, vistas em direto e ao vivo na televisão. Contudo, com a revista "em suspensão" devido ao facto do seu fundador e editor estar dedicado à sua vida universitária, achei que esta matéria não deveria ser desperdiçada num arquivo qualquer e então decidi colocar aqui, pois também vi que nunca fiz uma biografia decente sobre Purley, ao longo da história deste blog.
Assim sendo, aqui vai:
A EXTRAORDINÁRIA VIDA DO
AVENTUREIRO DAVID PURLEY
Nunca venceu uma corrida de Formula 1. Aliás, sequer pontuou na sua
curta carreira na categoria máxima do automobilismo. Mas graças à sua vida de
aventureiro e os seus feitos vão muito para além da Formula 1. Nascido em berço
de ouro, teve gosto de aventura, em busca de excitamento e adrenalina. Viveu
apenas 40 anos, mas foi das mais incríveis e plenas. Hoje em dia, quando se
fala do nome de David Purley, é por ter tentado salvar um companheiro seu, faz
agora 40 anos.
BERÇO DE OURO, GOSTO DE AVENTURA
David Charles Purley nasceu a 26
de janeiro de 1945 na cidade de Bognor Regys, no West Sussex britânico. Era
filho de Charles Purley, que tinha vindo de um berço pobre para construir, em
conjunto com o seu irmão Frank Purley, a LEC Regriferation, que construiu
frigoríficos a partir de 1947, quando ambos converteram a firma das munições
que tinham fundado para ajudar no esforço de guerra britânico, na II Guerra
Mundial.
Ao longo dos anos 50 e 60, o
negócio dos frigoríficos prosperou de tal forma que Charles e Frank se tornaram
em milionários, dada a necessidade das pessoas em ter um frigorifico. Para se
ter uma ideia, em 1960, apenas 13 por cento das casas britânicas tinham um,
comparado com os quase cem por cento que existiam nos lares americanos, por
essa mesma altura.
Foi graças ao negócio de familia
que David Purley cresceu. Mas o berço de ouro não inibiu o seu gosto pela
aventura. Depois de ter sido educado no Seaford College e no Darlington Hall
School, em Devon, David Purley descobriu cedo o prazer de voar e incentivado
pelo seu pai, que decidiu que o seu filho iria ter tudo aquilo que ele tinha
sido privado, tirou o brevet aos 16 anos. Nessa altura, era o mais jovem a
fazê-lo no Reino Unido. Contudo, pouco depois, Purley decidiu alistar-se no exercito
britânico, mais concretamente, no Regimento de Para-Quedistas. Em 1967, esteve
em Aden, atual Yemen, numa altua em que aquela zona do globo vivia tempos
agitados. Mas antes, tinha passado pelo seu primeiro momento aflitivo, quando
durante um salto de treino, ainda na Grã-Bretanha, o seu paraquedas falhou
parcialmente a sua abertura.
Após ter cumprido o seu serviço
no exército, em 1968, Purley foi ter com um velho vizinho e amigo seu, Derek
Bell, que começava a ter uma carreira bem sucedida nas corridas. Vendo o
automobilismo como um bom motivo para manter os seus níveis de adrenalina,
comprou um AC Cobra, começou a vencer algumas corridas… e a ter acidentes. Quando
o seu carro virou sucata, decidiu comprar um Chevron, e continuou a correr até
1970, quando decidiu mudar-se para os monolugares.
RECOMPENSADO PELA INTENÇÃO
Nesse ano, comprou um velho
chassis Brabham de Formula 3 e decidiu formar uma equipa, a LEC Refrigeration
Racing, batizando-o com o negócio da família. Com isso, começou a participar em
competições britânicas e europeias, onde entre outros pilotos que viriam a
chegar à Formula 1, estava um compatriota seu: Roger Williamson.
Williamson era um dos melhores do
seu tempo. Em parceria com Tom Wheatcroft, ele dominava a Formula 3, acabando
por vencer três títulos entre 1971 e 1972 (nessa altura, existia mais do que um
campeonato de Formula 3 na Grã-Bretanha!), mas apesar desse domínio, havia
ocasiões onde Purley poderia brilhar. Em 1970, venceu uma corrida na Belgica, o
GP des Frontieres, situado na localidade de Chimay, conseguindo bater por 0,3
segundos outro jovem britânico, chamado James Hunt. No ano seguinte, Purley
repetiu a façanha no mesmo lugar, altura em que tinha trocado de chassis, desta
vez indo para um Ensign, onde graças a ele, venceu mais duas corridas naquela
temporada. Em 1972, mudou-se para a Formula 2, onde arranjou um chassis March.
Não conseguiu mais do que um terceiro lugar nas ruas da cidade francesa de Pau,
arrebatando apenas os quatro pontos dessa corrida.
Em 1973, começa a temporada na
Formula Atlantic, mas pelo meio, arranja um March 731 de Formula 1. Tal como
nas outras vezes, inscreve-o sob a bandeira da LEC Refrigeration e vai
participar em algumas corridas. Estreia-se no GP do Mónaco, o mesmo local onde
outro March foi inscrito, para James Hunt, onde não termina a corrida. A sua
segunda prova será apenas em julho, em Silverstone, mas vai ter vida curta,
pois sofrerá um despiste logo na primeira volta, imediatamente antes da
carambola provocada pelo McLaren do sul-africano Jody Scheckter, onde ele
colocará mais oito carros fora de prova.
Mas vai ser na terceira corrida
em que participa, o GP da Holanda, que o seu nome fica conhecido pelo mundo
inteiro. Partindo da 21ª posição nos treinos, na corrida tinha subido um pouco
até à oitava volta, quando viu acidentar-se o outro March de Roger Williamson,
que ali fazia a sua segunda corrida na Formula 1. Purley seguia imediatamente
atrás e sem hesitar, parou o seu carro e foi a correr para os destroços do
carro acidentado.
O March de Williamson tinha
sofrido um furo a alta velocidade e batera fortemente nos rails de proteção,
ficando de cabeça para baixo e a ser arrastado por mais de uma centena de
metros até parar, em chamas e com o piloto preso nos destroços. Primeiro,
Purley pegou num extintor que um dos comissários tinha trazido, tentando apagar
as chamas. Depois tentou virar o carro, mas em ambas as ocasiões, não o
conseguiu. Desesperado, apelou aos comissários e às forças policiais para que o
ajudassem a virar o carro, mas estes estavam convencidos que Williamson tinha
morrido no impacto.
Para piorar as coisas, os
comissários de pista de Zandvoort, que estavam a ver as imagens pela televisão,
não reagiram de imediato porque estavam convencidos que Purley estava a virar o
seu próprio carro. Um carro de bombeiros chegou mais de oito minutos depois do
acidente, mesmo com a corrida a decorrer. Quando as chamas foram apagadas e o
carro virado, Roger Williamson estava morto. Tinha 25 anos.
Todos aqueles instantes foram
vistos em direto pelo mundo inteiro e o acidente causou um natural choque. Um
símbolo da crueldade do automobilismo e da pouca segurança existente naquele
tempo, o gesto de Purley foi visto como um ato de salvamento sem igual. No
final daquele ano, o governo britânico decidira condecorar Purley com a George
Medal, a maior condecoração civil por bravura. Mas ele não tinha sido o único:
alguns meses antes, no circuito sul-africano de Kyalami, Mike Hailwood tinha
salvo o suíço Clay Regazzoni de morrer preso no seu BRM quando as chamas
invadiram o seu carro após uma colisão com o antigo campeão de motociclismo.
CONSTRUTOR DE CHASSIS E 179,8 G’S
DE IMPACTO
Purley voltou a correr num
Formula 1 no GP de Itália, terminando a corrida no nono posto, que viria a ser
a sua melhor prestação na categoria máxima do automobilismo. A partir do ano
seguinte, concentrou-se na Formula 5000, competindo no campeonato da categoria,
a bordo de um Lola. Essa passagem revelou-se um sucesso, sendo campeão em 1976. Pelo meio, ele tentou qualificar-se no GP da Grã-Bretanha de 1974, a bordo de um Token, mas não foi bem sucedido.
Passado esse título na Formula 5000, decidiu que era altura de voltar à Formula 1. Mas não queria ir para lá só como piloto: decidira também que iria ser construtor. Pediu a Mike Pilbeam – que tinha desenhado o BRM 201 – que
projetasse um, pediu a Mike
Earle – que mais tarde
formaria a Onyx – que cuidasse da equipa e sem testes e simuladores, como
acontece neste inicio do século XXI, lá nasceu, num canto da sua fábrica de
frigoríficos de Bognor Regis, o chassis LEC.
O carro, batizado como LEC CRP1, estreou-se em Jarama,
palco do GP de Espanha, mas acabou por não se qualificar. A corrida seguinte
seria em Zolder, palco do GP belga. E aí, Purley deu nas vistas. Numa corrida
que começou sob piso molhado, mas com a pista a secar aos poucos, os pilotos
iam às boxes para trocar pneus. Como nessa altura, tal coisa durava a “eternidade”
de 30 segundos, Mike Earle mandou uma mensagem nas placas a dizer para se
mantivesse na pista o máximo de tempo que pudesse. E por causa isso, a
determinada altura, Purley estava nos lugares da frente!
Com o tempo, aparece o Ferrari de Niki Lauda, que o pressionou
por muitas voltas, mas Purley não cedeu, incomodando o suficiente para
perturbar o cerebral austríaco. Claro, isto teve efeitos na corrida, com Lauda
a não chegar à vitória – quem venceu foi Gunnar
Nilsson, na sua única vitória na Formula 1 - e Purley, que no final da
corrida terminou na 13ª posição, perguntou de modo sarcástico a Earle: “Quem
era o idiota do carro vermelho?” Lauda ouviu isto e ambos tiveram a
seguir um aceso debate, onde Lauda chamou a Purley de “coelho” e este devolveu
a graça, chamando-o de “rato”.
Purley não deixou passar em claro
a graça, colocando a figura de um coelho na corrida seguinte, o GP da Suécia.
Lauda achou piada e apareceu com a palavra “Rato” no seu capacete, algo que foi
levado com imenso humor no “paddock”.
No GP da Grã-Bretanha, disputada
no veloz circuito de Silverstone, a quantidade de carros inscritos – entre eles
o Renault Turbo de Jean-Pierre Jabouille e o terceiro McLaren do canadiano Gilles
Villeneuve - levou a que os organizadores fizessem uma pré-qualificação. Aí,
Purley tentou o seu melhor, mas na segunda sessão de treinos, quando fazia a
curva Becketts, o acelerador do seu LEC ficou preso e o carro embateu
fortemente nas barreiras de proteção. Sofrera um impacto de 179,8 G’s de força,
pelo facto do carro ter vindo de 173 km/hora para zero… em meros 66
centimetros, e ele estava esmagado no seu cockpit, com graves lesões nas
pernas, na pelvis e no torax. Mas tinha sobrevivido.
UMA PERSONAGEM À PARTE
Purley esteve quase um ano a
recuperar dos seus ferimentos, ao mesmo tempo que o seu carro era reparado.
Após ter feito uma corrida com um Porsche 924 em Brighton, voltou ao cockpit do
seu LEC em 1979, para disputar a Aurora Series, o campeonato britânico de
Formula 1. Para além do seu LEC, também tripulou um Shadow, com alguns
resultados de relevo, mas no final desse ano, decidiu abandonar a sua carreira
de piloto.
Após isso, Purley decidiu ajudar
no negócio da família, mas não andou longe dos brinquedos. Voltou à sua
primeira paixão, a aviação, e arranjou um Pitts Special para fazer a sua
acrobacia, que o fazia sempre que podia.
Contudo, a 2 de julho de 1985,
quando fazia acrobacias ao largo da sua Bognor Regis natal, calculou mal uma
manobra e caiu nas águas do Canal da Mancha. Tinha 40 anos de idade.
Rob Widdows, outro jornalista britânico, tinha boas razões para recordar bem David Purley e o seu
carácter. Escrevendo sobre a sua aventura da LEC em maio de 2012 na Motorsport
britânica, afirmou “Os privados já desapareceram há muito da Formula 1.
São ‘mavericks’, excêntricos, uma elite à parte. Purley era um convidado
regular no meu programa de rádio ‘Track Torque’, e vinha regularmente
acompanhado do seu amigo e vizinho, Derek Bell, ou da sua namorada de então,
Gail. E às vezes vinha com ambos.
Certo dia, ele chegou tarde ao meu programa, e Bell
explicou que o motivo foi porque Purley insistiu que queria caçar coelhos a
partir da bagageira do seu Range Rover, e claro, isso fez-os atrasar. Noutra
ocasião, ele decidiu por à prova a concentração do apresentador do programa de
rádio, elevando a camisola de Gail, revelando assim a sua parte de cima.”
Hoje em dia, pode-se ver os
destroços do seu LEC acidentado no Donington Collection, uma das maiores
coleções de bólides de Formula 1 em todo o mundo. O carro não está muito longe
da memorabilia de Roger Williamson, o homem que tentou salvar em Zandvoort,
naquela tarde de julho de 1973.