No próximo dia 15 de novembro, estrear-se-á nas salas de cinema do globo o filme
"Le Mans'66", o filme realizado por
James Mangold, que têm
Christian Bale como
Ken Miles e
Matt Damon como
Carrol Shelby. A história fala sobre o duelo entre Ford e Ferrari nas 24 horas de Le Mans, e como esse duelo deu origem a um dos carros de corrida mais fabulosos de sempre, o GT40. Mas também falará de duas personalidades,
Enzo Ferrari e
Henry Ford II, o "Deuce", bem como algumas das personagens que estiveram por trás. Homens como
Lee Iaccoca ou
Leo Beebe, do lado americano, ou
Amadeo Dragoni e
Sergio Scaglietti, do lado da Ferrari.
A base para isso tudo é um livro escrito em 2008, e não é aquele do qual o filme extrai: "Go Like Hell", ou traduzido para português, "Como Uma Bala", o livro de A.J. Baime sobre o duelo entre ambas as equipas que resultou no triunfo da marca americana em 1966, numa chegada em parelha que deu polémica na altura. Em suma, foi um choque de culturas, de como os americanos gastaram tudo o que poderiam gastar para os bater no mesmo lugar. A Scuderia, que vinha de seis vitorias seguidas e parecia que ninguém os iria bater. Mas também desse lado tinha excelentes pilotos, como John Surtees ou Lorenzo Bandini. E também envolve pilotos fantasma e tudo...
Mas para começaremos a falar sobre isso, tem de se recuar a 1963. Quando apesar de ser o vencedor absoluto em La Sarthe, vencer no domingo e vender na segunda não era aplicável em Maranello porque nem todos os ultra-ricos podiam comprar os seus carros...
COMMENDATORE CONTRA O DEUCE
Enzo Ferrari nasceu a 20 de fevereiro de 1898 em Modena, mas ele alimentou a lenda que tinha nascido dois dias antes, que uma tempestade de neve impediu o seu pai de o registar nesse dia. Ferrari nasceu quase vinte anos antes de Henry Ford II, nascido a 4 de setembro de 1917. Se Ferrari era o filho de um ferreiro, já Ford nascera em berço de ouro. O seu avô, Henry Ford, tinha fundado a empresa e enriquecera com o modelo T, enquanto Edsel Ford, seu pai, pretendia seguir os passos do progenitor para ficar na frente da fábrica quando fosse a altura.
Henry Ford II, o "Deuce", e Enzo tiveram pelo menos uma coisa em comum: perderam o pai muito cedo. O italiano foi durante a I Guerra Mundial, quase a seguir foi o irmão mais velho, deixando-o orfão aos vinte anos. Já "Deuce" estava na Marinha a servir o país na II Guerra Mundial quando, aos 26 anos, viu Edsel definhar e morrer, vitima de cancro.
Ferrari foi piloto logo depois da I Guerra Mundial, vencendo corridas, especialmente pela Alfa Romeo, uma das marcas que apostara no automobilismo depois do primeiro conflito mundial. Foi assim ao longo da década de 20, e em 1929, decidiu pendurar o capacete para tomar conta dos carros da marca. Mas não oficialmente, logo, surgiu a Scuderia Ferrari. E nesse tempo, também foi o diretor de corrida de pilotos como Tazio Nuvolari, Achile Varzi ou Luigi Fagioli. Não se conhece o gosto automobilistico de "Deuce", mas em 1903, o seu avô montou um carro de corrida e alcançou recordes de velocidade. E fala-se que foi ele que cunhou a frase: "vence no domingo, vende-se na segunda", mas na realidade, foi Harvey Firestone o autor da frase.
No final da II Guerra Mundial, onde Ford viu a sua fábrica convertida para construir bombardeiros, e Ferrari mudou-se para Maranello porque esses mesmos aviões bombardearam a sua oficina em Modena, liberto de todas as amarras, Ferrari decidiu construir a sua marca em 1947. Preparou o seu filho, Alfredino (Dino) para ser seu sucessor, mas em 1956, uma distrofia muscular matou-o aos 24 anos.
E é nessa altura que começa o livro. Ferrari tem uma equipa na Formula 1, e já tinha vencido dois campeonatos de pilotos, em 1952 e 53, com Alberto Ascari ao volante. Mas este tinha morrido em 1955, durante uma sessão de testes em Monza, apenas três depois depois de ter sofrido um acidente espectacular no GP do Mónaco, onde tinha caído às águas do porto no seu Lancia. Também por essa altura já tinha vencido em Le Mans, a primeira vez em 1949, graças à inscrição privada de Luigi Chinetti, um italo-americano do qual Ferrari encarregou de ser seu importador para os Estados Unidos. Ele também viria a formar a NART, a North American Racing Team.
Também nessa altura tinha uma equipa de sonho, que corria com os melhores pilotos do seu tempo, como os britânicos Mike Hawthorn e Peter Collins, os italianos Eugenio Castelloti e Luigi Musso, o espanhol Alfonso de Portago, e claro, o argentino Juan Manuel Fangio. Mas em pouco mais de dois anos, quase todos desapareceram: Portago nas Mille Miglia de 1957, pouco depois de Castelloti, num acidente de testes em Modena, Collins no GP da Alemanha de 1958, duas corridas depois de Musso ter conhecido o mesmo destino. Fangio e Hawthorn venceram títulos na Formula 1, mas o argentino foi o único que chegou à velhice, pois Hawthorn, o primeiro britânico a conseguir um título de Formula 1, morreu num acidente de estrada a 30 de janeiro de 1959.
Ferrari voltou a vencer um campeonato de Formula 1 em 1961, também em circunstâncias trágicas, em Monza. Noutra equipa de sonho, que tinha o americano Phil Hill, o alemão
Wolfgang von Trips, os belgas
Olivier Gendebien e
Willy Mairesse, e outro americano,
Richie Ginther, dominaram o campeonato, até que a 10 de setembro, num duelo entre Hill e Von Trips, o primeiro deu um título mundial de pilotos aos Estados Unidos, enquanto o alemão, mais catorze espectadores, pereciam num despiste, depois de uma colisão com o Lotus de
Jim Clark, futuro bicampeão do mundo, do qual o escocês conseguiu escapar incólume.
Por esta altura, Hill tinha já vencido por duas vezes as 24 horas de Le Mans. Venceria uma terceira vez, em 1962, antes de sair da equipa em solidariedade com os engenheiros que se revoltaram contra Enzo Ferrari, como Romolo Tavoni, Giotto Bizzarrini e Carlo Chiti. Essa gente tinha-se fartado da ingerência de Laura Ferrari, a mulher de Enzo, nos assuntos do dia-a-dia da equipa.
UMA OFERTA QUE O COMMENDATORE RECUSOU
Quando eles saíram, Ferrari deu chances aos jovens, como
Mauro Forgheri e
Sergio Scaglietti, e havia novos pilotos, como
Lorenzo Bandini e
Ludovico Scarfiotti. Mas também a experiência internacional de
John Surtees, que era um piloto invulgar para a época. Sobre ele falar-se-á mais tarde, mas é nesta altura, em meados de 1963, que Ford aparece com uma oferta irrecusável.
Desde o seu inicio que a Ferrari apostou em tudo que tivesse quatro rodas e um volante: Endurance, Formula 1 e GT's. Todos os seus pilotos andavam nessas categorias, e como vimos, alguns deles tiveram os seus acidentes mortais ao serviço de carros que não os de Formula 1. Foi por causa do acidente de De Portago que as Mille Miglia acabaram em 1957. Mas apesar de vencer na Formula 1 e em Le Mans - vencia consecutivamente desde 1960 - manter todas estas operações era caro, e as receitas vinham exclusivamente das vendas de automóveis. Ferrari queria um financiador, e a Ford parecia ser a equipa ideal.
Nesta altura, Henry Ford II estava ao comando da marca desde 1945. Tinham afastado Henry Ford, seu avô e fundador, por causa da idade - morreria em 1947 - e o seu estilo era agressivo. Reconhecendo a sua juventude e inexperiência, rodeou-se de dirigentes mais velhos e capazes, mas não menosprezou a sua geração, tão ambiciosa como ele. Foi ali que entraram pessoas como
Robert McNamara, Edward Lundy e
Lee Iaccoca. McNamara acabaria por ser o presidente da Ford, mas não o seu CEO, Cheif Executive Officer - antes de ser secretário da Defesa dos Estados Unidos nas administrações de
John Kennedy e
Lyndon Johnson, e um dos artifices da Guerra do Vietname.
Iaccoca era um pouco mais novo que McNamara - nascera a 15 de outubro de 1924, filho de italianos - entrou na Ford como engenheiro, mas depois pediu para ser transferido para o departamento de marketing, onde as suas campanhas de vendas agressivas chamaram a atenção da sede. Em 1960 era o vice-presidente encarregado da gestão da marca e nesse ano, estava envolvido nos planos para a construção do modelo Mustang, o desportivo da marca, feito para concorrer ao Corvette, da Chevrolet.
Pelo meio, pediram que ele fosse ajudar nas negociações com a Ferrari para a compra da marca. As coisas começaram em Abril de 1963 e arrastaram-se ao longo de 1963. Ford mandou Iaccoca, que levou consigo
Roy Lunn, que tinha vindo da Aston Martin, e
Filmer Paradise, o presidente da Ford Itália, entre outros executivos, com os advogados da marca para ajudar, enquanto Ferrari negociava... sozinho, com o seu advogado a ajudar na elaboração de um acordo de compra da marca. Durante um mês, as negociações avançaram, com algumas noticias a irem para a imprensa, que ficou espantada com a possibilidade de um acordo entre Ferrari e Ford.
Tudo ficou pronto a 21 de maio de 1963, em Maranello, a sede da Ferrari. Tudo estava acordado, ao valor de dez milhões de dólares - muito baixo até para os padrões da Ford. No local, estava
Don Frey, numero dois de Lee Iaccoca, apaixonado por automóveis e com toda a confiança da direcção para concluir o negócio e do outro lado, Ferrari, o seu advogado e um intérprete. O acordo dizia que 90 por cento do departamento de corridas era da Ferrari, enquanto no lado comercial, era o contrário, os carros de estrada seriam vendidos como "Ford-Ferrari".
Perto do meio-dia, Ferrari leu o acordo, depois de traduzido para italiano - havia o mito de que Enzo Ferrari não sabia falar qualquer língua estrangeira, mas na realidade sabia falar inglês e francês - e depois de uma conversa com o seu advogado, na sua caneta de cor violeta, escreveu uma apreciação negativa.
"
À medida que Ferrari lia o documento final, os homens da Ford viram-no sublinhar algumas frases a tinta roxa. Na margem, desenhou um grande ponto de exclamação. Era patente que estava zangado.
- Mas aqui - disse ele a Frey, a segurar o documento - está escrito que, se eu quiser gastar nas corridas, tenho de requisitar autorização da América para o fazer! Também está escrito dessa forma no texto oficial inglês? Onde é que está a liberdade que exigi desde o inicio para executar programas, seleccionar homens e decidir quanto ao dinheiro?
- Mas senhor Ferrari, - retorquiu Frey, o senhor está a vender a sua empresa e ainda quer dispor dela a seu bel-prazer.
Ferrari deteve-se.
- Dottore Inginiere - começou - se eu quiser alinhar com carros em Indianápolis e vocês não querem que alinhe carros em Indianápolis, vamos ou não vamos?
Frey respondeu sem hesitação:
- Não vão.
O rosto de Ferrari encrespou-se. Algo se libertou no seu íntimo.
Os meus direitos, a minha integridade, o meu próprio ser enquanto construtor, enquanto empresário,não dão para funcionar a mando da máquina imensa, da burocracia sufocante da Ford Motor Company! - gritou.
A isto seguiu-se uma invectiva demorada. Gozzi, que se encontrava presente, descreveu-o como «uma tirada que nunca ouvira antes em toda a minha vida e que não voltei a ouvir desde então.»
Quando Ferrari terninou, virou-se para Gozzi. Eram 22 horas.
-Vamos comer - disse.
Os dois homens levantaram-se e abandonaram a sala. As negociações tinham terminando."
A.J. Baime,
"Como uma Bala", pgs. 84-85
Segundo conta o autor no seu livro, o próprio Ferrari sabia mais ou menos como funcionava a Ford, e queria ver até que ponto eles iam. A Ford, ou por mera arrogância americana, ou desconhecendo a fundo a personalidade do Commendatore, ou não sabia das intenções dele, foi andando, cego com a oportunidade de comprar a Ferrari. O consenso geral, após todos estes anos, é que Ferrari já tinha decidido há muito tempo recusar a venda, só quis saber até que ponto eles iriam, para aplicar o golpe final.
No regresso a Dearborn, Frey foi ter com "Deuce" e convidou-o para um almoço. Ali, contou os pormenores do negócio fracassado,
"no almoço mais demorado da minha vida", e depois de o ouvir, Henry Ford II afirmou:
"
- Está bem, vamos dar-lhe uma coça. Vamos competir contra ele.
A afirmação pairou no ar. Lentamente, acorreu a Frey uma visão do que estava prestes a acontecer e de qual seria o papel dele nisso.
- Quanto dinheiro pretende gastar? - perguntou Frey ao patrão.
- Não falei de dinheiro - respondeu Henry Ford II.
Frey percebeu onde queria chegar: independentemente do custo, Henry II iria pagar a despesa. Não haveria desculpas para um segundo lugar."
A. J. Baime, "Como Uma Bala", pg. 85.
"Deuce" decidiu que o assunto era pessoal e iria derrotá-lo no mesmo local: na pista. E com uma competição em particular, as 24 Horas de Le Mans. A guerra tinha sido declarada.
(continua amanhã)