Ontem comemorou-se 32 anos sobre um dos mais tristes e controversos Grandes Prémios de sempre da história da Formula 1: o Grande Prémio de Espanha de 1975, disputado no Parc de Montjuic, em Barcelona. Ao ver essa data assinalada no Blog do Capelli, descobri uma matéria excelente escrita por Manuel Blanco no site GP Total, sobre este Grande Prémio. Achei por bem transcrever o artigo, de tão bem feito que está, com os devidos créditos, claro.
Adeus e até nunca!
Assim poderíamos descrever o fim do circuito de Montjuich, em Barcelona. Situado na colina do mesmo nome, o lugar era, e é, de grande beleza mas, como circuito... era infernal.
Em 1975, o GP da Espanha deveria ser disputado lá pois, naquela época, havia alternância com o circuito de Jarama, em Madrid. Seria a quarta prova da temporada e Emerson Fittipaldi liderava o campeonato. Montjuich era um circuito urbano que aproveitava as ruas que recorriam o belo parque da colina e, portanto, devia ser preparado para o evento com a instalação dos boxes, postos de socorro e bombeiros e alambrados e guard rails de proteção ao longo do percurso.
Tudo foi feito ou parecia ter sido feito e os inspetores enviados pela FIA, apesar de algumas reticências, determinaram que o circuito estava apto. Assim, as escuderias começam a chegar para disputar o GP mas logo viriam as queixas dos pilotos e, antes mesmo de se iniciar os treinamentos da sexta-feira, Fittipaldi, acompanhado por alguns outros pilotos, decidiram examinar o circuito. Logo acharam deficiências na instalação dos guard rails; em alguns lugares, eles haviam sido apenas "pendurados" ao poste com um só parafuso, não resistindo a um simples empurrão.
Perante a evidente falta de segurança, os pilotos, representados por Fittipaldi, decidem não ir à pista. Fittipaldi, Graham Hill, Jody Scheckter e Niki Lauda, após manter uma reunião com os outros pilotos, se reúnem com os organizadores do GP para manifestar-lhes a sua preocupação. Ante a falta de acordo, a reunião dura apenas vinte minutos.
Sem embargo, os primeiros sinais de cisão entre os pilotos começam a aparecer e Jackie Ickx, que não era membro da entidade que reunia os pilotos, a GPDA, sai à pista seguido, logo depois, por Vittorio Brambilla. Outros como Hunt ou Wunderink também estavam dispostos a sair mas respeitam a decisão da maioria. As equipes americanas - Penske, Parnelli e Shadow - também estavam dispostas a participar.
Numa tentativa de convencer os pilotos, os organizadores decidem reforçar os guard rails e um grupo de operários trabalha toda a noite. No sábado de manhã, até os mecânicos das equipes. Especial atenção é dedicada ao trecho que vai dos boxes até a curva do "ângulo", passando pela temível "rasante", o lugar do circuito onde os carros alcançavam a máxima velocidade - 270 Km/hora.
Rasante é a palavra espanhola que descreve o ponto de uma estrada onde um plano ascendente passa a ser descendente e isto era justamente o que acontecia lá. Logo depois da linha de largada/chegada, a pista iniciava uma forte ascensão até a rasante para, imediatamente, descer bruscamente em busca da curva do ângulo, a mais lenta do circuito. A rasante, assim, se transformava numa rampa de lançamento onde os carros tendiam a decolar, submetendo os aerofólios a uma enorme pressão para manter o carro no chão. Em 1969, os Lotus de Hill e Jochen Rindt bateram com violência perto do ângulo após a rotura dos seus aerofólios. Desde então, os guard rails naquela zona eram constituídos por três elementos e altas cercas.
Os organizadores pedem aos membros da FIA presentes que examinem o circuito novamente e estes emitem um informe declarando que os trabalhos realizados são satisfatórios.
Os pilotos seguiam pouco dispostos mas as pressões contra eles começam a dar frutos. Os pilotos pressionavam os organizadores mas estes pressionavam os chefes de equipe. Os patrocinadores também. A TV, a todos e as equipes aos pilotos. Enfim, todos pressionavam e eram pressionados. Até Enzo Ferrari, numas manifestaçoes à TV recordava: "o automobilismo sempre tem os seus riscos".
Ao meio dia do sábado, os pilotos se reúnem novamente. Fittipaldi, Hill e alguns outros continuam firmes na sua decisão de não ir à pista. Porém as pressões sobre as equipes resultam já insuportáveis. Além do mais, não participar do GP significava não receber nada. Falou-se também que os organizadores ameaçaram as equipes com a apreensão judicial dos carros caso não saíssem à pista, além de exigirem indenização por quebra de contrato.
Bernie Ecclestone se reúne com os outros chefes de equipe e dez minutos depois ouve-se o rugido dos motores. Um após o outro, todos os carros vão à pista. Uma vez mais, e como é de soer, nobres reivindicações eram relegadas por espúrios interesses. O dinheiro prevalecia sobre tudo! Emerson Fittipaldi, para não participar do treino, finge problemas mecânicos.
Os treinamentos, transcorrem com normalidade e o grid fica definido com os Ferrari de Lauda e Regazzoni na primeira linha, seguidos de Hunt e Andretti. No domingo, dia 27 de abril, enquanto os carros esperam a largada, a tensão é evidente. Teriam sido tantos protestos infundados ou o perigo era real?
Na hora prevista, o diretor da prova dá a largada e as "hostilidades" começam. Como uma matilha de lobos em busca da presa, o grupo chega compacto ao ângulo... e começam os incidentes.
Andretti toca ligeiramente o Ferrari de Lauda e o austríaco vai para cima de Regazzoni antes de arrebentar-se nos guard rails. Depailler bate em Regazzoni mas continua. O suíço, com o bico quebrado, consegue chegar ao box e volta à pista. Depailler abandonaria logo depois com problemas na suspensão. Wilson Fittipaldi e Arturo Merzario abandonam na segunda volta. Haviam largado só para cumprir contrato e evitar problemas com os organizadores.
O maior beneficiado do tumulto no ângulo é James Hunt, que sai da curva liderando à frente de Andretti, Watson, Brambilla, Rolf Stommelen e Carlos Pace. Porém, na sétima volta, o britânico arrebentaria o seu Hesketh contra um guard rail, felizmente numa zona de baixa velocidade, deixando a liderança para Andretti. Pouco depois, Watson e Brambilla entram nos boxes deixando Stommelen e Pace brigar pela 2ª posição.
Na volta 17, porém, Andretti quis comprovar por si mesmo a resistência dos guard rails, batendo num deles. Stommelen, pilotando um Hill GH1, passa a líder, fazendo uma corrida impecável e resistindo perfeitamente à feroz perseguição de Pace. Nada mudou nas seguintes voltas: Pace atacava e Stommelen resiste, até que, no começo da volta 26, a dupla inicia a ascensão a caminho do rasante. A poucos metros do lugar, Stommelen lança o carro para a esquerda, procurando proteger-se de uma possível tentativa de ultrapassagem mas o suporte do aerofólio traseiro do seu carro não resiste e cede. O suporte fora construído em fibra de carbono – era a primeira vez que este material aparecia na Formula 1.
O aerofólio é arrancado repentinamente e, sem aderência no eixo traseiro, o carro gira como um pião para acabar golpeando de traseira os guard rails. Estes se curvam com a violência do embate mas resistem e o carro é, literalmente, catapultado para a direita (o exterior da curva). A partir desse momento, Stommelen tinha deixado de ser piloto para converter-se num involuntário passageiro. Na errática trajetória iniciada, ele golpeia o Brabham de Pace, iniciando um vôo de várias dezenas de metros que o levaria a passar por cima dos guard rails. Ainda voando e já perto do ângulo, a roda dianteira direita se engancha num poste da iluminação pública, sobre o qual e como se fosse um eixo, o carro gira rapidamente. A enorme força centrífuga gerada lança o carro em direção a um posto de assistência. Após atravessar a cerca, o carro continua adiante arrasando tudo o que encontra no seu caminho para, finalmente e já convertido em sucata, terminar o seu diabólico percurso. Pace também perde o controle e se arrebenta nos guard rails do exterior da rasante, deslizando ao longo deles até o ângulo.
A corrida continua. O carro de Stommelen cortara o cabo telefônico que comunicava o posto com a torre de controle. Bem perto do posto havia uma câmara de TV mas ela não conseguia transmitir o que acontecia fora da pista e a rasante impedia a visibilidade do local desde a torre de controle. Só a ser completada a volta com Jochen Mass na liderança e que se percebeu o “sumiço” de Stommelen e Pace. Por fim, na volta 29, o diretor da prova é informado do acidente e decreta a imediata suspensão da corrida.
Todos se dirigem rapidamente ao local do acidente e ficam estarrecidos com o dantesco panorama. Os cadáveres de três bombeiros e um fotógrafo canadense jaziam pelo chão, alguns deles mutilados. Outras doze pessoas estavam feridas, algumas em estado graves. Stommelen, milagrosamente, seguia vivo entre os restos retorcidos do carro e gritava vítima de terríveis dores. O alemão sofreu fraturas em várias costelas, uma perna e um braço, além de contusões por todo o corpo.
O caos foi pouco a pouco desaparecendo e os feridos sendo atendidos mas não havia dúvida de que o parque de Montjuich nunca mais veria a Fórmula 1. Porém, o fim de Montjuich não deixava de ser tragicamente irônico: toda a polêmica inicial tinha girado em torno dos guard rails mas estes não tiveram influência nos graves acontecimentos. Os guard rails resistiram à batida de Stommelen (depois, o alemão passou voando por cima dos outros) e Pace.
Mass foi declarado vencedor seguido por Ickx, Reutemann, Jarier, Brambilla e Lella Lombardi na 6ª posição. Assim, a italiana passou a ser, e ainda é, a única mulher a pontuar em um GP. No entanto, havendo-se disputado aproximadamente um terço da corrida, cada um recebeu apenas metade dos pontos.
Na segunda-feira, começaram os trabalhos para deixar o parque, novamente como era e como nunca devia ter deixado de ser: um belo lugar para passear tranquilamente. Infelizmente, Montjuich passou a ser sempre lembrado por aquela tragédia e não pela sua beleza.