Juan Manuel Fangio é um dos melhores pilotos de sempre e tem algo que hoje em dia seria impossível: ganhar cinco títulos em quatro carros diferentes: em 1951, pela Alfa Romeo, em 1954, dividido entre Maserati e Mercedes, no ano seguinte, pela construtora alemã, em 1956, pela Ferrari, e no final, pela Maserati.
O piloto argentino cruzou a meta pela última vez em 1958, e, Reims, pela Maserati, dez anos depois de ter chegado à Europa, conseguindo um quarto lugar e com um Mike Hawthorn a fazer-lhe escolta porque ia dá-lo uma volta. Não o fez, afirmando que um grande campeão não merecia tal coisa. E com razão: cinco anos antes, naquele mesmo circuito, disputaram taco-a-taco a vitória, com esta a cair para o lado do britânico. Aliás, a primeira vitória de um súbdito de Sua Majestade num Grande Prémio de Formula 1, e o primeiro duelo memorável da história da competição.
Contudo, Fangio falou abertamente dos seus carros vencedores - inclusive, foi o representante da Mercedes na Argentina - mas a relação do Ferrari foi sempre tensa. O que não sabia foi que tinha sido acrimoniosa por uns bons anos. Digo isto porque comprei - e li - recentemente "As Minhas Alegrias Terríveis", a autobiografia de Enzo Ferrari.
Publicado em 1962 e com acrescentos ao longo dos anos, até 1987, há um capítulo que intitula de "Pilotos, que gente!" e sendo ele um antigo piloto, deixa considerações sobre gente que guiou máquinas perigosas ao longo de três gerações. Desde gente que admirou, em criança, a adversários como Tazio Nuvolari, e por fim, pilotos que poderiam ser seus filhos, como Luigi Musso, Alberto Ascari, e os "netos", como Michele Alboreto, Carlos Reutemann e Gilles Villeneuve.
Aparentemente, quando Fangio pendurou o capacete, escreveu - ou mandou escrever - a sua autobiografia na Argentina e lá, não deixou boas impressões sobre Ferrari. Este leu-o - deve ter chegado algum exemplar ao seu escritório de Maranello - e aproveitou aquela ocasião para responder às acusações do piloto argentino.
Aparentemente, Fangio acusa Ferrari de ter sabotado o seu carro para que não ganhasse certas corridas, nomeadamente o GP da Bélgica e as Mille Miglia daquele ano. Chama às acusações de "comédia" e fala, sobre os buracos feitos no habitáculo no seu carro que o impediam de chegar em primeiro na prova italiana, apenas cortando a meta em quarto, que "aqueles diabólicos furos não impediram Castelloti de triunfar".
Sobre a corrida belga, ele afirma que tinha a ver com o carro, porque tinha ficado sem óleo na corrida. Ferrari explicou que Fangio trocou o carro com o do jovem britânico Peter Collins, na manhã da corrida. E foi com o bólido que era destinado ao argentino que o britânico... ganhou o seu primeiro Grande Prémio na Formula 1.
"Mas qual seria a razão por que Enzo Ferrari, este Metternich - e porque não, este Richilieu dos automóveis? - se afinca, com tanta perfídia e astúcia, a arruinar o melhor piloto da sua equipa, o campeão do mundo? Fangio não tem dúvidas, e explica assim: Ferrari queria, antes de mais, demonstrar que os seus carros venciam, mesmo que ao volante não estivesse o campeão do mundo; em segundo lugar, ele desejava que o campeão mundial fosse Peter Collins, porque Collins significava o mercado inglês, enquanto o argentino estava então fechado às importações.
Ora, enquanto nem perco tempo a considerar as insinuações de sabotagem maquiavélica, pela simples razão de não querer, eu próprio, cobrir-me de ridículo, responderei a [Juan] Manuel Fangio no que respeita ao segundo ponto."
As Minhas Alegrias Terríveis, pags 91-92.
Agora, o contexto ocasional: em 1956, Fangio passava por um mau bocado. Tinha sido apoiado pelo regime de Juan Domingo Perón na sua aventura europeia, e as suas vitórias eram usadas como propaganda, demonstrando o sucesso do desporto nacional. Contudo, em setembro de 1955, com a temporada a terminar em Itália, um golpe de estado derrubou-o e partiu para o exílio. Fangio regressou mas até à última, a sua viagem esteve em risco, porque o novo regime queria saber até que ponto esteve envolvido. Chegou a ter o seu passaporte confiscado, no qual devolveram 10 dias antes do inicio da temporada europeia.
Para piorar as coisas, a reputação de Ferrari não era boa, e Fangio não era fã da dupla Hawthorn e Collins, para além de Luigi Musso, que ganhara a sua primeira corrida na Argentina. Sentiu que era mais um e não ficou tranquilo. Aliás, bem vistas as coisas, foi um campeonato no qual ganhou por sorte, por causa dos eventos de Monza.
E isso, Fangio não fala, mas Ferrari... sim.
"Nessa mesma época de 1956, Fangio venceu o GP da Argentina porque Musso cedeu o seu Ferrari. No GP do Mónaco, queixando-se das suas suspensões, utilizou o carro de Collins e chegou em segundo lugar. No GP de Itália, tomou mais uma vez o Ferrari de Collins, que naquele momento comanda a corrida, e vence o título.
Musso e Collins sacrificaram-se por ele, [Juan] Manuel Fangio. E, obviamente, com o meu consentimento. Se Collins não tivesse dado, duas vezes, o seu próprio carro, teria sido ele, matemática e merecidamente, o campeão do mundo naquele ano. E Collins e Musso morreram sem ter podido realizar esse sonho.
É preciso, portanto, muita coragem para se definir como 'reizinho da Ferrari', como Manuel Fangio diz de si próprio, esquecendo mesmo o sacrifício dos seus companheiros de equipa. Que coisa devo concluir? Fangio foi um grandessíssimo piloto, afetado pela mania da perseguição."
As Minhas Alegrias Terríveis, página 92
Claro, não explicava tudo: Fangio nunca ficou à vontade em relação às equipas italianas, e o próprio Ferrari apontou isso na sua autobiografia. E de uma certa forma até se explica a relação com a Mercedes, totalmente diferente, ao ponto do qual conhecemos e podemos ver no museu em Balcarce: para além de um Maserati 250F, apenas estão expostos os carros da marca alemã.
Mas há um final feliz nesta historia turbulenta italo-argentina: em 1968, Fangio regressa à Europa para participar nas 96 Horas de Nurburgring, a "Marathon de la Route", com o IKA-Torino, o derivado do Rambler americano que se tornou num "carro nacional argentino" que até passou para as mãos da Renault para se chamar "Renault Torino". "El Chueco de Balcarce" recebeu um convite de Maranello, e depois de um longo dia, aparentemente esclareceram as coisas e a relação melhorou bastante. E Ferrari mencionou isso nas edições seguintes da sua autobiografia.
"Também isso é a coragem de Fangio. É um traço de nobreza que estou disposto a reconhecer-lhe, além da reencontrada amizade."
As Minhas Alegrias Terríveis, pag. 266.
Em suma, é um livro que merece estar na estante de qualquer amante de automobilismo.