Jackie Stewart disse certo dia que no seu tempo, o sexo era seguro e o automobilismo perigoso. Lá isso é verdade, mas parece que, nos tempos que correm, as atitutes e as mentalidades mudaram um pouco de, por exemplo, do ano que nasci. Porque no ano da graça de 1976, num dos campeonatos mais interessantes da história da Formula 1 - lembrem-se, Hollywood fez um filme sobre ele - os ingleses foram privados de o assistir. E por uma razão: um preservativo.
Conhecia a história, mas pensava que tinha sido apenas no GP britânico. Sabia que a BBC apenas tinha começado a acompanhar fortemente o mundial de Formula 1 em 1978, mas que passava Grandes Prémios britânicos desde há algum tempo - e desde 1970 a cores, com comentadores como
Raymond Baxter, Jackie Stewart e o próprio
Murray Walker. Mas
a história que a BBC conta hoje e que fui buscar do Facebook de
Alastair Caldwell - sim, esse Alastair Caldwell! - demonstra até que ponto as coisas vistas pelo prisma atual podem ser consideradas como... ridiculas. E tudo por causa de uma ideia arrojada de uma marca de preservativos.
Primeiro que tudo, temos de colocar as coisas num panorama geral. A BBC não gostava da patrocinios em eventos desportivos, e a Formula 1 entrava num canto de tolerância por causa dos carros que já tinham marcas estampadas nos seus carros. Noutras modalidades, por exemplo, isso não acontecia. O futebol, numa era pré-Premiership, e amuito antes dos milhares de milhões de hoje, não tinha publicidade nas camisolas.
A BBC, como já disse, transmitia algumas corridas do campeonato, como a Grã-Bretanha, Mónaco, França, Itália, Alemanha e pouco mais. Não fazia a transmissão de todas as corridas. Mas no final de 1975, John Surtees, campeão do mundo de Formula 1 em 1964 e construtor por seu próprio direito desde 1970, assinou um contrato com a London Rubber Company, que tinha a marca Durex, marca de... preservativos. Lembrem-se, o HIV só foi reconhecido como ameaça pública sete anos depois, em 1983, altura em que os médicos recomendaram os preservativos nas relações sexuais protegidas, para evitar espalhar a doença.
Quando a BBC soube da apresentação pública do carro com o logotipo da Durex - uma apresentação bem discreta, com a presença da Miss Inglaterra, Vicky Harris - a cadeia de televisão disse que tal coisa seria inaceitável pelos seus "padrões morais".
Murray Walker conta sobre isso num certo capítulo na sua autobiografia. Quando se deslocou a Brands Hatch para cobrir a Race of Champions, no inicio desse ano, contou a seguinte conversa:
"Pelos padrões da BBC, o logotipo da Durex visível [no chassis] era algo totalmente inaceitável para a visão da família britânica.
"Quando cheguei em Brands Hatch [para a Race of Champions] fui recebido pelo produtor Ricky Tilling, que começou por falar:
- Ei Murray, saberemos por volta das onze horas se vamos estar no ar ou não.'
- O que estás a falar, Ricky?
- Durex. Nós não vamos transmitir a corrida a menos que a Surtees concorde em tirá-lo dos seus carros."
Não houve acordo, logo, a BBC arrumou as câmaras e abandonou a pista.
A razão pelo qual tal coisa aconteceu tem a ver com dinheiro. Quem conhece a história de Surtees como construtor - que durou de 1970 e 78 - sabe que não houve muito sucesso. Com pilotos como Mike Hailwood, José Carlos Pace, Jochen Mass, Alan Jones, John Watson e Vittorio Brambilla nas suas fileiras, nunca conseguiu mais do um segundo lugar como melhor resultado, e três voltas mais rápidas. Surtees sempre lutou para ter dinheiro suficiente para pagar as contas dos seus chassis, quer para a Formula 1, como para a Formula 2, e qualquer patrocinador era bem vindo. Mas os mais chorudos eram as tabaqueiras, e essas iam para a McLaren ou para a Lotus, e não para a Surtees. Então, quando a London Rubber Company lhe deu uma consideravel soma de dinheiro - nas palavras do próprio Surtees - ele não hesitou em aceitar, desconhecendo a reação da BBC.
"Eu disse a eles que teríamos que conversar e fazer isto de uma maneira muito saudável e apresentável - começou por contar "Big John", agora com 82 anos - eu pensei que aquilo iria causar um rebuliço, mas a verdade é que não havia nada desprezível sobre isso e nós não estavamos a quebrar qualquer regra", continuou.
"[Aquele patrocinio] revitalizou a equipa e deu-lhe uma segunda chance", concluiu.
Jonathan Martin, produtor do programa Sportsnight em 1976, contou que o patrocinio "causou uma agitação ao nível da gestão de topo" na BBC e ITV, que também transmitam ocasionalmente a sua corrida de Formula 1.
"As corridas de Grande Prémio já tinham um lugar especial [na programação] e quando a Durex apareceu nas laterais de um carro, havia certas pessoas ao nosso redor um pouco encolerizadas", disse ele.
Resultado final: um boicote não-oficial aos Grandes Prémios. Os ingleses só viram, por exemplo, o que aconteceu em Brands Hatch, a 18 de julho, palco do GP britânico, num resumo passado uma semana depois na televisão britânica. E sem qualquer Surtees nas imagens, numa altura em que outras marcas tinham patrocinios mais... estranhos. Como por exemplo a Hesketh, que tinha pintado no seu chassis a revista para adultos Penthouse.
O boicote acabou por ser levantado no final da temporada por uma boa razão: James Hunt tornou-se candidato ao título, e após a sua vitória em Watkins Glen, a diferença entre ele e Niki Lauda tinha ficado reduzida a dois pontos, com tudo a ser decidido no Japão. Os direitos televisivos foram adquiridos para serem transmitidos para todo o mundo, e a BBC, em conjunto com a ITV, decidiram que entre transmitir um carro com marca de preservativo e ver um britânico campeão do mundo, James Hunt levou a melhor. E às 3 da manhã do dia do Grande Prémio, milhões estavam acordados para ver correr vários carros debaixo de chuva.
No final, Surtees disse que a decisão da BBC teve consequências. "Foi puramente uma questão da BBC tomar a sua própria decisão. Do ponto de vista desportivo, estava muito infeliz", disse. "Eu achei que eles foram mal aconselhados, considerando as inumeras agências governamentais que vão lá fora, promovendo esses produtos."
Martin, que depois se tornou no diretor desportivo da BBC e promoveu a transmissão das corridas de Formula 1 a partir de 1978, consegue ver ambos os lados da questão.
"Em retrospectiva, [o patrocinio da Durex] foi uma coisa bastante provocatória de se fazer. Ele estava dentro dos seus direitos em arranjar este patrocinio, da mesma maneira que as emissoras estavam no seu direito de não transmitir", disse ele.
"Eu acho que levou as emissoras aos seus limites, porque a Formula 1 já tinha uma dispensação especial em comparação com muitos outros desportos", concluiu.