(continuação do episódio anterior)
A PRIMEIRA CORRIDA EM CIRCUITO
O ano de 1896 mostrou ser decisivo para o automobilismo. Era uma modalidade em clara ascensão de popularidade, quer nos Estados Unidos, quer na Europa. Mas é a partir deste ano que ambos os lados do Atlântico começam a pensar em várias maneiras de corrida. Se a Europa aposta nas competições de cidade para cidade, num exercício de "endurance" das máquinas, nos Estados Unidos, procuravam-se novas formas de corrida, no sentido de conseguir algo tão tipicamente americano: o lucro.
Após a realização de mais uma corrida em Nova Iorque, a 30 de maio, e patrocinada pela revista "Cosmopolitan" (sim, essa mesma!) entre Nova Iorque e a cidade de Irvington-Hudson e volta, onde apareceram seis carros e Frank Duryea venceu com o seu carro, em principios de setembro, os organizadores da Feita Estatal de Rhode Island decidiram aproveitar a pista de cavalos de Narragansett Park para efetuar uma série de provas... em circuito fechado. A pista tinha 1,7 quilómetros de extensão e apareceram vários inscritos, onde para além dos Duryeas, também apareceu um Riker de energia elétrica, tripulado pelo seu inventor, A.L. Riker. No final, e perante 50 mil espectadores, Riker levou a melhor sobre quatro Duryeas e foi declarado o vencedor.
Contudo, os organizadores e os espectadores foram os mais beneficiados: os espectadores viram toda a ação do principio até ao fim, e os organizadores ganharam um bom dinheiro, ao cobrar entradas. E mais ainda: lançaram as sementes para o futuro, pois apesar de ser provisório, este veio a ser o primeiro circuito de automóveis do mundo. Outros viriam a seguir.
Se na América as coisas ainda eram muito novas, na Europa o desafio continuava a ser a distância. O Automobilie Club de France (ACF), fundado no final do ano anterior, decidiu organizar uma corrida nos moldes do Paris-Bordéus-Paris de 1895. E o desafio era grande: uma corrida até Marselha e volta, uma prova de 1710 quilómetros. Para evitar cansaços e acidentes desnecessários, a prova foi dividida em dez etapas diárias. O anuncio e as regras, foram anunciadas em fevereiro na revista da ACF, o "La France Automobilie", e rapidamente, houve trinta e dois inscritos: sete De Dion-Bouton (que inscrevia três carros a gasolina e dois a vapor), cinco Bollées (quatro tandems e um carro a vapor), quatro Panhards, três Peugeot, dois Delahayes, dois Societés Parisiennes e dois Triouleyres, para além das inscrições individuais de Rochet-Schneider, Tissandier, Rossel, Fisson, Landry e Beyroux, e Lebrun.
A Delahaye era uma companhia fundada dois anos antes por um engenheiro, Émile Delahaye. Desde a década de 1880 que fazia experimentações com máquinas a vapor, e depois com combustão interna, e quando começou a ver os primeiros automóveis a circular, achou que o futuro estaria por ali. Em 1894, construiu um carro de quatro lugares e o expôs no primeiro Salão Automóvel de Paris, e começou a pensar nas corridas como forma de publicitar os seus produtos. Neste Paris-Marselha-Paris, Delahaye iria conduzir ele mesmo um carro, enquanto que o outro seria guiado por Ernest Archdeacon, um dos participantes do Paris-Rouen, dois anos antes.
Os dois Societés Parisiennes eram dois Benz Viktoria construídos sob licença, com motores de 4,5 cavalos de potência, e guiados respectivamente por Guyonnet e por Charles Labouré. Quanto ao Tissandier, era uma construção de Gaston Tissandier, um químico, aventureiro e engenheiro, que tinha feito fama no campo da meteorologia e da aviação, começando na Guerra Franco-Prussiana, em conjunto com o seu irmão Albert. Para além disso, tinha fundado a revista La Nature. E para finalizar, os Triouleyres eram também dois chassis com motores Benz.
De resto, apareceram os "suspeitos do costume": De Dion, Levassoir, Doriot, Rigoulot, Bollée, Gaston de Chasseloup-Laubat. O carro inscrito (e conduzido) por Bollée tinha uma inovação: o seu carro tinha seis cavalos de potência, num motor de dois litros, mas tinha um volante para conduzir, em vez de uma "manette".
A 24 de setembro, quatro dias depois de uma prova de seleção entre Paris-Mantes-Paris, para triciclos com 150 quilos, os 32 concorrentes alinharam na Place de L'Etoile para o inicio de mais de uma aventura. Uma multidão tinha acorrido para ver os carros, e os pilotos tiveram dificuldades em passar pela multidão. Tal que o Fisson de Ferté atropelou um espectador, ferindo-o gravemente.
Saídos da confusão de de Paris, o Conde De Dion assumiu a liderança no seu carro a vapor. Contudo, os pneus que calçava, apesar de serem velozes, eram pouco resistentes e desintegraram-se antes de ele chegar ao final da primeira etapa, de 178 quilómetros, com chegada a Auxerre. O seu rival, Émile Levassoir, teve dificuldades quando uma roda ameaçou saltar do seu carro, mas conseguiu reparar o problema. Mas no final do primeiro dia, era outro Levassoir que liderava, o de Émile Mayade. Levassoir andava com o carro de seis cavalos no qual venceu o Paris-Bordéus do ano anterior, enquanto que Mayade andava com um modelo mais evoluído, de oito cavalos.
Contudo, quem liderava no final do primeiro dia era o senhor Lejane, a bordo do seu triciclo Bollée, e a leveza do veículo fazia com que ele tivesse a uma espantosa média de 34 km/hora.
A segunda etapa, entre Auxérre e Dijon, ocorrida sob uma enorme tempestade, com ventos fortes que faziam parar os carros na estrada, ou os forçava a ir à valeta. Uma das vítimas foi Amedée Bollée, que colidiu contra uma árvore caída no chão, enquanto que outro dos Bollée era irremediavelmente danificado por... um boi tresmalhado!
Mesmo com todos estres precalços, Émile Levassoir passou para a frente da corrida e chegou a Dijon com duas horas de avanço para o resto dos concorrentes. Mas no dia a seguir, quando rolava perto de Avignon, e já era o líder mais do que destacado, um cão atravessou-se na frente do seu carro e provocou um acidente, pois acabou por ser cuspido para o chão. Ferido, insistiu em prosseguir até à meta, onde recebeu tratamento hospitalar. Mas ele mal sabia que tinha acabado de ser a primeira vitima mortal do automobilismo.
A última etapa de ida ligava Avignon a Marselha, e todos aumentaram a sua média de velocidade, graças também ao vento que lhes soprava por trás dos seus carros. Levassoir entregou o carro ao seu mecânico Charles D'Hostingue, no sentido de tentar recuperar dos seus ferimentos, enquanto que Viet acabou por ser o vencedor, conduzindo um triciclo De Dion.
O caminho de regresso começa com os carros a voltarem a fazer o mesmo percurso de ida. Primeiro, entre Avignon e Marselha - onde Viet venceu de novo com o seu triciclo De Dion - e Merkel venceu o percurso entre Avignon e Lyon, ele que tinha vencido no percurso de ida. Por esta altura, Émile Mayarde assumia a liderança de Levassoir e começava a aumentar a distância, vencendo as três etapas finais, até Paris. Ali, uma multidão recebeu-o em delirio na Porte Maillot. Feitos os devidos calculos, Mayarde tinha vencido sobre Merkel por uma diferença de 29 minutos, dando uma "dobradinha" à Panhard e Levassoir. Viet, no seu triciclo De Dion, completou o pódio, com um atraso de três horas e meia, mas 22 minutos de avanço sobre o carro guiado por Émile Levassoir e Charles D'Hostingue. Tempos depois, o carro vencedor iria ser comprado por
Charles Rolls, um dos fundadores da Rolls-Royce.
No final, dos 31 carros inscritos à partida, apenas 14 chegaram à meta, mostrando até que ponto esta era uma prova de atrição. Mas o sucesso foi enorme, pois o público seguiu atentamente os acontecimentos, via telégrafo, quer em Paris, quer no resto da França. Mas toda esta popularidade iria ter consequências.
(continua no próximo episódio)