Quando era garoto, no alto dos meus onze, doze anos, inventava calendários, equipas e pilotos de Formula 1, fazendo combinações de nomes estrambólicos que até calhavam bem. Falamos do final da década de 80 do século passado. Guardava tudo isso em "dossiers", folhas de papel agarradas ou soltas, que ainda tenho guardado, mais de trinta anos depois. Ao remexer nesses papeis, há uns dias, quando fiz a minha visita à garagem, do qual desço raramente sem ser para retirar carros - apesar de ter uma mesa de bilhar como atração, por exemplo - tirei longos minutos a olhar para esses papéis de adolescente e ler as minhas equipas imaginárias, pilotos e circuitos.
Quase por coincidência, colidi com um artigo do Joe Saward escrito na americana Autoweek sobre o seu "calendário de sonho", no qual ele metia 22 corridas, espalhadas pelo mundo inteiro, e claro, pensei que cada um tem a sua ideia na cabeça. E na discussão sobre o tamanho do calendário, redescobri que, trinta anos antes, já sabia que haveria um limite para ter tantas provas. O melhor exemplo que tenho é um suposto calendário de 24 provas, onde eu, um pré-adolescente, antecipava os "doublehaeders" e os "tripleheaders" e tinha a consciência de que havia um limite para tudo. E isto, numa altura em que a Formula 1 se corrida com 16 provas.
Claro, a minha imaginação tinha limites. Não pensava em corridas no Médio Oriente e na China, julgava que três provas em África seria o "futuro" da Formula 1, pelo menos na minha imaginação. Mas com isto tudo, agora, já adulto e a caminho da meia-idade, volta-se a pensar no que seria o "calendário ideal", agora que sabemos sobre o regresso de uma segunda corrida a terras americanas, a primeira desde 1984. E também isso se fala em tempos onde iremos entrar na "pós-pandemia", onde se discute, por exemplo, sobre novos meios de comunicação, o sucesso do "Drive to Survive" no Netflix, entre outras coisas, economias globalizadas, etc, etc.
Assim sendo, decidi voltar aos meus tempos de adolescente, pegar nesses papéis e (re)imaginar o calendário da Formula 1 à minha maneira, nos meus critérios. Claro, cada um faz o seu calendário, está no seu direito.
Vou usar quatro critérios:
- Um país por corrida.
- Número máximo de 22 provas.
- Dinheiro não conta, mas direitos humanos sim.
- Capacidade do circuito ser desafiador para pilotos e espectadores.
1 - Buenos Aires
Começo a Formula 1 na Argentina, em janeiro. Não é anormal - a Formula 1 sempre fez isso quando ia a Argentina, porque janeiro é verão austral, enquanto na Europa, a grande maioria dos circuitos estão sob uma camada de neve. O país é apaixonado pelo automobilismo - acho que os campeonatos locais são os mais subestimados do mundo - e a sua grandeza permite que tenham quase 40 circuitos. Sim, leram bem: quarenta. Nem todos tem capacidade de receber corridas de automóveis sem serem totalmente renovados, mas há alternativas ao Oscar Galvez, em Buenos Aires. Há o Termas del Hondo, que recebe a MotoGP, há o Villecum, no sopé dos Andes, construído recentemente e está dentro dos critérios da FIA, e há Potrero de los Funes, em San Luis.
Mas ficaria por Buenos Aires por alguns motivos: é a capital, está perto do aeroporto, e os outros circuitos estão longe ou não tem infraestruturas para poder mover em termos logisticos. Para vos dar uma ideia: Potrero de los Funes está a mais de 1500 km da capital, e o seu aeroporto mais próximo está a 40 km da cidade... e não é um aeroporto internacional. Logo, um Oscar Galvez com um complexo mais moderno seria o ideal.
2 - Interlagos
No final dos anos 80 do século passado, Rio de Janeiro era ideal: tinha praia, calor, a pista à beira do mar, todas as equipas iam fazer ali os testes de inverno. Agora, a pista foi destruída porque receberam os Jogos Olímpicos, construir uma nova vai ser uma saga que não acabará tão cedo, e pistas brasileiras com Grau 1 não há muitas, apesar da vastidão do território. Assim sendo, Interlagos, em São Paulo, é o sitio ideal para correr por ali. A pista é clássica, mas constantemente modernizada, é feita contra os sentidos do relógio, o que é raro e os pilotos tem dificuldade em adaptar-se e claro, enche sempre de adeptos apaixonados. Claro que, a acontecer no final de janeiro, principio de fevereiro, seria uma complicação devido ao calor, mas a visão de camiões de bombeiros a regar espectadores, como acontecia em meados dos anos 70, teria a sua graça...
3 - Algures na África do SulIndo para África era o que fazia a Formula 1 entre o final de janeiro e o inicio de março, para aproveitar o verão austral. Chegou a haver o cúmulo onde os pilotos comemoravam por lá o Ano Novo porque no dia seguinte... haveria corrida.
Mas Kyalami foi totalmente renovada em 1988, e a Formula 1 regressou em 1992 e 93 numa pista totalmente diferente dos anos 70. Era algo sinuosa e lenta, não era tão desafiante como anteriormente. Quando não foi renovado para a temporada de 1994, os pilotos não tiveram muitas saudades. Mas foi modernizada e os organizadores querem o Grau 1 da FIA para receber a Formula 1 e a Endurance - reavivar as Nove Horas de Kyalami, para ser mais preciso.
Mas há uma alternativa, pouco falada. Perto da cidade de Welkom, no Estado Livre de Oranje, a uns 350 km a sul de Joanesburgo, há o circuito de Phakisa, aberto em 1999 e usado para provas de motociclismo, com a MotoGP a correr entre 1999 e 2004. Tem uma oval e um circuito dentro dela, estilo Daytona ou Motegi, e não seria má ideia se fosse uma alternativa a Kyalami. Contudo, como por exemplo acontece com os circuitos argentinos, é longe dos centros urbanos e sai prejudicada.
Uma outra alternativa seria um circuito de raíz na zona da Cidade do Cabo, pois o cenário de ver a Formula 1 a correr com a Table Mountain no fundo valeria a pena. Portanto, comigo... Kyalami não era uma opção cem por cento segura.
4 - Marrocos ou Angola
A ideia marroquina já aconteceu num passado muito distante, mas na última década, ganhou força com a construção de uma pista semi-urbana em Marrakesh. O WTCC e a Formula E já correram lá, mas a parte urbana estraga um pouco as coisas, embora se entenda o porquê, devido à proximidade do centro. Construir pistas de raíz seria uma boa alternativa, mas ali, o petróleo não abunda, e o critério tinha de ser muito bem feito.
Outra alternativa africana pode ser Angola. No tempo colonial foram construídos dois circuitos, um em Luanda e outro em Benguela, com condições para receber a Formula 1, caso o projeto crescesse e amadurecesse. Mas isso foi em 1972, e entretanto, a agitação que foi a independência e a guerra civil, que durou até 2002, estragou os planos. Recuperar o circuito de Luanda, por exemplo, seria um bom principio, se tivessem aproveitado o "boom" dos anos do petróleo alto. Agora, esse tempo passou, e a oportunidade foi-se.
Sendo assim, uma corrida em Marrakesh - Rabat ou Casablanca seriam boas alternativas, se construírem circuitos de raiz - seria uma boa ideia para uma segunda prova em África.
5 - Portimão
Acho que toda a gente está conquistada com estas duas visitas ao Autódromo de Portimão nestes tempos de pandemia. Colocar esta corrida como a etapa inicial da Formula 1 em terras europeias seria excelente quer para os espectadores até à economia local, pois não colidira com a épica alta do turismo, numa região onde ela é a sua principal industria. Os saudosistas podem pensar no Estoril, que tem Grau 1, mas não há muito espaço para expansão, infelizmente.
6 - Espanha, mas onde?
Há 40 anos, só havia um circuito permanente em Espanha: Jarama, nos arredores de Madrid. Desde então, construiram-se quase uma dezena de circuitos como Jerez, Barcelona, Aragão, Navarra, Valencia - dois, um urbano e o Ricardo Tormo, nos arredores - para além de pistas mais pequenas, umas privadas, outras nem tanto.
Barcelona seria o ideal, mas os pilotos queixam-se muito dela, por ser aborrecida. Uma boa alternativa poderia ser Jerez, mas também não é um pista fantástica, e os pilotos não se entusiasmam muito com ela. Claro, em termos logísticos seria o ideal - 338 quilómetros - mas o que seria um descanso para a logistica, não é um entusiasmo para o resto.
O circuito de Aragão seria algo interessante de se ver. Está longe dos grandes centros - fica em Alcaniz - mas o desenho da pista parece ser entusiasmante. Apenas a MotoGP andou por ali, mas nunca se sabe. Ricardo Tormo também tem o seu interesse, e as bancadas permitem ver o circuito todo, mas falta aquele "wow factor", ou seja, o deslubramento.
7 - Paul Ricard ou Magny Cours?
Correr em França deve ser um daqueles sitios que deveria ficar inscrito na pedra, como na Grã-Bretanha ou Itália. Corremos ali e pronto. Mas há problemas que existiam no tempo em que fiz esse calendário imaginário e não foram resolvidos, uma geração depois.
Paul Ricard tem meio século e quando apareceu, todos diziam que tinham chegado ao século XXI. Mas tem um grande problema: os acessos são um pesadelo. As estradas não aguentam todo um fluxo de trânsito que seria necessário para as pessoas entrarem e saírem de lá. A alternativa seria Magny-Cours, situado no meio do país, mas tem um defeito: o ser no "meio de nenhures" é mesmo o deserto: não há uma auto-estrada que sirva aquela região, e quem consulte um guia de estradas Michelin sabe que tão cedo não haverá uma.
Contudo, indepentemente do local, fazer isto um atrás do outro poderia ser aqui o meu primeiro "tripleheader", porque se percorrem pouco na movimentação dos camiões com os carros e demais peças, e qualquer coisa que possa ser transportada do Reino Unido, esta bem servida de estradas e aeroportos. Aliás, Paul Ricard tem um aeroporto ao lado do circuito, por exemplo...
8 - Mónaco
Eles têm de estar ali e pronto. A minha única dúvida era saber se fazia quatro de uma vez ou abria um intervalo de 15 dias entre Espanha e França. Talvez faria esse último, porque esta corrida tinha de calhar em maio.
Interlúdio:
Aqui, eu chego a uma bifurcação, porque normalmente é a altura da Formula 1 ir ao Canadá, correr em Montreal. Junho é a altura ideal para correr, porque setembro é complicado, pois ora apanhas sol, ora apanhas chuva e frio quase glacial. A alternativa seria estar em conjunto com outras provas na América, porque uma visita isolada, como fazem agora - excepto nos últimos dois anos devido à pandemia - creio ser um desperdício de recursos. Contudo, ir ao Texas em junho é um convite a um forno. É como ir a Montreal em setembro e teres o azar de estarem 5 graus Celsius e ameaças de neve. Como quase aconteceu em 1978, a meio de outubro, na primeira vez em Montreal.
Então, como decidirei isto? Isso eu deixo para o próximo episódio, não se importam?