Faz hoje exactamente vinte e cinco anos. Já parece ser muito tempo, mas parece que ainda me lembro de o que estava a fazer quando a noticia foi dada na televisão. Sabia-se que o Rali Paris-Dakar era duro e longo, mas no meu caso, na inocência dos meus nove anos de idade, desconhecia que também poderia ser mortal. E recordo-me nos dias seguintes das angustias sobre o futuro desse mesmo rali após a morte súbita e trágica do seu fundador - e para muitos, a sua alma - do Dakar: Thierry Sabine.
Os eventos que irei descrever nas linhas a seguir mostram até que ponto a sorte e o acaso andam de mãos dadas. E que como é que algumas das figuras desta história escaparam de uma morte violenta, ou então a razão pelo qual foi o puro azar que os fez parte desta história. Pelas piores razões. E como isto tudo ainda tem uma certa aura de mistério, que até alguns acreditam na teoria de sabotagem, dados os envolvidos nesta acidente mortal.
A 14 de Janeiro de 1986, o Rali Paris-Dakar fazia a etapa entre Niamey, a capital do Niger, e Gourma, no Mali, no total de 843 quilómetros. A caravana já estava no Sahel, onde o deserto dava espaço à terra, com arvores esparsas aqui e ali. Já não faltava muito para o final do evento, em Dakar, mas ainda que percorrer o suficiente para chegar à capital senegalesa.
O rali corria bem em termos de concorrentes, apesar de uma sombra sobre ela logo no segundo dia, quando o motard japonês Yasuiro Kaneko tinha sido vitima mortal de uma colisão em Sête, ainda em território francês, com um condutor de um automóvel que dpeois se verificou estar alcoolizado na hora do acidente. Para Sabine, isso não lhe augurava nada de bom. Tinha dito numa entrevista, semanas antes, que esperava algo de surpreendente na edição desse ano do Dakar, só não sabia o quê.
Como organizador, Sabine tinha de estar atento aos detalhes. Desde falar com as autoridades dos paises onde a caravana passava para facilitar a passagem pelas suas fronteiras e garantir a segurança dos concorrentes e das populações onde passavam, pois os atropelamentos começavam a ser frequentes, até assistir a algum concorrente perdido ou ferido em algum acidente. E nesse dia, as coisas não seriam diferentes: como começava num país e acabava noutro, tinha que lidar com burocracias de ordem alfandegária. E era por isso que tinha um helicóptero Ecreuil branco sempre à mão.
Pilotado pelo suiço Francois-Xavier Bagnoud, para além de Sabine, havia normalmente mais três ocupantes nesse helicóptero: o técnico de rádio Jean Paul Le Fur, o jornalista Jean-Luc Roy e o fotógrafo Yann-Arthus Bertrand, famoso anos depois pelo conjunto de fotografias que resultou no álbum "A Terra vista do Céu".
O dia tinha começado em Niamey com algum vento forte, do qual teriam de ter algum cuidado. Sabine ocupa o seu lugar na organização, até que o chamam a meio da tarde à fronteira entre o Niger e o Mali para resolver um problema burocrático: as autoridades malianas não deixavam passar os camiões da "Paris du Coeur", uma organização não-governamental que providencia furos de água às aldeias onde passa a caravana do rali. E é aqui que Sabine se cruza de novo com outra personagem deste evento: o cantor a activista Daniel Balavoine.
Daniel Balavoine. Tem 33 anos e é por esta altura um dos cantores mais famosos do hexágono francês. Para além do sucesso musical, é militante activo de várias causas, que vão desde a Amnistia Internacional até ao SOS Racisme. Politicamente, era um critico do sistema, a sua entrada mediática tinha acontecido em 1980, quando em directo num programa de televisão, ter acusado os politicos presentes, nomeadamente o socialista Francois Miterrand - que dali a um ano iria ser eleito presidente - de ignorar os problemas da juventude. Apaixonado por Africa, irá participar como concorrente em duas edições do rali, e quando tomará conhecimento das condições subhumanas do Norte de Africa, irá aproveitar o Dakar para fazer activismo solidário. Em 1986, estava no Dakar numa acção em conjunto com a organização, no sentido de colocar bombas de água nas aldeias de onde passaria a caravana do rali.
O problema é resolvido somente pelas 16 horas, com ordens de Bamako para deixar passar os camiões. Pouco depois, todos seguem para a zona de Gao, onde tinham organizado um jogo de futebol em honra de Sabine e do Rali Dakar. A cerimónia demora mais tempo do que o previsto, e quando terminou, a noite já se aproximava (eram quase 18 horas) e a caravana já tinha avançado muito.
Quando estavam para partir, um avião vindo de Bamako, a capital do Mali, tinha acabado de aterrar. E aqui se começa a jogar a sorte e o azar. Roy e Bertrand apanham o avião e resolvem ceder os seus lugares para quem quisesse. Sabine convida Balavoine para o seu helicóptero onde, após algum tempo de hesitação, acaba por aceitar. O vôo é breve, até Gossi, onde há um checkpoint.
Quando chegam, e enquanto que Sabine fala com os concorrentes e com a organização, o vento - que até então tinha ficado amainado - volta em força. Apesar de haver pó e a pista ser marcada, havia dunas aqui e ali no caminho. Com a noite a aproximar-se, não podiam ficar ali por muito tempo e voltam a levantar vôo, desta vez com a companhia da jornalista Nathalie Odent, que tinha o hábito de aproveitar boleias de tudo que mexia. Aparelho errado, à hora errada.
Ao levantar, seguem o rio Niger, não muito longe dali, evitando correr riscos desnecessários, pois a tempestade se tinha fortalecido. A oito quilómetros da meta, em Gourma, o helicópetro poisa, incapaz de ir mais adiante devido ao deterioramento das condições meteorológicas. Mas Sabine tinha visto um carro avariado e decidira pousar ali para os assistir. Depois de lhes dizer para que assinalassem a sua posição e ficassem à espera de socorro da organização, voltou para o helicóptero e decidiu tomar uma decisão arriscada e fatal: voar até Gourma.
O Ecreiul descolou, mas não andou mais do que duizentos metros: aparentemente, um golpe de vento os fez desiquilibrar e ir ao encontro de uma duna, onde as pás do helicóptero o fizeram embater e cair no solo. Todos os ocupantes tiveram morte imediata. Thierry Sabine tinha 36 anos.
Quando a noticia do acidente mortal chegou a França, o choque foi enorme. Sabine e Balavoine eram nomes famosos e consagrados e o assunto fez parte das primeiras páginas nas semanas a seguir. Houve um inquérito sobre asa causas do acidente mortal, mas de modo surpreendente, as suas conclusões nunca formam publicadas. Pouco depois, todo o tipo de teorias puluavam: desde uma picada de escorpião que um dos ocupantes teria sentido quando este esteve no solo, enquanto que Sabine assistia os ocupantes do jipe, até à cedência do comando a Sabine, passando por sabotagem e um ataque de guerrilhas "touaregs". Algumas das hipóteses foram rapidamente desmentidas, nomeadamente a da cedência de comando (Sabine não tinha licença para pilotar à noite), mas ainda existe algum mistério. Contudo, o adiantado da hora e as condições do tempo, nomeadamente um golpe de vento, poderão ter contribuido para o trágico fim.
Hoje, vinte e cinco anos depois, o espirito do Dakar sobrevive ao seu criador, mas há muito que abandonou Africa. As dificuldades politicas e as ameaças de terrorismo devido ao seu crescente mediatismo, que fizeram com que se cancelasse a edição de 2008, fizeram com que mudasse de continente. Hoje, as cinzas de Sabine estão perto do local onde morreu, no Mali, num sitio chamado adequadamente de "Arvore de Thierry Sabine", uma das poucas existentes na zona. Quando ao Dakar, hoje em dia para muitos dos "puristas" pode nada significar, mas hoje em dia muitos aventuram-se na competição graças à frase do seu fundador cunhou no seu inicio, em 1979, significando que mesmo estando na segurança da América do Sul, o espirito da competição e o apelo do deserto nunca morrerá. "Um desafio para os que partem, um sonho para os que ficam".