Era uma vez um rapaz de olhos azuis. Apaixonou-se por um desporto perigoso e tornou-se bom naquilo que fazia. Aos poucos, tornou-se na esperança de uma nação inteira para que este conquistasse o título de campeão. Consciente disso, o melhor piloto de então, e também seu melhor amigo, decidiu ajudá-lo para que tivesse o mesmo sucesso do que ele.
Quando achava que tinha feito todo o que tinha, decidiu reformar-se e entregar o volante para ele e concretizar o sonho de toda uma nação. Mas na sua última corrida, quando o mestre se prepara para abandonar, vê ao longe um fumo negro. Com medo, aproxima-se e vê o seu pior pesadelo, ao ver o seu discípulo favorito, morto no meio dos destroços do seu carro. Abandona a competição, desgostoso, com esse golpe profundo no coração, e vive o resto dos seus dias a pensar no que poderia ter sido se tivesse sobrevivido a aquele dia.
Quem me segue regularmente, sabe que falo frequentemente de
Francois Cevért. Hoje deveria ter sido o seu 68º aniversário natalício, e nos últimos tempos tenho descoberto que cada vez mais e mais "petrolheads", cada vez mais novos, ficam fascinados com ele. Pessoas que não eram nascidas quando ele viveu, pessoas que provavelmente os seus pais ainda eram crianças quando o piloto francês correu e morreu, naquele 6 de outubro de 1973. De uma certa maneira, sempre achei que aqueles olhos azuis eram faiscantes, hipnóticos até, o seu físico atlético, a sua face e corpo de Adónis poderá ter ajudado um pouco no fascínio que as pessoas tinham por ele quer na altura, quer nos dias de hoje.
A psicologia tenta explicar os mitos. O automobilismo, como todos sabem, está cheio deles. Na Formula 1, é só escolher: Alberto Ascari, Wolfgang Von Trips, Jim Clark, Jochen Rindt, Ronnie Peterson, Gilles Villeneuve, Ayrton Senna. Nos ralis, há bem menos, mas existem: Henri Toivonen e Colin McRae. No Brasil, "santificou-se" o piloto brasileiro até ao ponto de saturação, ajudado por uma cadeia nacional que "surfou" no sucesso dele - e de Nelson Piquet e Emerson Fittipaldi, antes - e que se sente órfão porque era o simbolo do "Deus é brasileiro", ou se perferirem, um ufanismo nacionalista quase levado ao extremo. Na campa de Senna, no Cemitério do Morumbi, em São Paulo, nunca irão faltar flores e muitos mais novos falarão dele com tanta convição do que aqueles que viram toda a sua carreira, como eu, por exemplo.
Num grau tão grande como Senna, fala-se de Villeneuve. Ainda por cima, este ano, comemora-se o 30º aniversário da sua morte, no final de semana de Zolder, na Belgica. E se outro dia vos mostrei a galeria de fotos do belga Carlos Ghys sobre esse dia fatídico de 1982 - a minha segunda memória mais antiga da Formula 1 - direi que esses mitos, agora alimentados pela Internet 2.0, graças a vídeos do Youtube, galerias do Facebook ou blogs e afins, fazem com que surja uma nova geração de pessoas, adolescentes e pré-adolescentes, que ficam fascinadas por personagens de um passado distante, mortos muito antes de nascerem, mas que graças a fãs dedicados e amigos pessoais, não deixam a sua memória desaparecer.
Não vi Cevért correr. Nem Jim Clark, nem Ronnie Peterson. Apanhei Gilles Villeneuve no dia em que morreu. Mas vi a ascenção, auge e final trágico de Ayrton Senna. e no tempo em que vivi, entendi a razão porque esta gente ainda vive muito depois de terem morrido. O que fizeram, a sua maneira de estar na vida, a adrenalina da velocidade, o "do or die", o "viver depressa e morrer jovem", é tudo demasiado bom para deitar fora. Alimenta o mito, qualquer mito, seja automobilístico, motociclismo ou não. Olhem agora para os exemplos de Amy Winehouse e Whitney Houston, mortas na flor da idade, e uma delas a alimentar o mito do rockeiro "Clube dos 27", do qual o automobilismo contribui dois membros: o galês Tom Pryce e o alemão Stefan Bellof.
Mas aos que nunca viram uma morte em direto, quero dizer-vos que estes cadáveres não ficaram bonitos. Nunca vimos os cadáveres de Senna e Cevért, por exemplo, e o cadáver de Pryce, no seu Shadow destruído, em Kyalami, ainda hoje impressiona, quase 35 anos depois. E quem conseguiu ver a última imagem de Dan Wheldon vivo, em Las Vegas, no passado mês de outubro, a ser levado para o helicóptero, sabe que tinha uma toalha em cima da cabeça, para que não fotografassem as horríveis lesões cerebrais que tinha sofrido quando a sua cabeça bateu vezes sem conta nas redes de proteção daquela oval americana.