Ontem falei sobre os dias que antecederam o GP de França de 1914, que hoje passam 111 anos sobre a sua realização. Da rivalidade entre construtores franceses e alemães, onde a aparente superioridade francesa poderá estar a ser abalada pela cuidadosa preparação alemã, do qual estão aplicados desde há seis meses a esta parte.
E como a uns dias da corrida, a politica internacional apareceu de forma inesperada, de tal forma que, quando a corrida aconteceu, o continente estava mergulhado numa crise.
Se nos treinos, as coisas pareciam correr tudo bem para os alemães - apenas uma caixa de velocidades trocada - nas cores franceses, especialmente na Peugeot, a sensação era de desastre. Apesar de estrearem uma traseira aerodinâmica, a colocação dos pneus nessa parte dava cabo da distribuição do peso, e os carros ficavam desiquilibrados. Os pilotos passaram os treinos a se queixarem que o carro era difícil de guiar, especialmente quando guiavam a fundo. Era um mau sinal...
Mas isso não era dito aos espectadores. Quando chegou as as oito da manhã do dia 4, à volta do circuito estavam plantadas cerca de trezentas mil pessoas, que esperavam mais uma vitória francesa. E muitas mais estavam a caminho, por comboio, que sem dúvida, iriam falhar o inicio da corrida.
Os carros iriam partir com intervalos de 30 segundos. O primeiro de todos iria ser o húngaro Ferenc Szisz, o vencedor do Grande Prémio em 1906, num Alda. Boillot foi o primeiro a largar na armada Peugeot, e do lado da Mercedes, Max Sailer foi o primeiro. Na altura, pensou-se que foi ele o escolhido pela Mercedes para ser a "lebre", no sentido de atrair os franceses, mas na realidade... nunca houve um plano. Não oficialmente. A explicação mais provável era que Sailer não aceitou a hierarquia da marca - Lautenschlager era o primeiro piloto - logo, queria provar que era o mais rápido da equipa. Ou seja, tudo não passou de um ato de rebeldia.
Mas independentemente de ter sido espontâneo ou planeado, quando a Peugeot soube que Sailer liderava com 18 segundos de vantagem, esta ordenou a Boillot para o apanhar. Quando a Mercedes soube disso, ficaram contentes: tinham corrida.
A partir dali, tornou-se num concurso de velocidade entre Sailer e Boillot. Contudo, no final da terceira volta, o francês teve de ir às boxes para reparações, e Sailer ficou com a liderança. Começou a acelerar ainda mais e bateu a volta mais rápida, ficando com um avanço de quatro minutos sobre Boillot. Este reagiu e começou a aumentar ainda mais o ritmo, indo até ao limite. A corrida de Sailer acabou na sexta volta, com uma quebra mecânica no seu carro.
Lautenschlager, noutro Mercedes, ficou com a liderança, mas Boillot ultrapassou-o na volta seguinte. Jules Goux era o terceiro, enquanto nas voltas seguintes, Boillot aumentou o seu avanço para Lautenschlager para um minuto entre os dois. E isso alargou-se quando as paragens nas boxes para ele foram um desastre, deitando por terra os meses de ensaios. Mas, em compensação, os Dunlop eram mais frágeis que os Continental, e Boillot parava frequentemente para trocar de pneus, anulando a diferença.
Pela volta 17, a três do final, Boillot liderava com cerca de três minutos de vantagem. Contudo, quando foi para as boxes para trocar mais uma vez de pneus, e a diferença para Lautenschlager diminuiu para... 14 segundos. Ali, Boillot fez um último esforço, em seu nome, da Peugeot, e sobretudo... da França. contudo, quando os carros chegaram a Gisors, para voltarem à direita e seguirem o curso do rio, Lautenschlager passou-o. Mas Boillot não queria desistir. Só que o carro, totalmente desgastado pelo esforço, andava em apenas três cilindros, estava além do seu limite. Primeiro, o Mercedes, mais fresco, afastou-se do Peugeot, ficando a 30 segundos, e depois, no inicio da última volta, quando fazia um esforço final, o motor passou dos seus limites e explodiu. Boillot encostou o carro na berma e chorou compulsivamente, achando que a sua missão tinha falhado.
Para a Mercedes, foi uma vitória total. Monopolizaram o pódio, com Lautenschlager em primeiro, Wagner em segundo e Otto Salzer em terceiro. Jules Goux, no seu Peugeot, foi quarto, a 10 minutos do vencedor. A multidão estava em silêncio, a assistir à vitória alemã. Para eles, o triunfo na corrida mais prestigiada do automobilismo era a felicidade suprema, para os franceses, roçava a humilhação. E naquele dia, numa Europa em tensão, não era bom sinal.
Vinte e sete dias depois, a 31 de julho, França e Alemanha estavam em guerra. E mais 40 dias bastaram para que o exército alemão estivesse às portas de Paris, para ser detido por uma ofensiva desesperada do exército francês, perto do rio Marne. O automobilismo ficou parado por quatro anos, pelo menos na Europa.
Dos protagonistas desse dia, em Lyon, Lautenschlager retirou-se, e comprou uma casa com o dinheiro da vitória. Ficou como empregado da Mercedes até se retirar, mas no inicio dos anos 20, saiu da imobilidade para participar em algumas corridas, incluindo uma ida à Targa Florio, em 1922, onde foi décimo, e a Indianápolis, em 1923, onde não acabou. Morreu a 3 de janeiro de 1954, aos 76 anos, em Untertürkheim, nos arredores de Estugarda.
Em contraste, Boillot teve um final mais trágico. Quando a guerra começou, tornou-se motorista pessoal do General Joffre, o herói da Batalha do Marne, mas pouco depois, pediu transferência para o Corpo de Aviação, onde ali abateu suficientes aviões para se tornar num Ás. Contudo, a 21 de abril de 1916, quando voava em Verdun, foi cercado por cinco Fokkers alemães, conseguiu abater um antes de ser abatido. Gravemente ferido, acabou por sucumbir aos seus ferimentos num hospital na retaguarda. Tinha 31 anos.
Por causa dos seus feitos na aviação e no automobilismo, Boillot foi condecorado com a Cruz de Guerra e a Legião de Honra, e em 1921, os seus restos mortais foram transferidos para o Cemitério Pêre Lachaise, em Paris. Curiosamente, houve descendência automobilística: o seu irmão mais novo, André, ganhou a Targa Florio em 1919, e o seu filho, Jean, tornou-se diretor-geral da Peugeot Talbot Sport e envolveu-se nos ralis, em 1981.
Apesar de não ter participado no Grande Prémio de França de 1914, René Thomas teve uma carreira mais longa e proveitosa. Dispensado das atividades militares para poder competir, porque as corridas na América continuaram durante a guerra na Europa, voltou a Indianápolis para conseguir bons resultados. Foi segundo em 1920, e em 1924, em Arpajon, conseguiu 230,64 km/hora no seu Delage, acabando por ser recordista de velocidade em terra. Muitos anos depois, em 1973, regressou a Indianápolis para andar na pista, perante o aplauso da multidão. Morreu a 23 de setembro de 1975 em Colombes, na região de Hautes-La-Seine, aos 89 anos de idade.
O impacto desta vitória na Mercedes foi tal que a França se tornou a sua casa de eleição. E em quase todas as vezes que, quando decidiam regressar ao automobilismo, tinha de ser uma pista francesa. Primeiro, em 1934, com os seus carros de Grand Prix, a sua estreia foi em Montlhery, nos arredores de Paris, e com a lenda dos "Flechas de Prata". E em 1954, quando também fez o seu regresso, mas à Formula 1, o lugar escolhido foi Reims, o palco do GP de França. E como acontecera 40 anos antes, o W196 Streamliner mostrou as suas cores para acabar com uma vitória de um dos seus pilotos, desta vez foi Juan Manuel Fangio, acompanhado por Karl Kling. A última ocasião foi em 1988, quando, em associação com a Sauber, estrearam os seus carros nas 24 Horas de Le Mans com o modelo C9.